DIVINO AMOR
DIVINO AMOR
de Gabriel Mascaro
O AMOR COMO DESVIO
DIVINO AMOR vem sendo lido como uma ficção
distópica sobre o domínio da religião evangélica no Brasil após o governo
Bolsonaro. Mas quem, a partir disso, esperar um filme caricato que julga por
meio de reprimendas um certo modo de ser, acabará se surpreendendo, pois o
filme vai muito além do estereótipo.
De um lado, é nítido que o filme atua por meio da
farsa ou da ironia. No ano de 2027, o Brasil estará controlado por evangélicos
que se tornam um grupo hegemônico. Inclusive o desvio – as festas, a cultura – passa
a ser dominado pelo evangelismo. Mas, para Mascaro, a sociedade do futuro se
afasta dos sonhos motorizados dos Jetsons ou da realidade virtual ou aumentada
de Minority Report. Estamos não muito distantes do mundo do hoje – não há hologramas,
ou coisas do tipo, nem mesmo celulares. Ou seja, estamos diante de um futurismo
de subúrbio de terceiro mundo.
O futuro evangélico de Mascaro se afirma a partir
do trabalho e da família. O trabalho é o cartório – a síntese da burocracia
weberiana como forma de organização do espaço e dos corpos a partir de uma
lógica utilitária. Ainda que se usem códigos genéticos e uma espécie de detector
(não de metais mas de identidades) como forma de mostrar o avanço da
tecnologia, é possível dizer que o cartório de Mascaro não é muito diferente da
burocracia atual. Sua protagonista Joana (na grande interpretação de Dira Paes)
é uma cartorária do setor de divórcios que tenta recrutar casais em crise para
os ritos da seita “divino amor”.
A ênfase em luzes neon entre o rosa e o roxo, em
meio a névoas de fumaça, imprimem ao filme um tom claramente artificial ambíguo,
entre o rasgadamente brega e o infantil (tom infantil reforçado pela narração
que costura o filme). A ritualização das cerimônias do Divino Amor (a terapia
de casais, o batismo) oscila entre o sensual e o kitsch. O filme apresenta o
culto como uma reflexão distanciada sobre a estetização do evangelismo, numa relação
complexa entre a adoração e a sedução, algo que me remete ao trabalho de
Barbara Wagner e Benjamin de Burca, especialmente em Terremoto Santo. A epifania divina pode estar muito próxima de um
orgasmo – e é preciso constatar o papel da estetização nos cultos.
O tom irônico como essa sociedade do futuro controla
o fluxo dos corpos, por meio de um regime maquínico que normatiza os modos de
ser, pode ser visto em sua máxima expressão nas originalíssimas cenas em que Joana,
a personagem de Dira Paes, se consulta com um pastor, entrando com seu carro
por meio de um drive thru. As
consultas espirituais passam a ser uma mescla de uma consulta médica com uma
loja de fast food. A simplicidade da
ornamentação (o pastor está simplesmente sentado em uma cadeira em torno de uma
enorme redoma de vidro) apresenta um futurismo pragmático, uma estética minimalista
e neutra, assim como boa parte das opções da direção de arte no cartório.
É de se notar que os espaços públicos são raros no
filme – a cidade está completamente ausente do filme. O tom tipicamente
estilizado ocorre primordialmente no interior do “Divino Amor” – essa espécie
de portal encantado em que, num recurso de fantasia tipicamente
cinematográfico, os personagens entram em contato com o “divino” – numa estilização
cênica do contato dos corpos tão kitsch que não seria exagero se nos
lembrássemos do teatro de Oh! Rebuceteio (sem neon rs).
Dessa forma, se, de um lado, é nítido o distanciamento
do realizador em relação ao universo que ele apresenta, por meio dessas camadas
críticas de ironia, ou ainda, se em alguns pontos o filme tangencia o caricato,
com uma base cômica, a grande contribuição de Mascaro me parece ser a de nunca
propor meramente escrachar ou julgar seus personagens, mas procurar mergulhar
nas contradições e paradoxos que surgem por dentro desse mesmo regime.
Para além do panorama das transformações da sociedade
brasileira, DIVINO AMOR busca compreender os dilemas de sua protagonista. Joana
é uma profunda seguidora dos princípios divinos, mas não se sente abençoada, já
que seu trabalho e sua família estão por um triz. Ela precisa de um sinal, de
uma prova do amor de Deus.
Talvez Joana seja condenada por amar demais.
É a partir daí que vejo DIVINO AMOR do ponto de
vista do melodrama, sobre a importância do amor e sobre os riscos de quem ama
verdadeiramente diante de um mundo maquínico – estes estão verdadeiramente
condenados. DIVINO AMOR vira então Benilde, de Manoel de Oliveira, ou mesmo um
rastro de um filme de Brisseau.
É como se Mascaro observasse os paradoxos que
surgem no interior de um regime de normatização dos corpos que, aliás extrapola
o evangelismo (veja, por exemplo, o cartório). Joana curiosamente representa o
desvio no interior do sistema, um abalo que surge justamente por ela, de forma
pura, levar seu modus operandi até às últimas consequências.
É o amor incondicional que rompe o sistema por
dentro. Quando digo por dentro, me refiro também, à própria questão do corpo.
Um corpo que implode e passa a ser fértil. É muito curioso quando Mascaro
propõe uma relação entre a fertilidade e a luz, ou seja, entre a natureza e o
cinema (seja artificial por meio da estranha máquina, seja natural, no belíssimo
plano em que Dira em pelo se posiciona para a luz). Dar a/à luz.
O rebento que nasce ao final sinaliza esse doce
desejo da revolução, que nasce não pelo ódio mas pelo amor. Quase ao avesso de
As boas maneiras, mas um avesso que confirma a regra, a criança de DIVINO AMOR
não canibaliza a normatividade: ela representa a esperança pelo desvio que
surge justamente de uma extrapolação do próprio sistema.
A ambiguidade com que o diretor compõe uma
encenação que conjuga uma crítica irônica aos modos de ser e um afeto respeitoso
diante do poder transformador do amor espelha esteticamente sua oscilação entre
a comédia e o melodrama, entre o realismo e o futurismo, entre o infantil e o
adulto, entre a distopia e a utopia.
Como em BOI NEON, a obra de Mascaro não está
interessada em propor representações totalizantes do mundo contemporâneo. Ele
prefere investigar esses agenciamentos turvos, que apresentam desvios, ou que
apontam para os paradoxos no interior desses regimes hegemônicos. Em comum, o
amor ou o desejo é que rompem as porteiras da normatização dos regimes. E a
estetização é o elemento que ativa a sedução dos corpos. Ou seja, a
contribuição de Mascaro, para além dos discursos totalizantes, é observar a
possibilidade de rachaduras ou desvios (utilizando essa palavra que se remete ao
próprio nome da produtora de Mascaro e Rachel) no interior de determinados
regimes.
Comentários