AS BOAS MANEIRAS

(nos últimos dias folheando arquivos em pastas antigas do meu HD, me deparei com alguns textos que escrevi sobre filmes brasileiros mas que, por algum motivo, resolvi não publicar. Achei que o texto estava incompleto, ou que ainda precisava de uma nova revisão ou aperfeiçoamento. E o tempo foi passando e acabaram não sendo publicados. Hoje, ao reler esses textos, continuo concordando que precisariam ser mais e melhor desenvolvidos. Mas, ainda assim, achei que seria útil publicá-los, porque infelizmente certamente não conseguirei retomar esses textos. São filmes que vi há um bom tempo e precisaria revê-los... e isso talvez altere ainda mais os textos...rs. Então, ei-los, incompletos como a vida rs)

(é curioso que, em um dos textos, eu escrevi um prólogo: 

(por vários motivos estou encontrando dificuldade em escrever sobre os filmes com a atenção que eu gostaria. Assim, estou querendo publicar minhas anotações. Não são textos. São rascunhos, incompletos, mal escritos, esboços de pensamentos, algo que resolvo botar no papel apenas para manter a roda do pensamento girando. Quando insisto em publicar esse arrazoado mal escrito, quero retomar um diálogo com meus primeiros escritos, com aquilo que no fundo me moveu a escrever, uma curiosidade, uma vontade irrefreável de dialogar com a folha de papel em branco, de quebrar o gelo, de romper a solidão, de jogar uma garrafa no mar, mesmo sem ter muita ideia de como fazê-lo, mesmo sendo estabanado, desajeitado, com a forma, com a escolha das palavras, mesmo sem muita atenção ou cuidado. Tem muita coisa que precisa ser dita sobre muitos filmes brasileiros que estão sendo (mal) lançados nos últimos tempos e é preciso dizê-lo mesmo que não sejam as palavras tão cuidadosas que eu gostaria de dizer e que os filmes merecem, mas é o que é possível para mim nesse momento.)

Os primeiros textos que vou publicar dessa "série incompleta" rs são sobre AS BOAS MANEIRAS e O NÓ DO DIABO, escritos quando os vi no lançamento comercial em Fortaleza, em outubro/2020.


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AS BOAS MANEIRAS

de Juliana Rojas e Marco Dutra



AS BOAS MANEIRAS É UM FILME BELO (BEM ACABADO) MAS TAMBÉM É SUBVERSIVO

É certo que a beleza se esconde nos lugares mais improváveis e deve ser bem observada para ser contemplada. Fomos (mal) educados (deseducados) a encontrar essa beleza plástica dos anúncios publicitários de produtos e modelos genéricos. Mas a beleza está ali, e precisa ser descoberta.

Um filme como As boas maneiras abre muitas perspectivas para o cinema brasileiro. É realizado por dois diretores de uma nova geração do cinema brasileiro, que conseguiram chegar a um modelo de produção digamos grande para o que é nosso cinema, mas sem abrir mão em nenhum palmo do que consideram necessário para um filme. Digo isso porque considero As boas maneiras um filme extremamente corajoso, e um passo extremamente coerente com todo o percurso e a trajetória desses dois notáveis realizadores, e ao mesmo tempo um sinal inequívoco de seu amadurecimento como realizadores.

Ou seja, essa “nova geração” do cinema brasileiro não é mais tão nova assim, vai amadurecendo, vai seguindo seu caminho, algo que só é possível porque o cinema brasileiro vem saindo do seu calvário de um diretor só fazer um filme de 10 em 10 anos.

As boas maneiras é tão estranho quanto Quando eu era vivo, ou quanto Sinfonia da necrópole, ou como Trabalhar cansa, embora eu considere As boas maneiras um pouco mais próximo do primeiro. É uma mistura de um melodrama do Nicholas Ray (ou Douglas Sirk) com um filme do Jack Arnold acoplado a um final à la Steven Spielberg de AI (risos). (Mais um bom trecho de um filme high school passado num shopping rs)

Há algo do cinema B em As boas maneiras. E há algo que também existe em O desejo do morto, do campinense Ramon Porto Mota, que é unir um drama familiar com um filme fantástico de terror, para falar do que é o país hoje.

Acho interessante pensar em Sirk porque As boas maneiras possui uma ironia fina e porque se reveste, na primeira parte, de um melodrama social feminino.

As boas maneiras é também um filme feminino. É sobre esse menino-lobisomem que vai ser devorado por uma sociedade que repele as diferenças, e as mulheres vão ter que se virar para defender um mundo de afeto. Fora esse menino, praticamente não há homens no filme.

Segundo esse ponto de vista, As boas maneiras poderia ser um conto de fadas (não deixa de ser). Mas ao mesmo tempo, esse mundo de afeto é “afetado” pela violência intrínseca do mundo e das pessoas. A violência e o afeto fazem parte do mundo, o que é preciso é aceitar as diferenças. Mas como fazer?

E nessa viagem pelo cinema de gênero, pensamos nos lobisomens e zumbis que querem simplesmente crescer em paz, apesar de precisar comer carne e se alimentar de sangue rs. Até quando essa pequena criatura – indefesa e violenta – poderá viver em cativeiro? Como essa criatura pode conviver com o mundo? Como uma mãe pode proteger o seu filho? (poderia ser um filme de Cronenberg rs)

Há uma fé e uma inocência na força e no poder do cinema. Os cineastas estão longe de serem ingênuos mas ao mesmo tempo tudo é uma grande brincadeira, é uma travessura. Acho interessante esse gesto dentro do cinema brasileiro de autor de hoje de um filme (grande em termos de orçamento como esse) poder ser uma grande travessura, ao mesmo tempo que é indiscutivelmente um produto extremamente sério e competente.

Esse me parece ser o tom subversivo do filme. As boas maneiras é belo e é um filme subversivo.

O filme passeia por questões de classe, questões de gênero, questões raciais, questões de orientação sexual, sem torná-lo um panfleto. Muito menos um libelo extremado a favor da exclusão, do ódio ou da vingança.

Esse menino é o fruto dos nossos tempos, de nossa sociedade doentia, embora não tenha culpa disso. O que devemos fazer: matá-lo? Tirá-lo de circulação? Transformá-lo numa criatura de circo? Dar amor e esperar que esse amor o transforme?

Nós, o outro, o estranho, nós mesmos.

O filme não dá respostas; o menino não é um herói nem é um vilão. Esse menino somos nós, as adoráveis terríveis criaturinhas de classe média, fruto de todas as nossas contradições. Um pequeno monstro? Um menino mimado pela mãe que não consegue andar sozinho pelo mundo? Um menino que, na calada da noite, precisa devorar os coleguinhas mais fracos para sobreviver?

As boas maneiras é notável não apenas por construir um personagem extremamente ambíguo mas por encontrar forma cinematográfica para dar vazão a problemas do seu tempo. Travestido num proto filme de gênero, transita ambiguamente entre o drama familiar e o filme de terror, assim como o estranhíssimo Quando eu era vivo. É um filme corajoso, de grande habilidade em termos de sua artesania cinematográfica, um filme arriscado e corajoso, coerente com mais de uma década de percurso no cinema.

Por isso, o filme é belo. Sua beleza é esguia, pois foge dos padrões mais diretos do cinema brasileiro de autor. Lança questões – sobre o mundo e sobre o cinema – que não conseguem ser respondidas com o que temos.

(Escrito em 09/10/2020)

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