[Tiradentes2022] O céu está azul com nuvens vermelhas
MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES
MOSTRA RETROSPECTIVA 25 ANOS
O CÉU ESTÁ AZUL COM NUVENS VERMELHAS
de Dellani Lima
Visto de hoje, o delicado e minimalista
O céu está azul com nuvens vermelhas parece um filme inofensivo, mas, quando
foi exibido na Mostra de Tiradentes em 2006, o filme despertou uma certa
celeuma. Naquele momento, parecia incompreensível para alguns exibir um filme
como aquele numa sala de cinema (ainda que numa tenda rs) ou numa mostra de
cinema “respeitável”: era um filme cujos procedimentos destoavam frontalmente
do projeto do “cinema da retomada”, em termos de roteiros com uma proposta
direta de comunicabilidade que abordassem, de forma direta, a identidade
perdida de um país, realizados com editais públicos que mostravam um esforço de
produção, num projeto de industrialização e profissionalização do setor. Muitos
dos jornalistas que cobriam o evento, especialmente os oriundos da imprensa
escrita, atacaram o filme como meio de questionar a curadoria como era possível
um filme como aquele ser selecionado para a Mostra de Tiradentes.
É importante falar desse
contexto histórico para esboçar a importância desse filme, e o papel da Mostra
de Tiradentes na projeção de novos valores curatoriais de renovação do cinema
brasileiro do período, em torno do que muitos chamaram de “novíssimo cinema
brasileiro”. O céu é composto de duas camadas: na primeira, totalmente passada
no interior de uma casa, uma mulher divide sua rotina com três homens: seu
esposo, seu irmão e seu pai. Na segunda, o filme colhe depoimentos num parque
em Belo Horizonte, perguntando a passantes qual seria a cor do amor: vermelha
ou azul.
No nosso momento atual de
profusão dos chamados “filmes de pandemia”, é curioso vermos a primeira parte
de O céu, totalmente filmada no interior de um apartamento. Essa certa
claustrofobia, reforçada por planos fechados e pela quase total ausência de
diálogos entre os personagens, expressa um desejo de olhar para um interior. No
entanto, esse intimismo não está ligado à interiorização de base psicológica (à
la Bergman) nem tampouco aos elementos mais típicos da “dramaturgia do comum”
de base realista. Ainda que o filme esteja bastante contaminado de um desejo de
comum, O céu não apresenta cenas de descrição realista da rotina da personagem,
mas as situações são criadas quase como esquetes independentes, sem progressão
narrativa, mais próximas de uma fenomenologia do instante que se aproxima de
procedimentos da videoarte.
É preciso destacar a influência
da videoarte nesse filme, seja pelo diálogo com os trabalhos anteriores de
Dellani em seus curtas-metragens seja pelo próprio papel da videoarte mineira
nesses primeiros filmes (como se pode ver claramente nos agradecimentos ao
final do filme, que cita artistas como eder [Eder Santos] e marcelão [
Marcellvs L.], referidos de forma afetiva). Dellani utiliza alguns
procedimentos típicos da videoarte, como a manipulação cromática dos planos
(como a saturação ou a superexposição) e um desejo de lidar com o atores muito
mais como um campo de presença performática do que com um desejo de composição de
personagens oriunda do ator clássico. Um exemplo dessa fuga de uma abordagem de
dramaturgia do comum com base realista é quando o irmão joga água em pequenas
pedrinhas no canto de uma banheira. Ou quando dois personagens se sentam para
cortar braços e pernas de pequenos bonequinhos de plástico. Ao mesmo tempo, há
momentos mais realistas dessa dramaturgia do comum, quando os personagens
cozinham ou lavam pratos. A água é um elemento muito próprio do filme (chuva,
banhos, louça lavada). Ao mesmo tempo, o filme é impregnado de uma forte
melancolia, dominado pelos silêncios, pelos tempos largos, por uma certa afasia
que não expressa necessariamente um tédio nem uma falta de perspectivas mas um
desejo de reinventar uma poética do cotidiano por meio de uma tendência quase
ritualística. O punk Dellani Lima atravessava sua fase mais zen. O céu é um de
seus filmes mais delicados, preenchido por uma ideia do cinema-xamã, algo que
Dellani veio desenvolver posteriormente em um texto de 2014 escrito para a
mostra Cinema de Garagem. Nele Dellani defende um cinema poético que busque “o
sonho como meio de acessar a essência das coisas”. De fato, O céu parece
transcorrer como um sonho, por seu desejo etéreo, enfatizado pelas transições
com fades suaves em branco, como se o filme fosse atravessando por espessas nuvens
de algodão, além da superexposição das imagens. Essa supexposição, acentuada
pela saturação, é curiosa, pois Dellani realiza um filme silencioso e
enclausurado mas bastante iluminado. Essa luz que invade o filme é que nos
permite afirmar que O céu transcende sua suposta melancolia para buscar uma
outra forma de habitar o mundo, em que essas esquetes performáticas sugerem um
certo estado de busca interior mas também um equilíbrio, uma forma de paz. Há
um momento bonito quando os personagens disputam uma partida de futebol com um
pequeno campo de madeira com tachinhas e a bolaé ua moeda empurrada por
petelecos. Ou ainda quando fazem bolhas de sabão na sacada. Uma proposta do
jogo ou da brincadeira como forma lúdica, quase como um desejo de voltar a ser criança,
mas também uma outra abordagem do tempo como matéria (o que há para ser
observado nesses planos, mais do que os gestos dos corpos dos personagens é a
própria passagem do tempo). Por isso, o Céu destoa em outros pontos dos
procedimentos típicos da videoarte, especialmente, a meu ver, por uma vontade
de propor um tempo cinematográfico, que projeta outros modos de ser, na
pesquisa por esse certo xamanismo.
Trancafiada no interior do
apartamento, essa personagem feminina, protagonista do filme, vê a cidade quase
como ameaça, vista apenas de planos ponto de vista do interior do apartamento,
como blocos de concreto fechados que parecem ameaçadores desse certo estado de
paz. No entanto, misteriosamente, uma segunda camada abre o filme não apenas
para a cidade mas para o encontro com outras pessoas. O filme vai a um parque
público de BH e cria um dispositivo em que pede a pessoas comuns a darem seus
depoimentos, em posição de close frontal, diante da câmera, com um longo pano
às suas costas, relativo à cor escolhida, disposto como um background, se a cor
do amor é azul ou vermelha. A heterogeneidade das pessoas escolhidas confere ao
filme um tom até mesmo popular, mas um popular que foge do popularesco ou do
demagógico. Ao mesmo tempo, vemos um recuo que registra a produção desse mesmo
dispositivo: por meio de um grande plano geral, vemos a atriz abordar os
transeuntes para ver se topam dar seus depoimentos. A atriz se transforma do
personagem performático para uma espécie de assistente de produção. E a maior
parte dos momentos selecionados mostra um fracasso: com certa timidez, ela
aborda as pessoas, que se vão. Acho muito bonita a forma de como o filme mostra
a simplicidade (ou a precariedade) de seu próprio modo de produção (o processo
de o próprio filme ser feito) e como encena a sua própria dificuldade de travar
um contato com o outro. De todo modo, é bonito o gesto de Dellani de romper com
a zona de conforto da encenação de sua ritualística performática restrita ao
interior do apartamento e buscar travar contato com as pessoas mais diversas
num espaço público.
É curioso que o filme de Dellani
na época tenha suscitado reações tão raivosas, visto que se trata de um filme
delicado e até certo ponto despretensioso. Essa sua leveza zen, essa ausência
de uma suposta pretensão, é que curiosamente incomodou os críticos. Mas sua
falta de elementos típicos de comunicabilidade não significa que se trata de um
filme hermético, pelo contrário. De todo modo, sua exibição ali em Tiradentes
foi um gesto provocativo lançado por uma curadoria audaciosa, que apontou para
a possibilidade de outros modos de produção e para outros modos de ser. Dellani
fez muitos outros filmes mas o reconhecimento de sua vasta filmografia ainda
não teve o seu devido reconhecimento. Quinze anos depois, passado o furacão
desse contexto de disputas no interior do campo do cinema brasileiro, O céu
pode ser apreciado por sua delicadeza zen (mas não sem conflitos, ainda que
sutis), pelos seus mergulhos em silêncio (a vida como uma bolha de sabão), por
sua tentativa honesta de sair de sua zona de conforto e tentar conversar com as
pessoas, ou seja, pela sua forma sincera, delicada, imperfeita e pobre
(imperfeito no sentido de Espinosa e pobre no sentido de Grotowski) como se
oferece ao mundo.
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