[JANELA 2] Três filmes - tão perto e tão longe
[Cobertura do X Janela Internacional de Cinema do Recife]
CALL ME BY YOUR NAME, de Luca Guadagnino
TUDO QUE O CÉU PERMITE, de Douglas Sirk
O MATADOR DE OVELHAS, de Charles Burnett
O cinema nos permite viajar para outros tempos e lugares, desfrutar de histórias inusitadas e mergulhar no imaginário de personagens e situações, mas o que me interessa de fato no cinema é como ele expressa, por meio do uso da linguagem cinematográfica, uma forma de estar no mundo.
Fiquei com inveja dos personagens do último filme de Luca Guadagnino: são todos belos, ricos, moram numa casa incrível, tem uma empregada que lhes prepara suco de abricó no lanche da tarde, passeiam de bicicleta, mergulham no rio no quintal da sua casa, e não parecem ter nenhuma preocupação além disso – o pai parece ser um professor de arte antiga, ou coisa do tipo, mas nada de “muito importante”. Assim, CALL ME BY YOUR NAME revela seu contexto reacionário: tudo o que os personagens têm a fazer é desfrutar a vida e curtir o amor. Poderia ser assim para todos, mas a vida – feliz ou infelizmente – não é assim. Guadagnino sem dúvida alguma domina os recursos da linguagem cinematográfica, e realiza um filme que algumas vezes foge do narrativo e mergulha numa certa sensorialidade, ou num certo sensualismo – os corpos, as intenções, fazendo um cinema agradável que amplia um pouco o seu leque de filme romântico do cinema-clássico.
Há algo que se assume supostamente progressivo no filme: o romance de descoberta entre dois homens heterossexuais de idades diferentes que se envolvem num relacionamento casual, passageiro, homoafetivo. No entanto, especialmente em seu terço final, o filme vira quase um brega institucional em defesa do bromance, especialmente na constrangedora cena que o pai conversa com o filho, dizendo que “está tudo bem”.
Final feliz. Mesmo separados, eles guardam em si aqueles bons momentos, e podem se casar (com mulheres) e passear naquela linda casa de verão. Afinal, “we´ll always have Paris”. Podem continuar tomando o seu suco de abricó à vontade. Tudo muito lindo, tudo sempre de muito bom gosto.
É diferente do que propõem dois outros filmes da Mostra.
TUDO O QUE O CÉU PERMITE a princípio poderia soar ainda mais conservador e moralizante que o filme de Guadagnino. Aqui também temos um romance proibido entre pessoas de diferentes idades, envolvendo uma linda casa de família. (Mas sem bromance como no de Todd Haynes, mas essa é uma outra história...) Aqui uma viúva se apaixona por seu jardineiro bem mais jovem, e sofre com as fofocas e as recusas de seu grupo social de amigas e de seus filhos.
A princípio, o filme de Sirk não tem nada de moderno: seria a quintessência do cinema clássico. Aparentemente Sirk filma como se fossem as novelas de Manoel Carlos. Aparentemente – apenas aparentemente.
Sirk não quer impressionar como os maneirismos poético-sensoriais de Guadagnino. Fico pensando como curiosamente esse filme se parece com os de Ozu, no seu desejo de, por meio de uma linguagem extremamente calma, consciente e rigorosa, falar dos desafios e das contradições da sociedade de seu tempo. Mas talvez a grande diferença de Ozu para Sirk é que Sirk é um estrangeiro (um alemão-dinamarquês). Seu filme é de um olhar estrangeiro.
Nessa revisão, para mim ficou claro que Tudo o que o céu nos permite é um filme comunista filmado em Hollywood. Sirk quer falar sobre a crise moral desse sistema por dentro do sistema, utilizando os mesmos códigos desse sistema. (É por isso que Fassbinder pirou com o cinema de Sirk, mas isso é uma outra história). Sirk utiliza os recursos do melodrama para investir de forma muito direta contra o conservadorismo desse mesmo sistema de valores norte-americanos. E chega a uma conclusão muito clara – não é possível conciliação, a única forma é fugir do sistema, senão ele irá te engolir.
Não há meio de ser feliz. As pessoas (o “sistema”) nunca irão aceitar ou perdoar o fato de que se pode ser feliz à margem das convenções (das leis) do sistema. Vivemos numa sociedade estratificada em que o amor é a peça de uma engrenagem, ou uma mercadoria. Só há duas saídas para Jane Wyman: ficar no sistema e morrer infeliz, vendo televisão; ou romper com o sistema e viver na casa do jardineiro. Não há meio termo.
Para isso, Sirk propõe um outro modo de vida. É curioso como o único momento em que a mise en scene rigorosa de Sirk se solte seja na pequena festa na casa dos amigos do jardineiro. Essa festa (o espaço, a movimentação dos personagens e da câmera, e, é claro, a luz – esse que é o principal elemento de dramaturgia do cinema de Sirk) é completamente diferente das festas na casa da amiga rica de Wyman. A casa é um elemento que expressa de forma formidável a diferença no modo de vida dos personagens. Ou seja, a casa, mais que tudo, é um elemento cinematográfico, uma forma de fazer cinema.
Sirk chega a ser até didático, mas esse didatismo é diferente do didatismo de Guadagnino. É quase como o Bresson em O dinheiro. Há um momento em que a viúva descobre na casa do amigo do jardineiro um livro. É Walden, de Thoreau – aquele mesmo que inspirou o título do filme de Jonas Mekas – e que defende um modo de vida longe da civilização. O livro está aberto como se fosse uma bíblia: antes de ver o título, pensamos num relance que poderia ser uma, ao que a personagem responde “esse livro é a bíblia de meu companheiro”. Nesses momentos, vemos a ironia fina que caracteriza o melhor do cinema de Sirk, esse enorme cineasta que teve como destino realizar filmes comunistas endereçados às senhoras de classe média AB norte-americanas. No auge, já rico, ficou de saco cheio, pediu as contas e voltou para a Dinamarca para fazer suas pequenas peças de teatro. (Morreria desconhecido se não fosse Fassbinder, mas essa é uma outra história)
Há algo que sempre parece não cheirar muito bem por trás do extremo bom gosto dos filmes de Sirk. É preciso vê-los para além de sua superfície cristalina.
Outra proposta radicalmente diferente é o do brilhante O MATADOR DE OVELHAS, de Charles Burnett. Filme obrigatório e fundamental no contexto do surgimento de um cinema militante hoje no Brasil, reivindicado por negros e mulheres. Burnett faz um cinema assumidamente em defesa de um outro modo de ser no mundo, diretamente enraizado na sua condição étnica. No entanto, foge completamente do clima de denuncismo, vitimização e culto ao ódio. É um filme permeado pela violência mas que busca ainda assim viver de uma forma humana, honesta, digna e permeada de afeto.
O filme discute onde é possível reunir afeto num mundo repleto de violência. O mais marcante exemplo disso é como ele filma as crianças. É maravilhosa a forma livre e despojada como as crianças estão no filme – se fosse no Brasil de hoje o diretor seria acusado de descuidado com as crianças, mas acontece que elas estão ali, caindo e levantando, apanhando e batendo, sem paternalismo. Exemplo dessa aversão ao paternalismo me parece ser o próprio título, ou a profissão eventual do protagonista: é um matador de ovelhas. Ele é morto pelos brancos, mas também mata. O prólogo do filme apresenta essas intenções de modo muito forte: o pai bate no filho e diz que ele precisa aprender a ser homem para sobreviver. Mas a luta do filme nunca é por meio do ódio ou do ressentimento. O diretor mostra profundo afeto por seus personagens, pela paisagem local, pela possibilidade de fazer cinema. E incrível é como o filme assume toda a sua pobreza.
Como é potente vermos outras formas de estar no mundo! Quando vemos O matador de ovelhas logo após Call me by your name é gritante nosso choque em relação aos contextos sociais de onde cada filme emerge. A pobreza de O matador, sua proximidade com o documentário contrastam radicamente com o maneirismo empolado de Call me by your name. Não são apenas contextos étnicos, mas também sócio-econômicos. Mas, além disso, são duas formas de ver o mundo, de estar no mundo, de reagir às situações que nos surgem, de como as narrativas encenam suas crises e de como cada diretor opta em mostrar esses mundos. Ao mesmo tempo, o brilhante filme de Sirk mostra que a questão não é ter dinheiro ou ser rico, mas como se mostram esses mundos, o que a mise en scene desses filmes revela ou esconde sobre sua própria natureza.
Aqui não há espaço para o aparente bom gosto mas para a verdade – palavra que nesse mundo pós-tudo as pessoas ficam com cada vez mais medo de usar. É preciso ir para a essência das coisas, para além das aparências. É preciso viver, com todos os riscos que isso implica.
Não há como não se lembrar dos filmes de André Novais, que certamente viu esse filme com atenção para fazer seu extraordinário Ela volta na quinta. Provavelmente Burnett não deve saber que seu filme pobre e urgente gerou frutos aqui nessa nossa distante província Brasil.
E é só o começo.
CALL ME BY YOUR NAME, de Luca Guadagnino
TUDO QUE O CÉU PERMITE, de Douglas Sirk
O MATADOR DE OVELHAS, de Charles Burnett
Fiquei com inveja dos personagens do último filme de Luca Guadagnino: são todos belos, ricos, moram numa casa incrível, tem uma empregada que lhes prepara suco de abricó no lanche da tarde, passeiam de bicicleta, mergulham no rio no quintal da sua casa, e não parecem ter nenhuma preocupação além disso – o pai parece ser um professor de arte antiga, ou coisa do tipo, mas nada de “muito importante”. Assim, CALL ME BY YOUR NAME revela seu contexto reacionário: tudo o que os personagens têm a fazer é desfrutar a vida e curtir o amor. Poderia ser assim para todos, mas a vida – feliz ou infelizmente – não é assim. Guadagnino sem dúvida alguma domina os recursos da linguagem cinematográfica, e realiza um filme que algumas vezes foge do narrativo e mergulha numa certa sensorialidade, ou num certo sensualismo – os corpos, as intenções, fazendo um cinema agradável que amplia um pouco o seu leque de filme romântico do cinema-clássico.
Há algo que se assume supostamente progressivo no filme: o romance de descoberta entre dois homens heterossexuais de idades diferentes que se envolvem num relacionamento casual, passageiro, homoafetivo. No entanto, especialmente em seu terço final, o filme vira quase um brega institucional em defesa do bromance, especialmente na constrangedora cena que o pai conversa com o filho, dizendo que “está tudo bem”.
Final feliz. Mesmo separados, eles guardam em si aqueles bons momentos, e podem se casar (com mulheres) e passear naquela linda casa de verão. Afinal, “we´ll always have Paris”. Podem continuar tomando o seu suco de abricó à vontade. Tudo muito lindo, tudo sempre de muito bom gosto.
É diferente do que propõem dois outros filmes da Mostra.
TUDO O QUE O CÉU PERMITE a princípio poderia soar ainda mais conservador e moralizante que o filme de Guadagnino. Aqui também temos um romance proibido entre pessoas de diferentes idades, envolvendo uma linda casa de família. (Mas sem bromance como no de Todd Haynes, mas essa é uma outra história...) Aqui uma viúva se apaixona por seu jardineiro bem mais jovem, e sofre com as fofocas e as recusas de seu grupo social de amigas e de seus filhos.
A princípio, o filme de Sirk não tem nada de moderno: seria a quintessência do cinema clássico. Aparentemente Sirk filma como se fossem as novelas de Manoel Carlos. Aparentemente – apenas aparentemente.
Sirk não quer impressionar como os maneirismos poético-sensoriais de Guadagnino. Fico pensando como curiosamente esse filme se parece com os de Ozu, no seu desejo de, por meio de uma linguagem extremamente calma, consciente e rigorosa, falar dos desafios e das contradições da sociedade de seu tempo. Mas talvez a grande diferença de Ozu para Sirk é que Sirk é um estrangeiro (um alemão-dinamarquês). Seu filme é de um olhar estrangeiro.
Nessa revisão, para mim ficou claro que Tudo o que o céu nos permite é um filme comunista filmado em Hollywood. Sirk quer falar sobre a crise moral desse sistema por dentro do sistema, utilizando os mesmos códigos desse sistema. (É por isso que Fassbinder pirou com o cinema de Sirk, mas isso é uma outra história). Sirk utiliza os recursos do melodrama para investir de forma muito direta contra o conservadorismo desse mesmo sistema de valores norte-americanos. E chega a uma conclusão muito clara – não é possível conciliação, a única forma é fugir do sistema, senão ele irá te engolir.
Não há meio de ser feliz. As pessoas (o “sistema”) nunca irão aceitar ou perdoar o fato de que se pode ser feliz à margem das convenções (das leis) do sistema. Vivemos numa sociedade estratificada em que o amor é a peça de uma engrenagem, ou uma mercadoria. Só há duas saídas para Jane Wyman: ficar no sistema e morrer infeliz, vendo televisão; ou romper com o sistema e viver na casa do jardineiro. Não há meio termo.
Para isso, Sirk propõe um outro modo de vida. É curioso como o único momento em que a mise en scene rigorosa de Sirk se solte seja na pequena festa na casa dos amigos do jardineiro. Essa festa (o espaço, a movimentação dos personagens e da câmera, e, é claro, a luz – esse que é o principal elemento de dramaturgia do cinema de Sirk) é completamente diferente das festas na casa da amiga rica de Wyman. A casa é um elemento que expressa de forma formidável a diferença no modo de vida dos personagens. Ou seja, a casa, mais que tudo, é um elemento cinematográfico, uma forma de fazer cinema.
Sirk chega a ser até didático, mas esse didatismo é diferente do didatismo de Guadagnino. É quase como o Bresson em O dinheiro. Há um momento em que a viúva descobre na casa do amigo do jardineiro um livro. É Walden, de Thoreau – aquele mesmo que inspirou o título do filme de Jonas Mekas – e que defende um modo de vida longe da civilização. O livro está aberto como se fosse uma bíblia: antes de ver o título, pensamos num relance que poderia ser uma, ao que a personagem responde “esse livro é a bíblia de meu companheiro”. Nesses momentos, vemos a ironia fina que caracteriza o melhor do cinema de Sirk, esse enorme cineasta que teve como destino realizar filmes comunistas endereçados às senhoras de classe média AB norte-americanas. No auge, já rico, ficou de saco cheio, pediu as contas e voltou para a Dinamarca para fazer suas pequenas peças de teatro. (Morreria desconhecido se não fosse Fassbinder, mas essa é uma outra história)
Há algo que sempre parece não cheirar muito bem por trás do extremo bom gosto dos filmes de Sirk. É preciso vê-los para além de sua superfície cristalina.
Outra proposta radicalmente diferente é o do brilhante O MATADOR DE OVELHAS, de Charles Burnett. Filme obrigatório e fundamental no contexto do surgimento de um cinema militante hoje no Brasil, reivindicado por negros e mulheres. Burnett faz um cinema assumidamente em defesa de um outro modo de ser no mundo, diretamente enraizado na sua condição étnica. No entanto, foge completamente do clima de denuncismo, vitimização e culto ao ódio. É um filme permeado pela violência mas que busca ainda assim viver de uma forma humana, honesta, digna e permeada de afeto.
O filme discute onde é possível reunir afeto num mundo repleto de violência. O mais marcante exemplo disso é como ele filma as crianças. É maravilhosa a forma livre e despojada como as crianças estão no filme – se fosse no Brasil de hoje o diretor seria acusado de descuidado com as crianças, mas acontece que elas estão ali, caindo e levantando, apanhando e batendo, sem paternalismo. Exemplo dessa aversão ao paternalismo me parece ser o próprio título, ou a profissão eventual do protagonista: é um matador de ovelhas. Ele é morto pelos brancos, mas também mata. O prólogo do filme apresenta essas intenções de modo muito forte: o pai bate no filho e diz que ele precisa aprender a ser homem para sobreviver. Mas a luta do filme nunca é por meio do ódio ou do ressentimento. O diretor mostra profundo afeto por seus personagens, pela paisagem local, pela possibilidade de fazer cinema. E incrível é como o filme assume toda a sua pobreza.
Como é potente vermos outras formas de estar no mundo! Quando vemos O matador de ovelhas logo após Call me by your name é gritante nosso choque em relação aos contextos sociais de onde cada filme emerge. A pobreza de O matador, sua proximidade com o documentário contrastam radicamente com o maneirismo empolado de Call me by your name. Não são apenas contextos étnicos, mas também sócio-econômicos. Mas, além disso, são duas formas de ver o mundo, de estar no mundo, de reagir às situações que nos surgem, de como as narrativas encenam suas crises e de como cada diretor opta em mostrar esses mundos. Ao mesmo tempo, o brilhante filme de Sirk mostra que a questão não é ter dinheiro ou ser rico, mas como se mostram esses mundos, o que a mise en scene desses filmes revela ou esconde sobre sua própria natureza.
Aqui não há espaço para o aparente bom gosto mas para a verdade – palavra que nesse mundo pós-tudo as pessoas ficam com cada vez mais medo de usar. É preciso ir para a essência das coisas, para além das aparências. É preciso viver, com todos os riscos que isso implica.
Não há como não se lembrar dos filmes de André Novais, que certamente viu esse filme com atenção para fazer seu extraordinário Ela volta na quinta. Provavelmente Burnett não deve saber que seu filme pobre e urgente gerou frutos aqui nessa nossa distante província Brasil.
E é só o começo.
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