MFL 2017 - Texto de Curadoria
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Como faço todo ano, eis o texto que escrevi sobre a curadoria da Mostra do Filme Livre. Não é o texto que gostaria, mas é o texto possível, como sugere esse prólogo que tive que engolir. Acho que ele ainda é válido, por isso o publico aqui. A verdade é que não podemos mais filmar o que queremos nem podemos mais escrever o que queremos. Para sermos livres, temos que pagar um preço muito alto. Essa carta é, portanto, quase que uma carta de adeus.
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Carta sem título para os curiosos desconhecidos
Como faço todo ano, eis o texto que escrevi sobre a curadoria da Mostra do Filme Livre. Não é o texto que gostaria, mas é o texto possível, como sugere esse prólogo que tive que engolir. Acho que ele ainda é válido, por isso o publico aqui. A verdade é que não podemos mais filmar o que queremos nem podemos mais escrever o que queremos. Para sermos livres, temos que pagar um preço muito alto. Essa carta é, portanto, quase que uma carta de adeus.
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Carta sem título para os curiosos desconhecidos
(PRÓLOGO: este texto não expressa necessariamente a opinião
da Mostra do Filme Livre nem de seus curadores, reflete apenas a "opinião
pessoal" do autor)
O Brasil de hoje não é o que era antes. Não sei ainda se isso é bom ou mau. Os fantasmas despertaram e eles não se divertem. Fazer curadoria de um festival de cinema virou um quebra-cabeças. É preciso ter "representatividade" de filme de gênero, dos documentários, das animações, de filmes de todas as regiões geográficas do Brasil, filmes das minorias, dos negros, dos LGBTs, das mulheres, filmes sócio-políticos. Um pra lá, dois pra cá. E o cinema, diante de tudo isso? E o gesto daquele realizador que deseja expressar algo para o mundo que ele próprio não sabe muito bem o que é? Como ele fica diante desse quebra-cabeças? O filme precisa ter um discurso prévio à sua realização para entendermos suas intenções? O filme precisa vir acompanhado do RG do cineasta? Como o cinema pode operar diante do desconhecido?
Um filme, uma obra de arte, não precisa ser contemporâneo ao
seu tempo, já dizia Agamben, já dizia Godard. Vivemos estressados. E dizem que
o estresse é o excesso de presente. Uma vez Godard perguntou a Straub porque,
em pleno maio de 68, quando os estudantes estavam nas ruas dando o seu sangue
nas barricadas, ele fez um filme (anacrônico) como Crônica de Anna Magdalena
Bach. Foi então que Straub lhe respondeu que seu filme era exatamente sobre
isso, que esse seu filme (aparentemente inofensivo, ou aparentemente apolítico)
sobre as cartas trocadas entre Bach e sua esposa era justamente uma resposta à
invasão dos Estados Unidos ao Vietnã. Straub também disse a mais bela frase que
já ouvi sobre o cinema político: "saber fazer a revolução também é saber
filmar o som do vento que balança a copa das árvores." Ora, pois como
iremos fazer a revolução se não conseguimos mais sentir o cheiro das folhas das
árvores?
Diante da enorme efervescência que foi o ano de 1968, fico
pensando que talvez os filmes que mais me movam hoje e que foram realizados
nesse ano e no seguinte são "Crônica de Anna Magdalena Bach", "A
Cor da Romã", e "Walden". Três filmes que não expressaram sua
adesão ao movimento das ruas de modo direto, explícito. Pois a arte tem
meandros que permite que o artista se expresse de muitas formas, pois o grande
desafio do cinema livre é, acima de tudo, ampliar a nossa experiência sensível
diante do mundo.
As minorias despertaram do seu transe, reivindicando um país
mais justo, diante do extermínio planejado e velado de milhões de negros,
mulheres, transsexuais, pobres. Seu ódio, sua raiva, diante dos milênios de
mortes represadas, são inevitáveis. Mas como é possível convivermos juntos
dadas as nossas diferenças? A única saída é a violência? Será que é ainda
possível debatermos as nossas diferenças sem nos matarmos? Ainda é possível
con-viver? É possível resistir de muitas formas. Queiramos ou não, as culturas
são híbridas. Aqui convivem o catimbó e a feijoada. O Zé-Pereira e os blocos de
sujo continuam tirando o sono e a tranquilidade das ruas, pelo menos por alguns
dias do Carnaval.
E como o cinema pode reagir diante disso? Venho relendo e
tentando refletir com as lições da Rússia dos anos vinte e da França dos anos
sessenta. Creio que o cinema não pode ser instrumentalizado diante da luta
sociopolítica, com o risco de se transformar num mero panfleto ou manual, como
os filmes do realismo social do governo de propaganda russo. Me interesso em
pensar no gesto de líderes intelectuais da esquerda francesa, que romperam com
o partido comunista por não concordarem com os rumos da esquerda nos anos
cinquenta e sessenta. Ou ainda, com o cinema novo brasileiro, quando Glauber
fez a opção extremamente corajosa de se rebelar contra o realismo descritivo
dos filmes do CPC e foi buscar uma "estética da fome", e depois uma
"estética do sonho", para que os filmes expressassem no seu próprio
modo de ser a busca por uma expressão autônoma, livre, anti-intelectual,
primitiva, antiburguesa e anticolonizada.
Essa é a busca do cinema livre por vários anos. Os artistas
muitas vezes escolheram os caminhos mais difíceis, e, por isso, não foram
compreendidos no seu próprio tempo. Eles não aderiram imediatamente às causas
de seu tempo, e essa não-adesão talvez signifique que eles estavam mais
próximos de seu tempo do que seus contemporâneos. À medida que a luz se
aproxima, sinto que precisamos cada vez mais voltar nossos olhos para a
escuridão, pois há algo ali adormecido que possa nos fazer sentir melhor esse
abismo que nos sangra.
É preciso estarmos juntos, nos movimentos, nas praças, nas
ruas, lutando pela liberdade. Mas ainda defendo radicalmente a possibilidade de
estarmos sós. Sinto-me só, e não deixo de lutar por causa de minha solidão,
mas, ao contrário, luto exatamente pela minha condição. Defendo a possibilidade
que cada pessoa ainda possa se expressar por si só, sem representar nenhum
"grupo" ou "instituição". Defendo a existência das aspas. e
das "opiniões pessoais".
Estou só. Continuo sendo aquele menino ingênuo que observa
você dançar lá embaixo na rua, abrindo um canto da minha janela. O menininho de
"Não Amarás". Minha solidão não me enfraquece, mas é tudo o que
tenho, pois sou eu. Não faço adesão a nenhum grupo, a nenhum partido político,
a torcida organizada de time de futebol, aos "grupos de pesquisa" da
universidade, a nenhum coletivo de cinema, a nenhum grupo de artistas ou
intelectuais, a nenhum movimento social. A independência, a liberdade, são uma
forma de solidão. Acredito que uma das missões do artista e do crítico é estar
só. Permaneço defendendo a possibilidade de um filme todo realizado por uma
única pessoa, dentro de sua casa, como se fosse um livro ou um quadro. Que
gesto essas obras solitárias podem oferecer ao mundo? Não tenho ideia. Mas
continuo a jogar essas garrafinhas lá para o fundo do mar, o mais longe
possível de mim, com todas as minhas forças. Jogo-as e deixo que o vento ou as
marés as levem. Em cada uma delas, há apenas uma mensagem: "eu te
amo". Como diria um provérbio chinês, "tudo passa". Talvez
alguma delas chegue até a ti. Talvez algo seja transformado quando você abrir a
garrafa e a ler. Provavelmente não. Mas permaneço sistematicamente exercendo o
meu fracasso, esse exercício sistemático de minha solidão. A liberdade, para
mim, nada mais é do que o gesto (ou a possibilidade) de jogar algumas dessas
garrafas ao mar. Mas como podemos ser livres sem o outro, trancafiados dentro
de casa? Há algo que me leva a querer romper esse casulo e voar. Esse gesto é
meu amor por ti, é meu desejo de encontro. Há algo que falta mas que sinto que
essas palav
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