FIRST REFORMED
FIRST REFORMED
de Paul Schrader
Pelo menos para aqueles que entendem o cinema como uma
trajetória, não dá para ver FIRST REFORMED sem pensar em DIÁRIO DE UM PÁROCO DE
ALDEIA, de Robert Bresson. Trata-se da crise moral de um padre que se expressa
em seu diário pessoal, filmada por meio de um estilo ascético e distanciado. No
entanto, a filiação do filme de Paul Schrader ao cinema de Bresson não ocorre
pela não expressão de seus não atores, muito menos pelos planos recortados de
mãos sobre objetos ou penduricalhos do tipo. As ressonâncias do estilo de
Bresson neste filme se dão de formas mais sutis e profundas, manifestadas a
partir de uma ÉTICA. Certamente Schrader conhece a fundo o estilo dos filmes de
Bresson, já que escreveu um importante livro sobre o estilo transcendental no
cinema, em que aborda obras de Ozu, Dreyer e Bresson.
Mas há uma clara diferença: Schrader é americano. FIRST
REFORMED assume sua origem por sua vocação classicista. Mas o classicismo de
Schrader é herdeiro de Ford, ao ver o inesperado heroísmo no ato simples da
opção da vida de homens comuns solitários que se veem, por meio das
circunstâncias, tendo que por em prova sua moralidade. A moral de Schrader é
vista por meio da transparência de seu estilo, ou ainda, de sua frontalidade.
Pode parecer atípico um sóbrio drama de consciência de um
padre se pensarmos que Schrader ainda é mais conhecido pelos perturbadores
retratos do submundo das drogas e do delírio, como nos personagens de De Niro
em Touro indomável e Taxi driver. Mas há mais coisas entre o céu e a terra do
que supõe nossa vã filosofia. E, além disso, FIRST REFORMED não está nem um
pouco distante da mitologia dos personagens desgraçados de Schrader – o cinema
continua sendo “a man and a room” como em AMERICAN GIGOLO. Ou mais uma arma
(uma bomba), um copo de uísque, uma mulher, pouco importa! Tão miseráveis e tão
próximos do divino, como no final de AMERICAN GIGOLO, e como no final de PICKPOCKET.
Um sopro, diante do sublime – o atingimento do divino quando tudo parece
perdido.
É preciso descer aos rincões do inferno para ser salvo por
sua humanidade. É preciso tocar os tendões da morte para descobrir afinal o
valor da vida. Schrader é mais influenciado pelo Bresson de sua primeira fase,
antes de MOUCHETTE, quando o cineasta francês ainda acreditava na redenção. Mas
não podemos deixar de pensar em Gertrud. O amor, só o amor salva.
A igreja, o passado, a tradição, tudo isso deve ser deixado
para trás quando se ama verdadeiramente, pois este é o projeto de Deus. O
dilema moral desse personagem é recusar todas as aparências da divindade e se
agarrar àquele pequeno gesto de humanidade, àquilo que é terreno, pois é o mais
próximo do divino. Andar de bicicleta, comer um prato japonês, abraçar, tocar o
corpo e as mãos. Olhar.
A sobriedade da primeira parte do filme acaba sendo
lentamente substituída por um ritmo mais intenso, quase asfixiante. Um clima
crescente de paranoia e delírio toma de assalto o filme, mas pelas bordas, sem
que percebamos muito bem. Talvez seja o diabo que tenha vindo assustar o padre. Mas que já está presente há muito tempo, no mundo, no
financiamento da Igreja, nas instituições. Há um esboço de um thriller político
em FIRST REFORMED quase como um traço de um A HORA DA ZONA MORTA. Cronemberg
poderia encontrar Bresson? – não é tão absurdo quanto parece. A paranoia
ambiental e a crítica à institucionalização da religião deslocam o foco de
interesse do filme das questões etéreas da ética transcendental e ancoram o
filme na realidade dos anos 2000. FIRST REFORMED poderia se passar no Brasil de
2019, sem muitas distorções.
Exibido na mostra principal do Festival de Veneza, FIRST
REFORMED é um filme pobre. Não possui os arroubos de produção nem exímios
movimentos de cinematografia. A partir de sua contenção franciscana, Schrader
apresenta um pequeno e elaborado exercício de amor ao cinema (veja o incrível
travelling que abre o filme, ainda sobre os créditos, também sobre a luz, sem falar
na opção pelo 4:3). FIRST REFORMED é um filme de terror. Um filme político
sobre a perda da fé, sobre o esmagamento do indivíduo pelos compromissos das
instituições. Mas, acima de tudo, o cinema é um ato de fé – e a fé deve ser
vivida, com todas as suas dores e dilemas, aqui e agora, neste nosso mundo,
como um gesto de amor.
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