MEDIDA PROVISÓRIA
MEDIDA PROVISÓRIA, MARIGHELLA E AS HERANÇAS DO CINEMA DA RETOMADA
Vejo
que há muito em comum entre MARIGHELLA e MEDIDA PROVISÓRIA, dois filmes
brasileiros recentes que atraíram a atenção da crítica e do público num momento
de crise não só do Brasil mas do próprio cinema brasileiro. Vivemos uma crise
institucional do cinema brasileiro, expressa pela paralisia dos financiamentos
públicos, com os ataques à Ancine pelo governo Bolsonaro, e agravada com a
pandemia. Uma crise também de mercado, uma vez que, após a reabertura das salas
de cinema, sem a devida regulação da Cota de Tela pela Ancine, os blockbusters estrangeiros
passaram a ocupar mais de 90% de nossas telas. Mas essa crise seria também uma
crise de ideias? Como o cinema brasileiro pode reagir/vem reagindo a esse
cenário de crise?
Os
dois filmes se baseiam em um modelo de produção hegemônico para falar de
questões ligadas ao periférico. Ambos se fundam em certa polêmica a partir de
questões urgentes do nosso contexto sociopolítico (a ditadura e o racismo) mas
se utilizam de uma linguagem linear e de modelos de comunicabilidade. Foram coproduzidos
pela Globo Filmes, com grande cobertura midiática, e curiosamente, foram
realizados por dois diretores estreantes, mas que, antes de diretores, são
atores de um certo star system (mas que, ao mesmo tempo, possuem um certo “glamour
de refinamento”, pois suas trajetórias estão a rigor mais próximas do cinema do
que da televisão).
Medida
Provisória possui um modelo de produção mais próximo do que poderíamos chamar
de independente em relação a Marighella, uma vez que Lázaro Ramos foi levado a
dirigir pelas circunstâncias, mas que ao final teve seu formato final desenhado
pela participação do veterano Daniel Filho (leia-se GloboFilmes). Já Marighella
foi concebido pela O2 Filmes, uma das maiores produtoras brasileiras, com
estrutura logística e financeira invejável para um estreante, com orçamento
superior a R$10 milhões. (Sobre Marighella, ver aqui)
Enfim, todos esses elementos (a
combinação entre uma pretensa análise sociopolítica brasileira e os elementos
de comunicabilidade do mercado hegemônico, buscando uma tentativa de equilíbrio
que domestica a potência do argumento, a subversão/provocação do entrecho mais
como estratégica de marketing do que efetivamente um desejo de questionar de
verdade as estruturas de base da sociedade e tirar o espectador de sua zona de
conforto, a defesa do cinema brasileiro como estratégia de uma elite classista num
momento de crise institucional, etc, etc) me faz remeter à direta ligação desses
dois filmes com a chamada retomada do cinema brasileiro.
As estratégicas discursivas de MARIGHELLA
e MEDIDA PROVISÓRIA mostram que o “cinema da retomada” permanece vivo no cinema
brasileiro de hoje, que a retomada não foi simplesmente “um ciclo” que se
encerrou, mas cujas heranças permanecem infiltradas nas estruturas de poder que
conferem visibilidade e legitimidade ao que se considera como “cinema
brasileiro”, ou seja, as instâncias institucionalizadas que elegem quais
filmes, independentemente de serem “melhores” ou “piores”, devem ou precisam
ser discutidos.
O “cinema da retomada”, com sua
proposta totêmica e globalizante, pretendeu englobar todos os cinemas
brasileiros, mas na verdade esse discurso foi uma mera estratégia retórica para
encobrir um projeto prescritivo de cinema, que acabou por jogar para a
invisibilidade outros cinemas. Esse argumento (que o “cinema da retomada” não
deve ser visto como mero sinônimo do cinema brasileiro entre 1995-2003, que não
engloba todos os cinemas brasileiros mas na verdade representou a defesa de um certo
projeto excludente de cinema – que no fundo expressa os interesses de uma elite
classista, universalizante, conservadora – e que este cinema “não morreu”, mas continua
vivo) é o que desenvolvi no meu novo livro (REVISÃO CRÍTICA DO CINEMA DA
RETOMADA), a ser publicado ainda neste ano de 2022 pela Editora Sulina.
Dado o nosso atual contexto social
de instabilidade, muitos defendem esses filmes de antemão, por apresentarem
para “o grosso da sociedade” questões importantes e urgentes sobre nosso país.
Mal disfarçados, respectivamente, de filme histórico de época e de ficção
futurista distópica, MARIGHELLA e MEDIDA PROVISÓRIA claramente querem nos falar
sobre o país de hoje, apesar de terem sido concebidos e realizados em contextos
distintos daqueles em que foram lançados.
Mas – antes que eu seja
erroneamente rotulado como de direita ou racista – o que pretendo levantar é:
por que um filme tão frágil quanto MEDIDA PROVISÓRIA é mais visto e debatido do
que o muito mais interessante (ainda que com senões, como seu esquematismo) CABEÇA
DE NEGO, filme de Deo Cardoso que também possui valores claros de militância e
modelos de comunicabilidade? Claramente em nada que se refira ao filme em si, nem
mesmo pelo fato de o cineasta ser negro ou estreante, e nem mesmo tanto em
relação aos orçamentos de produção, mas a principal diferença é que Deo é um
cineasta da periferia de Fortaleza, que não tem contatos diretos com a elite
classista do cinema brasileiro, que não é uma figura midiaticamente conhecida, que
seu filme não possui um star system, etc. Mesmo dirigido por um diretor negro,
estreante, que toca em questões sociais importantes e pungentes, é preciso
perceber que a abordagem de Medida provisória dá continuidade e sustentação às
mesmas estruturas classistas de poder que sempre regeram o cinema brasileiro.
As contradições de MEDIDA PROVISÓRIA já começam a ser vistas pela escolha do elenco. Parece que os atores principais foram escolhidos numa tentativa de visar ao mercado internacional. Seu Jorge faz um papel curioso, inserindo um certo olhar cômico, que serve basicamente como “orelha” do protagonista, um ator inglês que atuou na franquia Harry Potter. Por que escolher como protagonista um ator internacional sem raízes no cinema brasileiro, em vez de tantos outros que pudessem melhor imprimir a carga emocional desse personagem? O figurino, a direção de arte, a forma elegante e pausada de falar, a profissão de advogado/médica, a forma asséptica como o corpo de Taís Araújo reage ao caos espalhado pelas ruas nos dão a nítida sensação de que estamos numa tevenovela das nove, num domínio de verossimilhança pouco afeito a nuances e a um olhar mais generoso para o complexo e delicado contexto sociopolítico que o filme pretende abordar. Não há nenhum problema que negros ou negras tenham papeis de médicas/advogados ou quaisquer outras profissões (ao contrário, isso é ótimo!), o que busco apontar é que o filme apresenta um olhar (em termos mesmo de um tipo de visualidade) e para um discurso retórico muito aderentes aos padrões típicos da nossa classe média branca expressa pelos principais veículos midiáticos, que expressa muito pouco a dor e a resistência de nosso povo preto, mas parece que a pasteuriza incorporando as dinâmicas por já muito desgastadas do espetáculo de mercado. Um exemplo típico é a personagem da vilã interpretada por Adriana Esteves, uma caricatura diretamente ligada à sua personagem de uma telenovela de grande sucesso. É incrível como cada um dos atores parece estar em uma diferente frequência, o que nos indica que nem sempre um grande ator torna-se necessariamente um bom diretor de atores.
Ao mesmo tempo em que MEDIDA
PROVISÓRIA levanta questões importantes e busca, por meio de uma comédia
caricata futurista (nisso bem mais interessante que MARIGHELLA), um diálogo
imaginativo com nosso contexto social, suas contradições são muito aparentes.
Me parece muito pouco provável que o cinema negro brasileiro e um debate fecundo
sobre nossas estruturas sociais racistas sejam propostas por um produto da
Globo Filmes coproduzido por Daniel Filho. Com esse texto, não pretendo
simplesmente desmerecer esses dois filmes, mas apenas sugerir, à guisa de
reflexão/provocação, que a ampla aceitação/visibilidade desses filmes é um
sintoma do nosso tempo, desse cruzamento ambíguo entre estética e política,
entre cultura e comércio, entre contestação e marketing. Os falsos debates em
torno desses filmes, deixando de lado outros filmes brasileiros muito mais
potentes, me parece que apontam para a crise em que vivemos, uma crise da
cultura de esquerda em transformar o nosso sentimento de indignação em material
vivo para uma arte que seja de fato questionadora, reflexiva e potente. Esses
filmes expressam os paradoxos da produção de cultura (e de pensamento) de certa
“esquerda hegemônica”, que apontam para os limites em analisar de forma mais
complexa ou mesmo questionar a fundo as estruturas sociopolíticas que nos regem,
pois estão completamente inseridos/comprometidos até o pescoço com esses mesmos
valores que se propõem a criticar.
Comentários