CANTO DOS OSSOS
CANTO DOS OSSOS
de Jorge Polo e Petrus de Bairros
No entanto,
para expressar esse sentimento, os dois filmes optam por estratégias
radicalmente diferentes. O filme de Deo Cardoso se insere integralmente na
“estrutura de sentimentos” da atual esquerda brasileira, por meio de um ideário
político objetivo claro, em que as manifestações dos jovens expressam um desejo
de transformação das estruturas sociais a nível macro.
Já CANTO DOS
OSSOS opta por expressar esse descontentamento não numa ação política direta,
mas o filme prefere mergulhar no imaginário desse conjunto de jovens. O filme
não se propõe a expor um panorama claro da situação social e política
brasileira. Ele se insere no seu momento contemporâneo – é um filme tão urgente
quanto o de Deo, e tão político quanto – de outras formas. Ele prefere adentrar
por camadas mais misteriosas, menos objetivas e menos palpáveis. Por isso,
enquanto o filme de Deo busca um diálogo mais próprio com o cinema narrativo
clássico, tornando-se quase um filme de ação, disposto a se comunicar por meio
do uso de uma linguagem mais linear, o filme de Polo e Petrus prefere expressar
a comunicar. Prefere mergulhar nesse abismo sombrio junto com os personagens,
escapando de sua vocação do real para mergulhar numa espécie de delírio. Se Deo
realiza um filme de ação – os personagens tomam consciência de sua condição e
agem para reverter o quadro de desigualdades sociais de que são vítimas – no
filme de Polo e Petrus os personagens passeiam em deriva sem nenhum projeto
programático a não ser viver o presente possível. O diálogo com o cinema
fantástico, com um certo clima de cinema de terror, expressa o desejo do filme
de mergulhar num imaginário jovem, em como o aspecto sombrio da realidade em
que vivem pode ser transfigurado para as convenções narrativas da arte ou da
criação. Ou seja, os modos de ser daqueles jovens estão intimamente
contaminados não com um processo de transformação das estruturas sociais do
mundo, ou de tomar o poder, mas de um contato íntimo ou existencial com as suas
próprias naturezas, com seu desejo de vivenciar outra experiência do sensível.
O terror do mundo acaba sendo transformado pelo poder da arte em criar outros
lugares possíveis em que esses jovens possam habitar. Eles passeiam, portanto,
em deriva, num lugar indefinido, entre o mundo em que eles não se inserem e a
potência afetiva de seus imaginários. A extrema liberdade com que a dupla de
realizadores expressa esse desejo da juventude de “descobrir um novo lugar pra
nós”, como já é dito logo na abertura do filme, é comovente.
Vejo CANTO
DOS OSSOS como um prolongamento da experiência do coletivo Osso Osso, cujos
membros e obras se situam entre o Ceará e o Rio de Janeiro. Jorge Polo é um
carioca que viveu muito tempo no Ceará, e Petrus de Bairros é um cearense que
viveu muito tempo no Rio. Jorge saiu do Rio para estudar cinema na UFC em
Fortaleza, e Petrus saiu do Ceará para fazer cinema na UFF, no Rio. Esses
deslocamentos (encontros e desencontros) surpreendentemente geraram um encontro
íntimo, curiosamente algo em comum pelas oposições, que fala exatamente sobre
essas relações de trânsito, de desvio, de pontos de fuga, que o projeto do Osso
Osso e esse filme em particular dialoga. O Osso Osso também fez filmes no
interior do Ceará que rompem com os sentidos mais tradicionalistas de
representação daqueles modos de ser. CANTO DOS OSSOS deve ser visto, em maior
ou menor grau, dialogando com um conjunto de filmes, entre curtas e longas
recentes, feitos mais ou menos pelo mesmo grupo, como CORAÇÕES SANGRANTES, ANTES
DA ENCANTARIA, CARRUAGEM RAJANTE, BURACO NEGRO, COM O TERCEIRO OLHO NA TERRA DA
PROFANAÇÃO, TREMOR IÊ, entre outros processos de intervenção urbana,
quadrinhos, performance e tudo o mais.
Talvez essa
experiência libertária de uma produção coletiva ressoe algo da experiência do
Alumbramento, em Fortaleza. Mas no Osso Osso a fruição é ainda mais selvagem,
mais libertária, mais instintiva – mais livre e surpreendente. Talvez por isso
mais desigual, mais imperfeita – pois assim também é a vida. Considero a
existência desses filmes fascinantemente misteriosos algo muito importante no
corpo do atual cinema brasileiro, porque reverberam não apenas um modo de fazer
cinema (sem grana, com apoio dos amigos, um total descompromisso com as lógicas
pragmáticas de inserção em um meio) mas porque revelam, de forma íntima, os
modos de ser de uma juventude que expressa sua inadequação diante do mundo e
tenta encontrar seu próprio lugar, mas que manifesta essa insatisfação e esse
desejo por meio de códigos mais sutis que os manuais de panfleto ou que as
explicações mais causais de quais são os dilemas da juventude no mundo de hoje.
Esses filmes
são notáveis porque buscam uma forma cinematográfica própria e original para
expressar esse dilema tão jovem que é a sua insatisfação com o mundo e seu
desejo de viver a potência de seus imaginários.
CANTO DOS
OSSOS, assim como CABEÇA DE NEGO são filmes notáveis que se complementam, cada
um à sua maneira, comprovando o fértil momento do cinema cearense, para investigar,
de forma sensível, os dilemas da juventude no nosso mundo.
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