[Tiradentes2022] BEM-VINDOS DE NOVO
[MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES 2022]
MOSTRA AURORA
BEM-VINDOS DE NOVO
de Marcos Yoshi
Bem-vindos de novo apresenta-se como um documentário em primeira
pessoa sob o âmbito familiar. Assim, seria possível, a princípio, relacioná-lo a
toda uma linhagem de filmes do cinema brasileiro contemporâneo, como Elena, de Petra Costa, Os dias com ele, de Maria Clara Escobar,
Ontem havia coisas estranhas do céu,
de Bruno Risas, e até mesmo os filmes de André Novais Oliveira, apesar de não
serem documentários em sentido estrito.
No entanto, o primeiro longa de Marcos
Yoshi desenvolve um caminho próprio e sua contribuição não reside propriamente
na suposta inovação de suas soluções formais. Antes de dispositivo que converge
boas partes de atenção prioritariamente para si, Yoshi adota opções formais até
certo ponto discretas mas extremamente funcionais para melhor dar a ver o que
está em jogo com o filme: uma articulação orgânica entre os descaminhos de sua
própria família e uma investigação de uma memória social da geração dos
decasséguis brasileiros dos anos 1990.
Assim, o filme se articula por
meio de duas camadas, imbricadas de modo totalmente orgânico. De um lado, o
âmbito pessoal. Por meio dos recursos do cinema em primeira pessoa, Yoshi
investiga os impactos em sua própria família acerca da decisão dos pais em deixar
os três filhos com a avó e viajar para o Japão. Ainda crianças, os filhos
cresceram sem a proximidade dos pais. Quando estes retornaram do Japão apenas
13 anos depois, numa viagem prevista para durar apenas dois anos, eles não se
reconhecem mais. Os pais passaram a ser estranhos para os filhos, e vice-versa.
Dessa forma, o cinema em primeira pessoa surge como método para melhor dar a
ver por dentro, de forma mais profunda, os dilemas e impactos dessa decisão e seus
efeitos no presente. O filme passa a inserir uma camada metalinguística que
reflete sobre a sua própria construção. Quando tem a ideia de fazer o filme e
passa a filmar o cotidiano dos pais, que moram em outra cidade, Yoshi utiliza o
cinema como meio de reaproximar uma família partida. O filme é uma forma não
apenas de Marcos conhecer os pais, mas também de os pais o conhecerem.
Em outros momentos do filme, o
cineasta compartilha com o público a dificuldade de tomar certas decisões.
Nesse aspecto, há um mote central, apresentado pelo próprio cineasta: a
dificuldade desse projeto é que ele precisa se esforçar ao máximo para não
apenas ser um bom cineasta (fazer um bom filme) mas também ser um bom filho.
Esse dilema ético persegue Yoshi porque, como cineasta e como filho, ele
precisa fazer opções. Em alguns momentos, ele precisa permanecer filmando mesmo
momentos delicados que possam expor de forma um tanto invasiva a intimidade dos
pais (como uma crise de choro de seu pai ou uma discussão em que o casal não
sabia que estava sendo filmado). Em outros, ele não sabe se larga a câmera para
ajudar os personagens que estão na frente dela (quando o pai deixa cair as
compras em um carrinho). Já em outros, ele divide com o espectador a
dificuldade em optar por manter na montagem final uma cena previamente filmada.
No entanto, essas camadas metalinguísticas não surgem como mero recurso de
estilo na carona da hype dos dispositivos, mas por um profundo sentido ético do
realizador, quase como um comentário (uma justificativa, para os próprios pais
e para os espectadores) que certas cenas, ainda que delicadas, precisam ser
incluídas, pelo bem do filme.
Nesse sentido, a narração de
Yoshi irá costurar as linhas de condução do filme, não apenas descrevendo
determinadas cenas, fazendo conexões entre elas, mas também como comentários do
realizador sobre o próprio processo e sua posição ética.
É preciso perceber que o jovem
Yoshi não é propriamente um documentarista mas sua trajetória nos seus curtas-metragens
anteriores (este é seu primeiro longa) foi construída basicamente por meio do
cinema de ficção. Assim, Yoshi possui grande habilidade em estruturar seu
documentário como um filme de ficção, por meio de arcos narrativos, com pontos
de virada e estabelecimento do drama principal e do conflito, e especialmente
pela dramaturgia em torno de personagens fortes, apresentados em camadas
complexas. A delicadeza no exame dos personagens é uma das mais fortes
características dos curtas de Yoshi. Assim, os personagens todos ganham vida,
com camadas psicológicas complexas e bem delineadas – e não apenas o casal
principal, mas todos os personagens: irmãs, avó e ele próprio.
Sabemos todos que, para a
cultura oriental, especialmente a japonesa, um ponto bastante delicado é a
expressão dos sentimentos. Mas talvez a arte seja o refúgio possível onde esses
sentimentos represados podem ser experienciados. Desse modo, vejo Bem-vindos de novo com uma certa camada
de melodrama, mas um melodrama nada latino mas ponderado pela direção seca e
segura de Yoshi. É impressionante a maturidade do realizador em seu primeiro longa
para apresentar um drama pessoal tão delicado, especialmente em se tratando de
sua própria família. É justamente a condução sóbria de Yoshi desse aparente
melodrama que curiosamente permite ao filme desvelar naturalmente toda a sua
enorme camada emocional.
O que é bonito em Bem-vindos de novo é que as opções de
Yoshi podem ser entendidas como esse entrecruzamento, não sem conflitos, entre
sua influência oriental e sua experiência brasileira. Como produto desse
conflito, que é no fundo a essência do próprio filme, Bem-vindos de novo é profundamente brasileiro e profundamente
japonês. A importância da família e a posição do pai, o papel das refeições, a
ritualidade da rotina, as dificuldades de expressar os sentimentos e lidar com
a gestualidade do corpo são elementos que nos trazem aspectos de ancestralidade
da cultura japonesa. Ao mesmo tempo, tudo é muito brasileiro. Um dos elementos
que escolho para dar a ver essa comunhão entre os aspectos brasileiros e
japoneses desse filme multicultural é quando Yoshi se aproxima dos pais para tocá-los.
Sabemos que a proximidade do corpo é algo difícil para a cultura japonesa. No
entanto, há um momento em que Yoshi faz massagem nas mãos da mãe – ela talvez
não tenha se tornado esteticista porque suas mãos carregam as cicatrizes do
duro trabalho manual nas fábricas do Japão. Em outro momento, um dos mais
comoventes do filme, Yoshi pergunta ao pai se ele pode acariciar sua cabeça – algo
ainda mais delicado quando sabemos que seu pai foi operado de um tumor e teve
os movimentos da face semiparalisados.
Se Yoshi toma como referência os
pilares tradicionais da sociedade japonesa, fica claro que o filme não produz
um retrato totalmente romanceado dessa cultura. A família aparece de forma
ambígua, em suas contradições, seus esquecimentos e apagamentos, e também em
seus eventuais egoísmos. A centralidade do pai não raras vezes resvala para o
egoísmo e para o machismo, mas também para a sua insegurança e sua fragilidade.
Vemos o efeito do machismo na vida da avó e especialmente da mãe, cujas
decisões são tomadas em função do marido, mesmo à custa de seus sonhos e
projetos (não poder ficar no Brasil, não ser esteticista, ter que trabalhar num
setor que lhe desperta traumas, etc.). O filho expõe os limites dos pais, às
vezes de forma dura, mas também os acolhe, procurando não julgá-los mas
compreendê-los em suas opções, até mesmo em seus erros e suas fraquezas. O
filme não tem receio de expor certas fissuras no interior da família mas não
opta pelo ressentimento, e sim pela possibilidade do perdão e da comunhão para
superar traumas e desafios.
Mas, para além de um profundo
reencontro familiar, Bem-vindos de novo possui uma segunda camada, tão rica
quanto a primeira: a coletiva. O filme não é apenas sobre a história particular
daquela família, mas claramente se refere a algo além dela. Assim, o filme joga
luz para dois aspectos: o primeiro é a dificuldade de plena adaptação dos estrangeiros
ao país. Num país de muitas culturas, com considerável influência de seus
imigrantes, o filme de Yoshi mergulha a fundo nessa grande dificuldade de
integração: o casal protagonista, já de uma segunda geração de imigrantes
japoneses para o Brasil, é estrangeiro tanto no Brasil (seu país de origem)
quanto no Japão (o país de seus antepassados). No fundo, eles sempre serão
estrangeiros, seja onde for.
O segundo ponto é que o filme
apresenta profunda análise dos impactos sociais da geração dos decasséguis –
brasileiros de origem nipônica que, na crise econômica brasileira dos anos 1990
mas com uma estrutura cambial favorável, emigram para o Japão em busca de
oportunidades, como mão de obra barata nas fábricas da região. No entanto, o
sonho de fazer fortuna e voltar ricos para sua família no Brasil deixaram
marcas profundas em famílias partidas e dilaceradas. No Japão, o trabalho
manual nas fábricas feito pelos estrangeiros é extremamente danoso, e além das
sequelas físicas e emocionais, o dinheiro é pouco, o que faz com que permaneçam
muitos anos além da expectativa, e muitos mal consigam retornar. Como a cultura
japonesa ainda é muito pouco retratada no cinema brasileiro, Bem-vindos de novo oferece uma profunda
contribuição sobre os efeitos nocivos na geração dos decasséguis, mas também
pode ser visto por uma perspectiva mais ampla: como o capitalismo, por meio da
opressão dos regimes de trabalho, alimenta a esperança de pessoas comuns com o
sonho da fortuna para torná-las meras peças da grande engrenagem de reprodução
do capital, dilacerando famílias inteiras. No momento de crise econômica e de
valores que atravessa o Brasil contemporâneo, o filme possui então enorme
contribuição de alertar para os riscos desse regime em nossos modos de ser.
Assim, nesse aspecto, Bem-vindos de novo
pode ser visto, a grosso modo, como uma espécie de Você não estava aqui (2019), de Ken Loach, mas visto pelo ponto de
vista dos filhos.
As soluções até certo ponto
discretas de Yoshi, se vistas de forma mais atenta, revelam um cinema
surpreendentemente bastante maduro para seu primeiro longa, e devem ser
percebidas sua ousadia e coragem em expor a si e sua família – algo ainda mais
delicado em se tratando, como já dissemos, da cultura japonesa,
tradicionalmente recatada em sua intimidade. A habilidade de Yoshi na condução
de diversos elementos de linguagem, seja do documentário contemporâneo seja da
narrativa ficcional, evidencia a contribuição desse imenso filme, que produz um
amálgama entre um retrato particular e delicado de uma família (a família do
próprio realizador) e a análise coletiva do fracasso dos sonhos de uma geração
e um país, iludidos pelas seduções da esperança do progresso e da fartura. O
capitalismo é, acima de tudo, uma máquina de destruir sonhos, assim, como em
outra medida, também pode ser o cinema, se os artistas não controlarem seus impulsos
de reificação e seus egos. É o caminho oposto que a ética de Yoshi toma – e
essa é sua principal opção. Expor a fragilidade não para cativar as audiências
tornando o drama produto de espetáculo de consumo ou dispositivo-fetiche para a
sua própria vitrine no mercado de arte, mas simplesmente para mostrar os riscos
e impactos na carne do presente. Essa é a enorme contribuição desse filme de
Yoshi.
Por fim, apenas um último
elemento provocativo. No nosso cinema e na nossa sociedade no Brasil, tão
dilacerada, mesmo no interior dos nossos setores mais progressistas, entre
certos setores mais radicais do identitarismo que impõem pautas obrigatórias,
por meio do constrangimento e da ameaça da cultura do cancelamento, existe
espaço, mesmo dentro das culturas identitárias, a se pensar um espaço para além
das dicotomias? Entre o conflito racial entre brancos e negros, como pensar um lugar
para a cultura amarela? A delicadeza de Bem-vindos
de novo aponta para todo o trabalho de Yoshi no cinema, que está apenas
começando, e que desperta provocativamente em nós, mesmo que de forma delicada,
a importância e o orgulho de tratar de questões que alguns possam rotular de
mero “yellow people´s problem” com um tratamento que toca os corações e mentes de
todos os tipos de etnias e formações sociais, ampliando seu alcance comunitário.
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