O NÓ DO DIABO
(nos últimos dias folheando arquivos em pastas antigas do meu HD, me deparei com alguns textos que escrevi sobre filmes brasileiros mas que, por algum motivo, resolvi não publicar. Achei que o texto estava incompleto, ou que ainda precisava de uma nova revisão ou aperfeiçoamento. E o tempo foi passando e acabaram não sendo publicados. Hoje, ao reler esses textos, continuo concordando que precisariam ser mais e melhor desenvolvidos. Mas, ainda assim, achei que seria útil publicá-los, porque infelizmente certamente não conseguirei retomar esses textos. São filmes que vi há um bom tempo e precisaria revê-los... e isso talvez altere ainda mais os textos...rs. Então, ei-los, incompletos como a vida rs)
(é curioso que, em um dos textos, eu escrevi um prólogo:
(por vários motivos estou encontrando dificuldade em escrever sobre os filmes com a atenção que eu gostaria. Assim, estou querendo publicar minhas anotações. Não são textos. São rascunhos, incompletos, mal escritos, esboços de pensamentos, algo que resolvo botar no papel apenas para manter a roda do pensamento girando. Quando insisto em publicar esse arrazoado mal escrito, quero retomar um diálogo com meus primeiros escritos, com aquilo que no fundo me moveu a escrever, uma curiosidade, uma vontade irrefreável de dialogar com a folha de papel em branco, de quebrar o gelo, de romper a solidão, de jogar uma garrafa no mar, mesmo sem ter muita ideia de como fazê-lo, mesmo sendo estabanado, desajeitado, com a forma, com a escolha das palavras, mesmo sem muita atenção ou cuidado. Tem muita coisa que precisa ser dita sobre muitos filmes brasileiros que estão sendo (mal) lançados nos últimos tempos e é preciso dizê-lo mesmo que não sejam as palavras tão cuidadosas que eu gostaria de dizer e que os filmes merecem, mas é o que é possível para mim nesse momento.)
* * *
O NÓ DO DIABO
de Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Ian Abé, Gabriel Martins
Há algo em comum no paraibano O NÓ DO DIABO e o paulista AS BOAS MANEIRAS: são representantes de uma nova geração do cinema brasileiro que busca fazer um cinema autoral dialogando com o cinema de gênero.
Se eu pudesse recomendar um filme brasileiro para ser
exibido nas escolas de todo o país, eu escolheria O NÓ DO DIABO (e como seria
bom se um filme brasileiro pudesse ser exibido e debatido nas escolas...)
Há muito tempo criou-se no país a ilusão de que o processo
escravocrata brasileiro foi pacífico, que o brasileiro da “casa grande e
senzala” é um “homem cordial”.
Uma das principais contribuições de Brasil: uma biografia,
volumoso livro de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling que recupera a
história do Brasil por uma perspectiva revisionista, é reconsiderar esse mito,
e expor, com dados e extensa pesquisa, que o processo civilizatório brasileiro
é repleto de sangue.
O momento que hoje vivemos, em que os reacionários saem das
tumbas, é diretamente herdeiro da tradição civilizatória brasileira.
O NÓ DO DIABO passa em revista essa trajetória mas dando
forma cinematográfica a esse espanto. Por meio de um diálogo com o cinema de
gênero, expõe as feridas e cicatrizes de nosso passado histórico.
É preciso dizer que O NÓ DO DIABO foi realizado em Campina
Grande, por um grupo de realizadores (com alguns colaboradores, com Gabriel Martins,
que é de MG) que desenvolvem uma pesquisa de pelo menos uma década em Campina
Grande/PB. Como é fabuloso ver um lançamento comercial, numa sala de cinema, de
um filme de Campina Grande, interior da Paraíba! E perceber a consistência e o
amadurecimento do projeto de um conjunto de realizadores (ligados à produtora
Vermelho Profundo).
Só foi possível viabilizar O NÓ DO DIABO como uma série de
tv para a TV pública – isso porque esse edital previa obrigatoriamente um
percentual definido para produtoras da Região Nordeste. Sua versão
cinematográfica como longa-metragem é simplesmente a colagem desses episódios,
mas o filme curiosamente não perde a força porque a fragmentação dos episódios
se entrelaça no sentido de compor um painel social histórico das heranças da
escravidão brasileira nos dias de hoje.
Assim, surge o choque do fantástico primeiro episódio,
quando o personagem brilhantemente interpretado como Tavinho Teixeira é um
matador que vigia as terras de um antigo fazendeiro. Ele não consegue dar conta,
os fantasmas o assombram, a expansão urbana das periferias vai esmagar os
latinfundiários. Pode demorar, mas os fantasmas acabam saindo de suas tumbas e
vão retomar o que é deles.
Nos episódios seguintes, passamos a entender a origem
histórica desse desconforto, com base na opressão e na violência. Ecos de
alguns curtas da Vermelho Profundo, como OS MORTOS, de Jesus Tribuzi, são
vistos no interior dessas casas.
É notável como os filmes dão tratamento cinematográfico aos
interiores. A questão da terra se torna ter direito a uma casa. Em um dos
episódios, vemos exatamente os escravos invadindo a casa dos senhores.
Num dos episódios, o quarto, vemos o mais estranho: uma
caminhada sem fim rumo à utopia, à liberdade, ao Quilombo. Aqui, o filme sai do
terror e embarca no western, como se fosse um filme de Allan Dwan ou Anthony
Mann que mostra personagens que atravessam o deserto. Mas aos poucos o filme
vai entrando numa espiral metafísica alucinatória que se aproxima à
desconstrução de gênero de um Monte Hellmann, nos seus geniais faroestes como
The shooting.
O último episódio coroa tudo, num final tão bonito! Ali, os
cineastas encenam a resistência, uma resistência possível. A guardiã de todos –
uma brilhante escolha por Zezé Motta – agoniza, parece não aguentar mais. Os
invasores são muitos, as armadilhas são pequenas, o fracasso é iminente. Como
resistir se o inimigo é tão poderoso?
Mal dia menos dia todos os fantasmas, todas as heranças
desses antepassados talvez venham para nos resgatar. É isso o que chamamos de
cultura. Surgem da terra, como raízes, aquela mesma que faz crescer os nossos
frutos mesmo diante dessa safra miserável.
O NÓ DO DIABO é apenas um primeiro filme, um “telefilme” mas
é um notável produto que marca o percurso de uma geração de realizadores do
interior do Brasil, que escapa do cinema regionalista para propor um cinema
contemporâneo, de diálogo com o público médio. Se nosso país fosse decente,
esse filme poderia ser visto por uns 100 mil espectadores.
(Escrito em 10/10/2020)
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