O "CINEMA DO AGRESTE" (I): QUANDO DECIDI FICAR
O "CINEMA DO AGRESTE"
Sob o impacto da exibição de filme e encontros no Curta Taquary 2019, escrevi alguns textos sobre curtas realizados num contexto geopolítico do Nordeste fora dos grandes centros. É o que chamo provisoriamente de "cinema do agreste", o que espero poder melhor aprofundar em textos futuros.
QUANDO DECIDI FICAR
de Maycon Carvalho
Um dos exemplos da vitalidade do “cinema do agreste” é o
delicado QUANDO DECIDI FICAR, de Maycon Carvalho. Foi filmado bem no Sertão
Paraibano, em Sousa, uma cidade a cerca de 430km da capital João Pessoa.
Maycon é formado em teatro, e seu curta (na verdade um
média, de quase 30 minutos) reflete essa formação pelo desejo de construir uma
dramaturgia de ficção em direta conexão com os atores. O filme é um pequeno inventário
do cotidiano de um grupo de jovens em descoberta de seu processo de criação
artística, entre a poesia, o teatro, a dança e a performance. Esse conjunto de
jovens habita a casa de Dona Leonor (Maria do Carmo Abrantes) – uma senhora
cega que abriga esses jovens numa espécie de pensionato informal. Nessa casa,
os jovens vivem e criam. Criação e vida – temas tão caros ao cinema
contemporâneo – são trabalhados por meio de uma dramaturgia do comum, em que
esses jovens convivem rodeados por uma ideia de afeto. Formam, então, uma
espécie de família, sendo Dona Leonor essa matriarca que os acolhe. Essa mãe
que abraça seus filhos adotivos em um ninho, sem a presença da figura
masculina.
Mas o ninho não é ensimesmado, muito menos vive enclausurado
em torno de si mesmo. O mundo invade o filme quando o grupo promove pequenas
apresentações na praça da cidade. Numa delas, um paredão de som invade de forma
agressiva, mas eles permanecem criando. O mundo é uma espécie de ameaça à
ternura afetiva do grupo. A cidade, as pessoas locais, pouco aparecem no filme.
No entanto, o grupo não é totalmente fechado como um clã.
Sinal de abertura é a presença de Do Carmo (Alhandra Campos), mulher solitária
que se torna uma moradora da casa e tenta curar suas cicatrizes, físicas e
psicológicas. Ela é acolhida e se integra ao grupo, ainda que um tanto
taciturna.
É delicado e orgânico o trabalho de Maycon com os atores,
estimulado pela preparação de atores de Kassandra Brandão. Todos os atores são
da Paraíba, e, mais especialmente, do Sertão da Paraíba, de Sousa ou de cidades
próximas, como Pombal, Cajazeiras e São José de Piranhas. A única exceção é
Eliana Figueiredo, que é de Campina Grande (também interior) e de Kassandra, de
João Pessoa.
Num momento em que o grupo se reúne para ver um filme, não é
exibido Vingadores nem mesmo A doce vida, mas sim Fogo pagou, curta de Ramon
Batista, realizador de Nazarezinho, cidade próxima de Sousa.
No duro momento de desalento em que vivemos, é bonito o
gesto de Maycon em envolver o cenário jovem do interior do Nordeste num celeiro
de afetividade, por meio de uma família que se forma em torno de outros laços
de sociabilidade para além dos sanguíneos. A relação entre criação e vida faz
com que as apresentações das criações artísticas de membros do grupo sejam
contrabalançadas com momentos prosaicos de grande beleza, como, por exemplo,
quando tomam juntos café da manhã. Vemos uma geografia íntima do Sertão do
Nordeste para além dos códigos regionalistas, como a seca, o sol e a terra.
A relação entre criação e vida, mostrando a convivência dos
bastidores de uma apresentação artística, me lembra um pouco do mote dos filmes
de Jacques Rivette, como na foto que postei abaixo, que me remete a OUT ONE.
Mas nem tudo é romantizado e purificado. As ameaças e os
traumas existem. Uma dor que se expressa, mas sempre no extracampo. Uma das
mais fortes cenas é quando Alhambra, vislumbrando uma ameaça, passa a segurar
um naco de beterraba como se fosse uma pedra. Suas mãos sangram pela coloração
natural do legume. Nessa combinação sugestiva, vemos como o afeto se transforma
em dor, quando menos esperamos.
O belo e delicado QUANDO DECIDI VOLTAR oferece novas
leituras e camadas para a representação dos espaços afetivos do interior do
Nordeste.
Vi o curta recentemente no Curta Taquary. Ele já foi exibido
e premiado em outros festivais, sempre no Nordeste. É uma pena que esse
trabalho, por enquanto, só consiga circular na região, tendo, até momento,
raríssimas exibições fora do Nordeste.
Como já afirmei em textos anteriores, a Paraíba vive um
momento cinematográfico muito vibrante, talvez hoje o mais interessante de todo
o país. Este curta de Maycon merece ser integrado a esse percurso recente de
excelência.
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