(IFFR2022) A criança
COBERTURA DO FESTIVAL DE CINEMA DE ROTERDÃ (IFFR2022)
A CRIANÇA
de Marguerite de Hillerin, Félix Dutilloy-Liégeois
(Portugal/França, 2022, 110 min)
Mostra Tiger Competition
Ainda
que não seja um filme que propõe, de forma mais radical, novos caminhos para a
linguagem ou a dramaturgia do cinema, A criança me pareceu ser um dos destaques
dessa edição da Tiger Competition do Festival de Roterdã 2022, pela forma
madura como a dupla de jovens realizadores resolveu a mise en scène dessa joia
dura e delicada.
O cinema brasileiro é um cinema
bastante plural. Assim como o cinema português. Mas, ainda assim, sinto que A
criança é um filme que bebe da profunda tradição do cinema português, por meio
de três elementos: o drama sóbrio de época, baseado em adaptação
literária/teatral, com forte presença da palavra, e por uma notável melancolia
que expressa, de forma indireta, um decadentismo sobre os rumos da própria
nação portuguesa.
A criança explora um mundo que
desmorona lentamente por dentro, por meio de suas próprias contradições. Os
personagens não deixam de ser personagens-tipo, mas possuem uma estrutura psicológica
elaborada o suficiente para mostrar sua individualidade, suas contradições,
seus medos, desejos e esperanças. Bela é um menino pobre adotado por um casal
nobre mas que acaba por tomar o lugar do filho, quando este vai a uma viagem e
nunca retorna. Bela deve ocupar o lugar do filho não apenas por questões
afetivas mas também pragmáticas, uma vez que seu tino para os negócios pode
ajudar a recuperar economicamente essa família ameaçada. Mas ele está
apaixonado por uma empregada marroquina que trabalha numa paróquia e não parece
interessado em ocupar esse lugar.
Tudo, então, vai desmoronar.
Bela precisa deixar de ser essa criança e tornar-se adulto. Tornar-se adulto
significa resignar-se aos papeis sociais, respeitar os valores das instituições
e, acima de tudo, deixar de amar. Aos poucos, uma teia de ciúmes, segredos,
paixões, ressentimentos e traições vão se desvelando, mostrando as contradições
internas desses personagens que levarão ao fracasso final.
No entanto, ao mesmo tempo que o
roteiro articula com habilidade as esferas individual (a psicologia) e coletiva
(o sociológico), quase como uma novela de Stendhal ou Flaubert, o filme possui
um sutil, delicado mas poderoso trabalho de mise en scène.
Não é o filme que desperte as
atenções por suas invenções formais, mas isso não implica que não haja um
profundo trabalho de linguagem. Dou um exemplo. Há um momento em que, por meio
de uma narração, Bela afirma que notou uma prega, perto da boca, no rosto do
amigo Jacques, que vemos em close. “Um vinco que significava quase nada”. A
percepção desse vinco no rosto do amigo enquanto lhe contava um caso fez com
que Bela desistisse e mudasse o rumo da história. A criança é justamente sobre
como uma crise se instala por trás desse pequeno vinco. O filme é justamente
sobre o que esse “quase nada” revela, e só é possível percebermos o que
acontece por esse “quase nada”.
Em outro momento,
Bela se recolhe ao seu quarto, num momento de crise. Ele se olha no espelho, mas,
ao se perceber retraído, muda sua postura. Passa a ser outro, maior, “o novo
príncipe da casa”. Ele vai ao corredor, e arranca a cortina que protege o
quadro do verdadeiro filho. O verdadeiro filho é um quadro; sua formação como
príncipe acontece como imagem distorcida diante de um espelho. Por meio de ecos
de um Oscar Wilde, enquanto Bela olha para essas imagens distorcidas de si, entre
o espelho e a pintura, está o filme. Ao mesmo tempo, quando assim ele se
percebe, ele já não é mais o filho, mas sim o próprio pai. A criança cresceu e
se tornou adulta. E, quando se cresce, não se pode mais amar. Jacques e Rosa, os
eternos criados, se vão para longe. Quem ali permanece está destinado a
apodrecer. Enquanto isso, a natureza permanece, com as folhas das árvores que
se agitam. São nesses momentos que a sóbria adaptação literária de Der Fidling, de Heinrich von Kleist, com forte uso da palavra e produção esmerada aos moldes do
melhor estilo Paulo Blanco, desvela sua vocação cinematográfica, por como os
jovens diretores encontraram uma forma cinematográfica pessoal própria, ainda
que em diálogo com uma ampla tradição do cinema português, para expressar esse sentimento
dessa melancolia tão portuguesa.
Comentários