AINDA ESTOU AQUI
AINDA ESTOU AQUI
de Walter Salles
(Muito já se escreveu sobre Ainda estou aqui. Não pretendo escrever uma crítica sobre o filme mas apenas levantar apenas alguns pontos esparsos.)
A grande repercussão e comoção
em torno de Ainda estou aqui nos mostra que voltamos ao Cinema da Retomada. O Cinema
da Retomada* desenvolveu estratégias adequadas e funcionais para como o cinema
pode responder a uma crise, e como estabelecer instrumentos discursivos para defender
a posição social da arte em nossa sociedade.
O novo filme de Walter Salles
possui muito em comum com seu clássico Central do Brasil. Ainda estou aqui é um
filme que já nasceu clássico, nasceu com esse compromisso e essa
responsabilidade de se tornar uma instituição, uma obra de referência dentro do
cinema brasileiro. Num mundo hoje cada vez mais fragmentado, é cada vez mais
raro surgirem cineastas com esse sentido de missão. Ou seja, no meio do caos
político do Brasil dividido e das guerras culturais, é preciso ressurgir o “velho
Salles”** para, com toda a sua serenidade, defender a institucionalidade do
nosso tecido social e do nosso cinema. Diante da crise, o “velho Salles” reorganiza
a instituição-cinema – como talvez Barretão o tenha feito nos anos 1990. E é
preciso reconhecer que Salles o faz com grande competência e que Ainda estou
aqui é um filme necessário. Salles não busca o holofote para si, quase não
aparece, nem precisa mais disso, deixa o próprio fime e o elenco falarem, e
atua nos bastidores para que o filme forme musculatura e ganhe asas a partir de
uma mídia mundial – o filme é habilíssimo como estratégia de distribuição. (O
filme foi realizado sem nenhum centavo de recurso público e ainda dará retorno
financeiro a seus investidores. Não há como a extrema-direita atacar o filme, nem
“por fora” nem “por dentro”, até porque o pilar da dramaturgia é a defesa da
família. Ainda estou aqui poderia ser defendido tanto por uma jovem hippie de
esquerda quanto por um liberal teocrático de meia-idade.)
A minha geração (a geração dos “novíssimos”)
não teria a competência e a serenidade para fazer um filme como esse. (O mais
perto que chegamos disso é o institucionalizado Marte um – por mais incrível
que possa parecer, há muito em comum entre Marte um e Ainda estou aqui). Para
que as crianças possam brincar à vontade no playground sem serem incomodadas, os
adultos precisam continuar a fazer o “trabalho sério”, ou seja, é preciso que
nossos patriarcas defendam os nossos pilares de base. Ainda estou aqui revela
esse trabalho sólido das nossas mais esclarecidas elites oligárquicas para recuperar
o prestígio social do cinema brasileiro, algo que estava em frangalhos nos anos
1980. Essa é no fundo a contribuição do Cinema da Retomada, mesmo com suas
contraindicações – um cinema de aderência do local no global de forma
domesticada. Mas no mundo anestesiado em que vivemos, defender Ainda estou aqui
não é muito diferente de defender o STF diante do caos institucional (Data venia,
é preciso fazer a ressalva que Salles é muito mais coerente e consistente que
muitos dos nossos ministros). O sucesso de Ainda estou aqui e o fato de se
tornar uma referência incontornável é um sintoma do fracasso dos nossos tempos,
mas é “o que temos para hoje”. Dizem as boas/más línguas que há motivos para
celebrar, antes que seja tarde demais. Pois, apesar de tudo, ainda existimos,
não é? “Vamos sorrir para as fotos para a eternidade!”.
Muito se fala da sobriedade da
personagem de Fernanda Torres diante da presença da tortura e do mal, e como o
filme nunca cai no melodrama estrito ou na espetacularização da barbárie, mas,
se observarmos de forma atenta, Ainda estou aqui não é Memórias do Cárcere, de
Nelson Pereira dos Santos. As diferenças entre os dois filmes mereceriam uma
análise à parte, e falam muito não apenas sobre as possibilidades da narrativa
clássica para realizar filmes políticos, mas sobretudo sobre as mudanças do
Brasil e especialmente do público de cinema entre as décadas de 1980 e 2020 – o
cinema hoje se elitizou e se tornou parte de um mercado global.
Ainda estou aqui é muito
competente, e comprova à perfeição o projeto do cinema humanista de Salles. É
um filme humano, honesto, e extremamente competente. Só acho que o Brasil e o
cinema brasileiro poderiam sonhar com mais. Com mais imaginação, mais risco e
menos pragmatismo. Nos tempos de hoje, parece que querem nos fazer acreditar
que esse “a mais” é algo tolo e ingênuo, que precisamos ser mais “profissionais”.
O sucesso de Ainda estou aqui nos revela como o Brasil é um país conservador.
* ver meu livro "Revisão crítica do cinema da retomada"
** uso a expressão com uma referência à expressão
usada pelo professor Dênis de Moares em sua maravilhosa biografia de Graciliano
Ramos, o “velho Graça”. “Velho” aqui é utilizado como símbolo de clássico, como
algo que perdura como perene e atravessa os tempos, e que se afasta dos meros modismos
de ocasião, o que é portanto oposto a qualquer resquício de etarismo. Precisar fazer
essa nota de rodapé revela o fracasso da comunicação nos dias de hoje.
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