CAVALO
CAVALO
de Rafhael
Barbosa e Werner Salles Bagetti
CAVALO já possui uma condição histórica: é o primeiro longa-metragem alagoano produzido a partir de um edital público. É um dos frutos dos editais de “arranjos regionais” da Ancine, que possibilitou, mediante um subsídio da agência federal aos editais estaduais e municipais, a realização de diversos primeiros editais em diversos locais do país, estimulando a descentralização dos recursos. Ainda, esse edital coroa todos os esforços de uma intensa mobilização política de uma geração do audiovisual alagoana, numa trajetória contínua de amadurecimento e reconhecimento. Além dos dois curtas-metragens de Ulisses Arthur, que saiu para estudar cinema na UFRB, no Recôncavo baiano, e realizou AS MELHORES NOITES DE VERONI (2017) – primeiro curta-metragem a participar do Festival de Brasília em 30 anos – e ILHAS DE CALOR (2018), temos a seleção de COMO FICAMOS DA MESMA ALTURA, de Laís Santos Araújo, para o prestigioso Festival de Rotterdam, agora em 2020. São alguns exemplos de visibilidade da recente produção alagoana, como se pode ver nas contínuas sessões da Mostra Sururu, que há dez anos exibe e discute a produção alagoana para o público local.
CAVALO
expressa sua adesão a uma proposta de cinema contemporâneo, por meio de um
modelo híbrido entre o documental e a ficção. Numa certa medida, CAVALO
acompanha o processo de criação, ao aproximar-se dos ensaios de uma companhia
de dança. No entanto, nesse filme de curiosos entremeios, não se trata
propriamente de um documentário sobre os ensaios da companhia. Entrecortando
com a filmagem dos ensaios, os diretores optam em abordar algumas questões
pessoais relativas aos personagens que integram o grupo. Por meio dessa perspectiva
dupla, é possível dizer que CAVALO é um ensaio sobre as relações entre o
processo de criação de uma obra artística com os modos de ser de seus artistas.
Debruçando-se
sobre os ensaios do grupo de dança, CAVALO reflete muito sobre a expressão
corporal. Os exercícios do grupo levam seus artistas a se questionarem quais os
limites do seu corpo – ou ainda, o que um corpo pode. No entanto, o filme não
se concentra apenas nos desafios técnicos de postar um corpo contemporâneo em
cena, mas essas questões sobre a natureza artística logo se desfolham em como
se refletem nos próprios modos de ser dos personagens.
Exemplo
marcante é a introdução da religiosidade, em especial as religiões
afro-brasileiras, como o candomblé. Não está em jogo apenas uma questão coreográfica
mas sobretudo a afirmação de uma identidade. Dançando, ou seja, expressando-se
artisticamente por meio do corpo, esses artistas conseguiram encontrar uma
expressão justa do seu próprio lugar no mundo, puderam manifestar seus desejos,
angústias e potências. Nos rituais e cultos da cultura afro-brasileira
retratados no filme, o corpo e a performance também se revelam elementos ativos
de manifestação de uma identidade.
O que há em
comum em todos os personagens é que estão inseridos em contextos que os afastam
dos grupos identitários hegemônicos ou tradicionais – são mulheres, negros,
LGBTs, macumbeiros. Por isso, o filme amplia seu domínio inicial do campo
estrito da dança contemporânea e abre seu leque para abraçar outros diferentes
que lhe são irmãos. Assim, o filme também se abre para a música (o rap) e o
street dance, por exemplo. Em comum, são todos artistas que buscam expressar
seus dilemas, tentam encontrar o seu lugar no mundo, por meio de sua arte.
Com isso,
CAVALO, por meio de uma linguagem despojada, bastante contemporânea, apresenta
um retrato dos dilemas sociais ligados às pautas identitárias, mas, por meio de
uma via positiva, investigando as possibilidades que se abrem para as chamadas
minorias por meio de um mergulho em sua interioridade e sua conexão com o
processo artístico.
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