CABEÇA DE NEGO
CABEÇA DE NEGO
de Deo
Cardoso
O cinema cearense vive uma fase de grande amadurecimento. Talvez não seja exagero dizer que vivemos os melhores anos do cinema realizado no estado. Em 2019, PACARRETE e GRETA, dois filmes de diretores estreantes, respectivamente Allan Deberton e Armando Praça, ganharam vasta repercussão pela premiação do primeiro em Gramado e a exibição do segundo na Berlinale (e a premiação no concorridíssimo Cine Ceará). São dois primeiros filmes que possuem uma proposta de um cinema narrativo, de comunicação com o público, mas não se trata de simples passatempos ligeiros como meros produtos comerciais, pois possuem uma nítida expressão pessoal e uma vontade de fazer cinema.
CABEÇA DE
NEGO, de Deo Cardoso, pode ser incluído nesse rol, como mais um filme de um diretor
estreante cearense que “veio para ficar”. Curiosamente, os três são filmes bem
diferentes, mas devem ser vistos como parte desse processo de abertura e
pluralidade do atual cinema cearense.
CABEÇA DE
NEGO é um filme de ação. O filme parte de uma premissa diretamente identificada
com os dilemas sociais que vivemos hoje no país. O filme de Deo Cardoso utiliza
como ponto de partida a questão do racismo para na verdade desenvolver um outro
tema – a mobilização social da juventude em torno das manifestações diante de
um país hipocritamente desigual.
Desde 2013,
viemos acompanhando no Brasil a escalada dos protestos e das manifestações
populares. A juventude fez parte ativa desse movimento, sofrendo direta
repressão policial. As manifestações abriram o flanco para a expressão dos
movimentos sociais ligados às pautas identitárias – mulheres, negros, LGBTs iam
para as ruas clamarem por seus direitos de serem reconhecidos e de viverem
livremente.
No filme de
Deo Cardoso, um jovem estudante negro numa escola da periferia de Fortaleza
resolve se insurgir contra o implícito racismo da escola, recusando-se a sair
da sala de aula. Ele ocupa a escola e usa a internet (as redes sociais) para
expressar as contradições da direção da escola, que a deixa em abandono. No entanto,
o gesto solitário de Saulo não se resume ao encapsulamento do mundo virtual.
Esse é só um gatilho para o verdadeiro movimento dos estudantes que,
mobilizados a partir do exemplo de Saulo, se insurgem contra o sistema escolar
– contra as maracutaias do diretor da escola, aliado dos políticos de alto
escalão. Os estudantes se organizam e pressionam a direção. A união faz a
força.
É por isso
que digo que CABEÇA DE NEGO é um filme de ação, pois os estudantes não apenas
reclamam mas agem para transformar o mundo. O título expressa um trocadilho:
ele se refere à questão de cor e ao nosso racismo mas também a um tipo de fogos
de artifício, remetendo à própria violência da repressão policial. Algo prestes
a explodir, como uma bomba.
A própria
estrutura do filme se contamina da indignação do grupo de estudantes e caminha
progressivamente para um clímax final, em cena de confronto aberto. É hábil a
encenação do estreante Deo Cardoso em movimentar as dezenas de atores, com um
senso asfixiante obtido pela precisa montagem de Guto Parente, para criar a
dinâmica necessária a esse finale. As imagens documentais entram como forma de
projetar a ficção no real, ou ainda, que aquele confronto estudantil representa
um movimento de forças cada vez maior não só naquele caso específico mas em
toda a realidade brasileira.
A força do
filme de Deo Cardoso está justamente em como a direção segura articula o clímax
final, apontando para a inevitabilidade do confronto. Se por muitos anos o
Brasil seguiu por uma lógica conciliadora, o filme de Deo tem uma conclusão a
favor do confronto – o filme acaba num cenário de caos como uma verdadeira
guerra civil. Não há conclusões, nem vencedores ou vencidos. Estamos vivendo
justamente sob o impacto do front de batalha, ainda em aberto.
Deo reúne um
conjunto de elementos que garantem ao filme sua urgência: a juventude, a
escola, a política, as manifestações, o racismo. A maioria que sempre foi vista
como “minoria” (a periferia, as mulheres, os negros) resolve se insurgir, ocupando
a escola. O gesto de Saulo de se trancafiar é prolongado pelo gesto dos
estudantes de invadir e ocupar a escola. O uso da internet é complementado
pelos encontros de mobilização e pela ação física. É interessante percebermos
que a própria estrutura do filme de Deo vai abandonando cada vez mais o seu
lado prosaico e vai se entrincheirando, vai cada vez mais, assim como seus
personagens, tomando o corpo de um cinema de ação. O filme social vira um filme
de ação.
Talvez
possamos pensar que o filme, de estrutura narrativa linear, não se aprofunde
nas causas nem nas consequências do cenário de transformações políticas e
sociais brasileiras. O filme propõe um resumo um tanto esquemático das forças
que se confrontam, formando um certo painel da situação com pouca complexidade.
No entanto, a forma vibrante como Deo expõe, de forma direta, o sentimento de
indignação da juventude preta da periferia – a forma simples, sincera e honesta
com que esse drama é encenado – torna CABEÇA DE NEGO um filme digno de atenção.
Ele está totalmente inserido nas atuais tendências de discussão das “pautas
identitárias” do cinema brasileiro, mas, ao mesmo tempo, recusa alguns de seus
chavões e abre outros flancos – ao buscar uma linguagem transparente, que, caso
consiga o milagre de ser bem distribuído comercialmente nesse nosso mercado
cinematográfico tacanho, tem o potencial de atingir justamente o público que
sofre essa violência em seu dia a dia, saindo do discurso autorreferencial de
sua própria bolha, um dos maiores problemas do cinema brasileiro independente.
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