ESTRANGEIRO
VIDA LONGA AO CINEMA PARAIBANO!
ESTRANGEIRO, de Edson Lemos Akatoy: UM FILME-ILHA
Muitas vezes se cobra do artista que sua obra promova um
engajamento com as questões do seu tempo. Ainda mais nos tempos de hoje em que
vivemos no Brasil, essa posição se torna uma questão de sobrevivência. Mas ao
mesmo tempo fico pensando: o que é de fato o nosso tempo? Talvez o nosso tempo
não se expresse diretamente por meio dessas questões ditadas pelas urgências
sócio-políticas em que estamos imersos. Agamben dizia que o contemporâneo é
aquela escuridão que nos escapa, que perseguimos mas que foge de nós. Fico
pensando que, no meio das barricadas de 1968, talvez os filmes mais
contemporâneos de seu tempo sejam WALDEN, CRÔNICA DE ANNA MAGDALENA BACH e A
COR DA ROMÃ – filmes que se distanciam dessa adesão direta aos movimentos
políticos das ruas.
Nosso mundo tem razões que a própria razão desconhece. Mas
ao mesmo tempo a história do cinema é escrita por filmes que ocupam as pautas
de urgência do momento – discursos construídos historicamente por críticos e
curadores. Vários filmes só puderam ser descobertos muitos anos depois que
foram realizados, pois na sua época não havia condições para que eles pudessem
ser vistos.
Fico pensando nessas questões ao ver ESTRANGEIRO, de Edson
Lemos Akatoy. Um filme feito de forma colaborativa, com a maior parte da equipe
sendo composta por estudantes do curso de cinema da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). No entanto, há muito pouco que o alinha às mais diversas
tendências do cinema contemporâneo brasileiro: o filme escapa completamente às
tendências do “cinema militante” e há muito pouco que o caracterize como um
filme paraibano ou nordestino. A delicadeza e o tom poético de ESTRANGEIRO o
tornam uma ilha no cinema brasileiro de hoje – e farão com que esse belo filme
seja provavelmente muito pouco visto.
No debate que se seguiu à sessão do filme em Belo Jardim, o
diretor foi cobrado sobre questões de gênero, sobre a classe social de seus
personagens. No entanto, o filme não busca ser um panorama sócio-político do
mundo de hoje. Parece um filme absolutamente deslocado de seu tempo. A
exuberante fotografia em preto-e-branco, as opções por uma câmera fluida que
flutua pelo espaço, a rarefação narrativa, o gosto pela natureza, a adesão aos
silêncios, refletem uma dramaturgia que busca estabelecer um clima de sugestão
absolutamente cinematográfico, que transpira a enorme solidão e o deslocamento
de sua protagonista.
Ser estrangeiro. Pertencer a lugar nenhum. Vagar pelo mundo
das sombras. Encontrar um remanso onde se possa descansar. Em vão. Essa dor que
não se explica – mas não é uma punhalada, é simplesmente uma afasia leve que
nos inebria de melancolia. Essa dificuldade de entender o passado e esse receio
de embarcar o futuro. Não ser nem índio nem branco. Nem mexicano nem
nordestino. Essa brisa suave que nos acalanta e que nos entedia. Essa vontade
de dizer eu te amo mas esse desejo de ficar só. Essa vontade de chorar e de
caminhar descalço pela areia. Entre a chuva e o fogo. Não saber bem por onde
ir.
O filme de Edson fala de uma relação entre duas personagens
mulheres – na verdade, penso que são a mesma personagem, uma olhando para a
outra por meio de um espelho. Então, perguntaram ao diretor porque o filme se
intitula ESTRANGEIRO, se é protagonizado por duas mulheres (pergunta, aliás,
extremamente relevante). O diretor, de fala mansa e leve, que parece flutuar
como as câmeras de seu filme, respondeu que não queria que o filme se remetesse
à personalidade das personagens mas ao próprio sentimento de ser estrangeiro –
daí a opção pelo masculino.
Estrangeiro, a meu ver, seria esse mesmo filme. Esse próprio
filme que é uma ilha deserta diante do cinema brasileiro que cobra uma ação
política direta diante do mundo concreto, que está desabando diante de nós. Mas
Edson não quer pegar em armas mas, ao contrário, prefere desenhar em aquarela,
em lentos e longos traços, uma paisagem interior preenchida por névoas e
dúvidas. É um filme repleto de afeto mas preenchido por enormes lacunas que
nunca são preenchidas pelo filme.
No turbilhão em que vivemos, me sinto inesperadamente tocado
por esse gesto tão sincero e tão inesperado. Sinto saudades daquele tempo em
que se fazia cinema simplesmente para expressar um sentimento interior, sem
esperar nada em troca, do público ou do mundo, sem nenhuma estratégia de
reconhecimento. Estrangeiro é como o cinema de Eduardo Nunes, ou como Linz, de
Alexandre Veras. Estrangeiro não foi bem recebido em Belo Jardim – e também no
Aruanda. Mas mesmo que o mundo de hoje não queira esse filme, que o recuse, ele
precisa ser feito. Talvez alguém o descubra numa cápsula, numa galáxia
distante, daqui a muitos anos, e possa talvez compreender seu profundo gesto de
solidão.
ESTRANGEIRO é mais um dos elementos que corroboram a ideia
de que a Paraíba passa por um enorme momento criativo fértil no cinema brasileiro
de hoje, esse filme completamente diferente de SOL ALEGRIA e de todos os
outros. Torço para que esse filme possa ser compreendido e – o mais importante
– que o diretor e sua equipe façam outros.
Comentários