MÃES DE VERDADE
MÃES DE VERDADE
de Naomi Kawase
MÃES
DE VERDADE pode ser visto como um filme que trata, de forma delicada, de um
tema social bastante complexo: a adoção. Só por esse aspecto, pelo
desenvolvimento interior dos personagens e sua relação social, já haveria
bastante a se comentar sobre esse filme. Mas para aqueles poucos (como eu) que
procura ver o cinema não apenas como o estudo de uma linguagem mas sobretudo
como um projeto de vida, MÃES DE VERDADE começa a ser visto por uma outra
perspectiva: a de ser um filme de Naomi Kawase.
Digo
isto para tentar expressar um pouco da dificuldade em analisar esse filme,
tendo em vista a filmografia da realizadora. Com seus três primeiros filmes,
Kawase se tornou um dos mais proeminentes nomes no cinema contemporâneo de
meados dos anos 2000. SUZAKU, seu primeiro longa, fez de Kawase a mais jovem
cineasta a receber o prestigioso Camera d´or no Festival de Cannes. SHARA e A
FLORESTA DOS LAMENTOS confirmaram o talento de Kawase. O cinema de Kawase
também se prolonga para seus belíssimos documentários em primeira pessoa. Esse
conjunto de filmes estabeleceu uma das mais prodigiosas artistas no cinema dos
anos 2000. Kawase, a menina prodígio, a jovem menina do interior do Japão que
foi para Paris estudar cinema e realizou filmes que entrecruzavam experiências
pessoais de sua juventude com uma linguagem expressiva, um apreço pelo sensório
impermanente que alguns denominaram de “cinema de fluxo”. Todos os filmes de
Kawase são sobre o conflito entre as tradições do passado e o desejo individual
de futuro, e como essas relações entre a vida e a morte se bifurcam no seio da
família japonesa. Haveria muito a se falar sobre isso, como esses temas tão
caros ao cinema japonês são explorados por Kawase por outras perspectivas.
Mas
um ponto deve ser levado em especial consideração, algo que não encontrei
nenhuma referência em textos em português ou inglês, entre os tantos já
escritos sobre essa realizadora: sua relação com o xintoísmo. Os filmes de
Kawase possuem uma relação íntima com o xintoísmo, especialmente pelo fato de
Kawase ter nascido em Nara, berço da religião, cidade presente em muitos filmes
da realizadora. Mas não só por isso: não vou conseguir aprofundar esse ponto,
mas os filmes de Kawase me parecem ser profundamente xintoístas, e não
budistas. O xintoísmo, uma cultura milenar japonesa, se manifesta em seus
filmes pela presença da natureza e pelo peso do passado, por um sentido de
espiritualidade que emana das coisas e resgata uma tradição ancestral. As
personagens de Kawase precisam promover um acerto de contas com seu passado,
com sua origem. É preciso entender as origens, as raízes para perceber o que
somos – algo profundamente diferente do budismo, cujo equilíbrio zen se baseia
nas impermanências do tempo presente.
Mas,
como dizíamos, esses três longas de ficção e os docs de Kawase afirmaram a
realizadora como um dos grandes nomes do cinema contemporâneo. A partir de
então, a filmografia de Kawase caiu num certo marasmo, num sentimento de crise,
com filmes que apresentavam simplesmente uma diluição de suas abordagens
anteriores, como Nanayo e Hanezu. O que fazer então? Me parece que nos últimos
anos, Kawase promoveu uma grande virada na sua filmografia, promovendo filmes
de narrativa mais linear, calcados em personagens de identificação e de
abordagem psicológica. O filme que mais representa essa virada foi o
estranhíssimo SABOR DA VIDA. Estranhíssimo exatamente porque, por trás do que
se apresenta como um filme absolutamente convencional, há algo que pulsa e
teima em sobreviver para além dele, um certo sentido de sublime, ou seja, o
cinema de Kawase ainda está lá.
Nesses
últimos filmes, Kawase parece optar por camadas mais planas de
comunicabilidade, em filmes de dramaturgia mais convencional, em personagens
que enfrentam as dificuldades do mundo mas em torno de um certo sentido de
inocência. Esses filmes parecem pouco notáveis, em termos da composição dos
personagens e do desdobramento da narrativa mas, ao mesmo tempo, existe um tom
cinematográfico, a busca por tempos mais esparsos, o diálogo com um humanismo
familiar japonês, traumas familiares entre o presente e o passado, um sentido
de dor ou de melancolia e um desejo de uma travessia que aborde a dor com uma
certa languidez, ou seja, um conjunto de características que retomam questões
típicas do primeiro cinema de Kawase por uma outra perspectiva.
Quando
vejo MÃES DE VERDADE, em torno do tema da adoção, vejo um filme que não raras
vezes mergulha em camadas de identificação que me parecem pouco originais. Ao
mesmo tempo, há um trabalho do tempo cinematográfico, uma distância respeitosa
quanto à dor dos personagens, planos da natureza, lampejos de luz que nos fazem
pensar como uma realizadora tão talentosa desperdiça os seus recursos diante de
um cinema tão protocolar. Procuro ver nesses lampejos um desejo por um cinema
que descosture (com paciência oriental) os fios tecidos pela narratividade cristalina.
É difícil perceber ao certo para onde exatamente se direciona o gesto de
Kawase. Alguns podem achar que é inevitável envelhecer: os traços classicistas
do cinema recente de Kawase revelam ao mesmo tempo um certo cansaço, uma
sensação de fracasso. Ao mesmo tempo, parecem atingir um público mais amplo,
tocando em questões que entrecruzam questões individuais e sociais. O xintoísmo
de Kawase, seu sentido profundo de espiritualidade, permanece lá, mas não de
uma forma expressamente sensorial e pessoal, mas agora embutida nos padrões de
um certo cinema clássico japonês. O movimento de Kawase poderia ser comparado,
assim, como o de Koreeda, mas mesmo Koreeda, em seus filmes mais lineares,
sempre mostrava personagens inquietos com as convenções da sociedade japonesa e
com seu destino, até mesmo uma certa ironia, mesmo que de forma bastante sutil.
Não parece ser o caso de Kawase: seu cinema recente parece mais voltado a uma
ideia de revelação e encantamento do que propriamente de um olhar mais crítico
para as contradições do seu tempo – e sobretudo do seu próprio cinema.
MÃES
DE VERDADE é um filme feminino, sobre mulheres que lutam contra sua condição
numa sociedade repressora. Mas o filme de Kawase não é um ADOÇÃO, de Marta
Meszaros, em que a maternidade é vista por uma perspectiva fora de qualquer
idealização, um retrato da solidão e do abandono revelado por meio de uma
dramaturgia dura, quase como um ventre que seca. Ao mesmo tempo, se Kawase está
interessada na redenção, na epifania, ela não mergulha a fundo na dor do
interior de seus personagens, como Dreyer ou Bresson. Essa melancolia lânguida,
com essa fluidez esparsa, está mais próxima da comoção do que de um embate
verdadeiramente doloroso com o mundo. Ainda que MÃES DE VERDADE mostre momentos
de uma realizadora talentosa, o que me frustra é que sua abordagem humanista
não é suficiente para verdadeiramente mergulhar nos traumas profundos de suas
personagens – há sempre um receio, uma timidez, uma plasticidade lânguida, que
afasta o filme daquilo que é mais precioso. Quando o filme parece tocar em algo
mais profundo, ele dá um rodopio e recusa, em torno de recursos de uma certa
banalidade. O que falta ao cinema recente de Kawase parece ser um tanto mais de
coragem.
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