A FILHA DO PALHAÇO

 

SOBRE A FILHA DO PALHAÇO E UM CERTO SINTOMA DO CINEMA BRASILEIRO


(frame de A filha do palhaço mas poderia ser De repente, miss)

Em um texto antigo que escrevi sobre Linz (2013), anunciei que o fracasso do personagem de Dellani Lima simbolizava o fim de certo cinema cearense – aquele cinema cujo precursor era justamente Vilas Volantes (2005), do mesmo Alexandre Veras. Depois, em outro texto, sugeri que Inferninho (2018), filme póstumo do Alumbramento, era o epitáfio do cinema afetivo brasileiro.

Mas o que nasce depois desse final?

Dizem que os modismos precisam ser substituídos por outros para que a roda das fortunas (do cinema brasileiro) possa seguir adiante. E mais ainda: que os jovens irreverentes precisam amadurecer, pagar suas contas e criar seus filhos. Costumeiramente “amadurecer” é uma forma nuançada de dizer “institucionalizar-se”. Ou seja, quando se é jovem, pode-se questionar o sistema, mas depois de certa idade, o mais recomendado é acomodar-se e integrar-se a ele.

Domesticar os impulsos e as paixões, integrar-se aos valores do sistema dominante – um sistema de valores que busca a reconciliação, e não o enfrentamento.

Não era isso o que o “cinema afetivo” propunha. Nem socialmente nem formalmente (ambos convergem). Não é, por exemplo, o que Adirley Queirós propõe em Mato seco em chamas (2023). Muito menos o que se propunha em filmes como Os monstros (2011), radical gesto contra qualquer possibilidade de conciliação entre arte e indústria.

Sempre que a conciliação com os valores do sitema é lembrada, entra-se no discurso da sintonia do mercado e do público. Uma falácia que envolve a invenção de um suposto gosto do “público médio”. É como se a saída para o cinema brasileiro fosse o diálogo com um certo imaginário de um espectador ideal – o público médio – algo que nunca existe e nunca existiu. O espectador médio é uma espécie de Homer Simpson, a quem William Bonner se referiu quando indagado para quem eram direcionadas as matérias do Jornal Nacional (veja aqui) – alguém que chega cansado do trabalho, liga a TV e abre uma cerveja depois do jantar: a pequena-burguesia cansada e culpada que precisa expiar seus pecados.

Essa ideia falaciosa do diálogo com o público esmaga nossa capacidade de libertar nossas almas e abrir nossas mentes para interagir e debater de forma mais ampla com os enormes desafios do nosso tempo. Em nome de um suposto diálogo com um público que não existe, estabelecemos uma espécie de pacto anestesiador da mediocridade. Esse pacto parece que alivia nosso sentimento de culpa diante das impossibilidades e das dificuldades de reverberação de nossa arte. “É um filme que minha mãe veria, se ela fosse ao cinema”, diriam os “analistas-de-público-alvo”. Só que ela continua não indo. E cada vez mais estamos distantes dos públicos e cada vez mais distantes de um genuíno cinema popular (os filmes de Mojica, A mulher que inventou o amor, As aventuras amorosas de um padeiro, e tantos outros)

* * *

 Falo de tudo isso antes de começar a escrever sobre A filha do palhaço, de Pedro Diógenes. Seria muito mais cômodo para mim escrever que se trata de um belo filme humanista sobre o perdão e a reconciliação de um pai e uma filha, um pai que não é heroi, a desconstrução de um humorista que não tem motivos pessoais para rir. Seria mais cômodo dizer que o filme evidencia o grande valor do cinema brasileiro após o massacre da Era Bolsonaro, e que confirma que, com políticas públicas inclusivas, o Ceará, um estado do Nordeste, apresenta valores culturais fora do centro Rio-São Paulo.

Seria muito cômodo se eu quisesse ter seguidores e likes, ou pleiteasse cargos em comitês ou secretarias. Mas o papel da crítica de cinema é também o de gerar incômodos, de abrir o debate para além das zonas de conforto e do senso comum.

“Você vai arrumar mais uma treta sem necessidade”, recomendam-se os amigos. “De que importa que o filme seja bom ou nem tanto? O que importa é que está sendo feito” – dizem-me outros.

Pensem na situação (hipotética) de um crítico cearense que vai cobrir o Festival de Cannes pelo principal jornal de Fortaleza e ganhou um disputado ingresso para a sessão de gala do filme cearense na disputa da Palma de Ouro: e se ele não gostar do filme? O que deve fazer? Ainda bem que ele achou que o filme é realmente bom de verdade. Pois, caso contrário, provavelmente seria aconselhado de que ele não deveria estragar a festa, e deveria fazer o que se esperava dele: dizer que o filme representa o sucesso do cinema cearense e do cinema brasileiro.

É para isso que serve a crítica?

Devemos dizer que somos um sucesso, que tudo está bem. Tout va bien ?

Em 2024, estamos de volta ao Cinema da Retomada. Parece-me que, depois de um momento de crise, a ressaca é a defesa da normalidade institucional. Cada filme deve ser defendido como prova de que a cultura e a civilidade têm que existir. Mas nenhuma cultura pode sobreviver se ela for um mero manual de bons modos.

Os filmes de sucesso do cinema brasileiro de hoje são aqueles que dominam as regras de etiqueta: sabem se sentar à mesa e usar os talheres e o guardanapo. Atendem a que interesses? Interessam a quem? Quem comemora o suposto sucesso atual do cinema brasileiro?

(É curioso pensar que os mais joviais filmes brasileiros de hoje são os realizados pelos artistas mais experientes: Paula Gaitán, Julio Bressane. Os jovens parecem satisfeitos em imitar o estabelecido para ganhar os editais, serem selecionados nos festivais, receberem elogios e serem aceitos.)

Como diria Jacques Becker no final de Le Trou (1960), “Pobre Gaspard”. Trocam a beleza das coisas por um punhado de bugigangas e espelhinhos.

É sintomático que um dos diretores do Coletivo Alumbramento, o jovem e rebelde coletivo de cinema que desafiava as normas e os padrões do cinema hegemônico dos anos 2000, tenha realizado um filme com valores tão reacionários.

Mas não surpreende a quem leu com atenção meu livro Fissuras e Fronteiras, uma análise sobre a trajetória do Alumbramento sob o risco da institucionalização. É por isso que corro o risco de causar esse mal-estar e prossigo essa análise um tanto desconfortável. Porque é preciso.

Já pelo tema, A filha do palhaço, ao abordar a reconciliação de uma filha adolescente com seu pai ausente, fisga o espectador pelo fígado. O pai não é santo nem tampouco monstro: é uma pessoa com erros e acertos. Errou no passado, mas é honesto, bondoso, quer acertar. O filme procura preencher as lacunas entre os dois deixadas pelo tempo e desde o início está claro que o projeto do filme acima de tudo é a reconciliação.

Somente à guisa de exemplo é muito diferente do que propõem dois outros filmes. O primeiro é o documentário Os dias com ele (2013), um filme muito duro e nada palatável para o público médio, em que Maria Clara Escobar entrevista seu pai, torturado durante a ditadura, e vemos o abismo criado entre os dois, e que não será um gesto, muito menos um filme, uma forma possível de reaproximá-los.

É também muito diferente de Aftersun (2022), de Charlotte Wells. O filme de Wells é muito mais complexo e elaborado, mergulhando nas sensações e sentimentos de sua protagonista, e também na investigação das lacunas e desvios da memória. O movimento dos corpos, os diálogos, a textura cromática dos planos, a incorporação criativa da geografia física do local, enfim, muitos elementos apontam para o não-dito, e que permitem aprofundar a complexidade dos sentimentos entre os dois personagens para muito além de um manual de boas intenções.

Mas se “João Lucas beija mal”, Pedro Diógenes filma como? Tudo em A filha do palhaço aponta para a sua própria exegese. A conquista do espectador está estabelecida numa premissa: a frontalidade das intenções dos personagens, e não a partir do envolvimento sensorial com as texturas da trama. Ou ainda, A filha do palhaço é discursivo, resolve-se visualmente em campos-contracampos e em duelos verbais diretos, como na telenovela. Um filme claro demais para tantas camadas sutis de ambiguidades e delicadezas. Luzes de neon e cores envolvem a protagonista jovem, que não seria muito exagero, se fossem confundidas com a mise en scène de um produto industrial como De repente miss (VER FOTO). O espectador, sinceramente comovido com a frontalidade do drama, não consegue criar uma camada crítica para além do apelo às emoções.

Vejamos alguns exemplos. Logo no início o humorista se apresenta para uma plateia no show de humor. No entanto, a plateia é uma massa informe, de figurantes, alguns em participação afetiva de amigos ou pessoas da produção. É totalmente diferente de Raimundo dos Queijos (2011), ou a famosa cena do Kantt Bar em Meu amigo mineiro (2012), quando havia um interesse genuíno e curioso pelo espaço. Lá na frente, o (querido) Rafael Martins se esforça para ser o torcedor de futebol violento e misógeno que vai acabar com o espetáculo. Mas o filme não se interessa por aqueles espaços ou pessoas, elas são meros joguetes para jogar a narrativa para a frente, e só.

Outro exemplo é quando o pai mostra a filha que ali no Centro havia salas de cinema, agora fechadas. Esse gesto dialoga com um antigo curta de Diógenes, Ficamos Felizes Com Sua Marcante Presença Nesse Momento tão Especial de Nossas Vidas (2008), em que o próprio realizador percorre com seu pai as ruas de Fortaleza e ele lhe mostra as fachadas dos cinemas fechados. No entanto, agora, o realizador nem se dá ao trabalho de cortar para o contraplano e mostrar as fachadas dos prédios. Não há de fato interesse nos cinemas fechados, na geografia do Centro nem na transformação da cidade – há apenas uma frase de efeito em que a filha diz que também ela não gosta do pai.

Novamente voltamos à família, como símbolo da célula institucionalizada. A filha do palhaço pouco está do lado da filha, e sim desse protagonista masculino cujo percurso é ser perdoado não apenas pela filha mas pelo público. A trajetória do filme é o da expiação do pecado, em que o genuíno interesse renovado pela filha faz desse personagem um ser humano melhor. Em um momento, surge um personagem espectral: Jesuíta Barbosa é como se fosse aquele pai em sua juventude, vivendo de uma arte em que se acredita, mesmo sem público ou sem dinheiro. Jesuíta poderia ser um dos personagens de Os monstros, filme em que há uma sessão de música em que todos os espectadores se retiram mas os músicos continuam tocando mesmo assim. Não é o que faz o protagonista do filme: ele admira à distância Jesuíta sabendo aquilo que ele já não é. Ele já não é mais jovem, deve amadurecer, sua filha dorme ao seu colo. Jesuíta um pouco antes lhe diz “um ator nunca deixa de ser ator”. E um cineasta? Parece que o personagem do pai é um alter-ego dos pardoxos que envolvem o próprio realizador Diógenes. A relação entre Jesuíta e Démick é quase igual à relação entre Os monstros e A filha do palhaço. Démick é finalmente reconhecido por Jesuíta como o grande ator que ele já foi, e que agora já não mais o é. A filha pergunta ao pai se ele faz show de humor pelo dinheiro. O pai diz que não, mas por “outras coisas”. Que coisas são essas o filme nunca responde.

O momento final da reconciliação está num plano logo ao final. Quando a filha solta do braço da mãe e sobe ao palco para ajudar o pai a cantar uma música triste, nesse momento, há o plano que considero o mais reacionário do filme: um plano fechado em que a mãe sorri quando vê o reencontro entre pai e filha no alto desse palco.

Por que a mãe sorri? Suponho que esse plano – filmado de forma tão tosca que parece um insert – reflete a ética de A filha do palhaço: devemos nós, o público médio, sorrir com esse abraço, sorrir da suposta graça do palhaço no palco, sorrir do sucesso do cinema brasileiro, sorrir em como conseguimos sobreviver aderindo ao sistema. O campo-contracampo entre a mãe distante e o pai-filha no palco simboliza que o público, assim como a mãe, finalmente adere ao reencontro e perdoa o pai.

Só que acontece que esse sorriso é tão falso que parece até constrangedor.

No entanto, do outro lado da tela, a longa aventura do cinema de invenção brasileiro parece ressoar uma frase que diz “Pobre Gaspard”.

Para não dizer que tudo são flores de plástico, todos os elogios para os atores principais, o grande Démick Lopes e a brilhante estreante Lis Sutter, que se esforçam ao máximo para dar dignidade às intenções do filme. E há uma cena bonita quando Demick canta Joana para a filha. O filme cresce nos momentos musicais.

 


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