[Tiradentes2022] Cinema em transição - Sessão Curtas 2
MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES 2022
Sessão Curtas 2 da mostra temática Cinema em Transição:
QUAL É A GRANDEZA?, de Marcus Curvelo
VOZ NA ESCURIDÃO, de
José Hélio Neto
QUAL É A GRANDEZA?, de Marcus Curvelo
Sua filmografia está centrada
numa ideia de fracasso. O fracasso como sintoma, não como estágio, mas como
estado imanente. Em seus primeiros projetos, Curvelo não conseguia financiamento
porque seus filmes eram “muito pouco chiques”, muito pobres dentro da estrutura
do cinema brasileiro dos anos 2000, em torno de projetos importantes, de esmero
técnico e de comunicabilidade com o mercado. Agora, ele parece “ser chique
demais”, como homem branco hetero de classe média privilegiado dentro do atual
campo do cinema brasileiro. Ou seja, o cinema de Curvelo parece estar sempre
fora, ele é sempre “o outro”, deslocado do seu tempo, em torno dessa ideia de
fracasso.
Mas, num curto período de tempo, estimulado/apoiado
por um grande curador brasileiro de posição internacional, Curvelo se viu surpreendentemente
dentro de um certo contexto de visibilidade do cinema brasileiro independente,
cujo ápice ocorreu com a premiação do genial Mamata no Festival de Brasília. Ali, Curvelo viu a esperança de
finalmente passar a viver de cinema, de ter seu trabalho reconhecido. É a
famosa esperança do sucesso, da repercussão e da visibilidade.
A partir de então, seu cinema
ficou em meio a uma encruzilhada. Era preciso, agora, atender às expectativas
criadas em torno de sua própria autoimagem: a do personagem-de-si Joder. Como
seria possível avançar sem expor os esgotamentos de uma certa repetição dos
usos de um mesmo dispositivo?
Mas, na verdade o que mudou desde
então? Vemos, então, de novo, novamente, ou como sempre, Curvelo nesse seu
típico lugar: o do fracasso. Mas Curvelo reflete sobre essas questões por meio
de um humor cáustico, uma espécie de pastiche de si, uma autoironia com sua
própria posição.
Qual é a grandeza então de ser
artista, de ser cineasta? Nesse curta singelo, repleto de contradições, Curvelo
e seu amigo Murilo (chamado de Isaías), uma espécie de alter-ego do realizador,
vão até a Ilha da Moré, naquele “litoral por dentro” de Salvador, na Baía de
Todos os Santos, numa viagem de passeio. Curvelo, por meio de Murilo (Isaías?),
interage com as pessoas locais, oferecendo DVDs dos seus filmes, anunciando que
vai desistir de sua profissão de cineasta.
A forma frontal como Isaías Murilo
Curvelo conversa com as pessoas locais expressa essa dificuldade de certo
cinema brasileiro contemporâneo em dialogar com o público, fora de sua bolha
específica. Ao mesmo tempo, revela a dificuldade de o cineasta independente
manter o seu ofício.
Desistir, mas ao mesmo tempo
continuar. Filmar quase como um aposentado com grana, que vai passar o fim da
vida se divertindo comendo moquecas e filmando o que há ao seu redor. Ou se
inspirar em Tierry, ídolo da música baiana, por insistir até um dia finalmente fazer
sucesso. Curvelo, ao contrário dos pescadores e trabalhadores daquele local,
tem a opção de desistir, tem a opção de fracassar. Outros (a maioria) só
continuam, porque não lhes resta outra alternativa.
Mas o que é belo nesse gesto é a
possibilidade dessas duas classes sociais sentarem lado a lado e conversarem,
em poderem ser talvez amigos ainda assim. Pois, ao mesmo tempo, enquanto
conversa com as pessoas, Curvelo filma, e, ao final, se o filme se realiza, ele
quebra a promessa anunciada desde o início. Se ele pede autorização às pessoas
para serem filmadas, é porque suas imagens serão utilizadas em um filme.
Insistir e resistir mas até quando? Por trás de sua irreverência e de seu
humor, a ideia de morte vem assolando o cinema de Curvelo (“Filmar para não
morrer”, ou “eu desisto”, como diriam as cartelas que passam despercebidas no
início e quase ao final de Mamata).
Desistir de filmar seria desistir de viver? Daí surge um plano desconcertante
em que um coco é esmurrado diante de uma espécie de viga até que ele se abra
por completo e nos ofereça seu miolo branco para ser devorado. Resistir,
insistir até que nossa cabeça se arrebente por completo. Viver “dando murros em
ponta de faca” ou como “água mole em pedra dura”?
Curvelo utiliza um recurso
curioso: ele dubla a voz das pessoas comuns que lhe atravessam. Homens,
mulheres, idosos, não importa: é sempre o mesmo tom de voz expresso pelo
próprio Curvelo, nessa dublagem que mais parece a dos filmes americanos que
invadem nossas tevês. Se a quebra do modelo sociológico, desde o clássico livro
de Bernardet, é “dar a voz ao outro”, Curvelo representa o outro com sua
própria voz. Nesse contato direto, não há qualquer resquício de populismo
demagógico desse retrato de classe: ambos ali, trabalhadores e classe média
artística estão à margem de um sistema muito maior, os empreiteiros que fecham
as ilhas e cobram royalties para sua visitação.
Nesse curta, Curvelo promove uma
espécie de recuo, que parece muito consciente de seu lugar de completa solidão
dentro do atual campo de forças do cinema brasileiro. Esse recuo, depois de
certo reconhecimento ou de um longa, que não o levou a qualquer “lugar de
prestígio”, Curvelo parece ter retomado ao velho espírito dos seus primeiros
curtas do Cual, àquele gesto baiano provocativo meio que dos primeiros filmes
de Ramon Coutinho. Esse recuo, que é uma espécie de retorno, é na verdade uma
permanência no seu lugar de sempre: o lugar do fracasso, a obsessão pelo
fracasso, a aposta pelo fracasso – uma aposta ética que me lembra da velha
frase de Beckett “preciso fracassar melhor”. Prosseguir desistindo, permanecer
fracassando é o que torna tão político esse último curta de Curvelo – o que alimenta
o delicioso paradoxo de que, ao anunciar sua desistência, Curvelo sai dessa
declaração com mais um filme. Curvelo filma com uma incrível despretensão de
gosto do presente, mas uma sensação de que, ao mesmo tempo, cada segundo é um
gesto de despedida, pois nunca se sabe de fato se será possível continuar.
Em Rua Ataléia, André Novais Oliveira filma sua família durante mais
um dos apagões de luz que se tornaram infelizmente cada vez mais comuns,
especialmente em nossas periferias. Trata-se de uma filmagem antiga, retomada
agora por Novais, já em pleno momento áureo de visibilidade em torno de sua
filmografia, após o merecido reconhecimento artístico de seu trabalho, em
especial após Temporada. Diante desse
lugar social, Rua Ataléia é uma
revisitação, por outras perspectivas, de lugares e corpos já habitados pela
filmografia de Novais. Assim, Rua Ataléia
funciona para o cinema de Novais quase como Tarrafal
dentro da filmografia de Pedro Costa.
É algo diferente o que propõe o
singelo Voz na escuridão, de José
Hélio Neto. É difícil obter informações sobre o realizador, que acredito morar
em Hortolândia, no interior de São Paulo. Esse curta, que poderia bem ter sido
realizado em um único plano-sequência, se concentra na conversa entre dois
amigos. O que está em jogo é decidir se se deve insistir em tentar fazer
cinema, ou se se deve desistir para arrumar um trabalho mais estável. Esse
eterno dilema do artista iniciante periférico diante das (o)pressões do sistema
de valorização do capital é expresso por meio de uma estética minimalista, que
dialoga com a dramaturgia do comum. O ambiente totalmente escuro é brevemente
iluminado apenas pela luz da tela do celular. Os amigos conversam não
presencialmente, mas por mensagens de áudio no whatsapp. Penso, então, nessa
possível relação não apenas com Rua Ataléia,
e com Qual é a grandeza?, mas também
com Sete anos em maio, de Affonso
Uchoa.
Assim como no extraordinário
média de Uchoa, os dois amigos travam uma conversa que na verdade é uma
confissão. Mas, em vez da fogueira a céu aberto do filme de Uchoa, a luz é a do
celular, num aplicativo barato, dentro de casa. É curioso pensarmos que, por
trás do discurso típico de desgaste dos aplicativos que multiplicam as fake
news, Hélio Neto viu a luz do visor do celular como única luz possível que pode
reverberar esse afeto distante, seja de sua mãe seja de um amigo. Essa luz artificial
desse dispositivo tão desgastado pode ser essa fogueira digital que nos aquece.
Luz essa que nos remete também ao próprio cinema – essa máquina que se alimenta
de luz e que também nos pode ser tão humana.
A frontalidade do diálogo entre
os dois amigos é desconcertante. Não vender seu único instrumento de trabalho
(a câmera). Como reação ao desemprego e ao desamparo, a resposta é filmar o
mundo. Não recuar nem desistir mas aprofundar. Esse é o gesto político do filme
de Hélio Neto que, em vez de vociferar palavras de protesto, busca, por meio de
um intimismo sutil, se reconectar com a produção artística como forma de
habitar o mundo. A forma lúdica e honesta que o diretor encontrou para encenar
essa questão tão delicada é profundamente inspiradora, porque humana e ética.
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