CINE REBUCETEIO - Histórias que nosso cinema (não) contava
Há exatamente uma semana (no dia 15/05) houve a primeira exibição do CINE REBUCETEIO, cineclube que coordeno no Cinema do Dragão e faço a curadoria. A cada edição do cineclube, é distribuído um "folheto crítico", com um texto sobre o filme. Eis o texto sobre o filme de abertura do cineclube:Histórias que nosso cinema (não) contavade Fernanda Pessoa, que esteve presente na sessão para uma conversa com o público.
***
Histórias que nosso cinema (não)
contava
O cineclube CINE REBUCETEIO foi assim
nomeado como uma singela homenagem ao filme Oh!
Rebuceteio. Realizado em 1984 pelo diretor Claudio Cunha, este filme ficou
por muito tempo legado ao estigma de uma pornochanchada grosseira, mas, nos
últimos anos, houve uma revisão crítica que alçou o nome de Claudio Cunha a um
grande artesão do cinema brasileiro, com outros títulos, como Snuff, vítimas do prazer e O gosto do pecado.
Oh! Rebuceteio foi exibido com grande destaque no prestigioso Festival de
Rotterdam, em 2012, como parte de uma retrospectiva do cinema brasileiro.
Com esse
gesto, além do irresistível bom humor que o título indica, queremos apontar
para o fato de que muitos filmes no cinema brasileiro não conseguiram
reconhecimento crítico no momento de sua produção, mas uma fortuna crítica fez
com que, décadas depois, esses filmes pudessem ser melhor avaliados e pudessem
ser reconhecidos em suas propostas artísticas. O filme de Claudio Cunha combina
ousadia e humor, apelo de mercado e irreverência crítica. É um filme
metalinguístico, que mostra os ensaios de uma trupe de teatro em busca de uma
peça ousada que satisfaça as demandas artísticas do seu diretor e as
financeiras do seu produtor. É um libelo por um cinema brasileiro possível, que
ressoa ainda hoje no espírito de um certo cinema brasileiro jovem. Por isso,
intitulamos o cineclube de CINE REBUCETEIO. Pois curiosamente esse filme talvez
esteja mais vivo hoje do que quando foi realizado.
Por isso, entendemos que nada melhor
que iniciar os trabalhos do cineclube com o filme de Fernanda Pessoa, Histórias que nosso cinema (não) contava.
Realizado exclusivamente com imagens e sons de filmes brasileiros dos anos
setenta, o filme busca justamente resgatar uma filmografia brasileira
considerada “menor”, inserindo novos olhares na historiografia do cinema
brasileiro. A “pornochanchada” por muitos anos recebeu o estigma de um gênero
menor, cujo valor seria medido apenas pelo número de espectadores e não por
suas possibilidades estéticas. O “cinema popular brasileiro” vem sofrendo, por
muitos anos, um preconceito por parte da crítica e da mídia, por não se adequar
aos parâmetros estabelecidos pelos cânones de um certo cinema de autor.
O filme de Fernanda Pessoa é, desse
modo, o “lado B” de Cinema Novo, de
Eryk Rocha. Premiado no Festival de Cannes, realizado simplesmente pelo filho
de Glauber, maior expoente do movimento, trata-se de um ensaio visual poético
que busca um olhar íntimo para o principal movimento cinematográfico do país. O
“cinema novo” permanece como movimento central na história do cinema
brasileiro, em torno do qual, a partir de meados dos anos sessenta, todo o
cinema brasileiro gravita. Sem deixar de reconhecer a indiscutível importância
histórica do movimento, é preciso, no entanto, abrir a “caixa de pandora” para
reconhecer também o valor de outros filmes e autores que compõem a história de
nosso cinema. Nosso cinema é múltiplo, e sempre cabe espaço para mais um em
nossos corações e mentes.
O título do filme de Fernanda nos
aponta exatamente para esse curioso paradoxo: se por um lado esses foram os
mais vistos filmes de sua época, por outro, permanecem sob o véu de certa
invisibilidade. O gesto de Fernanda é, então o de “nos fazer ver” o que são
esses filmes. Trata-se também de um filme-ensaio, manipulando as imagens de
arquivo para oferecer um retrato que desconstrua o olhar ainda hegemônico sobre
essa produção. Afinal, quais histórias nosso cinema contava? O visível e o
invisível. Por trás das convenções de gênero e tendo que seguir os estritos
códigos de censura da ditadura militar da época, o que de fato esses filmes
contavam?
É preciso, então, voltar aos filmes;
é preciso então revê-los. Fernanda realiza o trabalho de uma arqueóloga, ao
retirar esses filmes de suas tumbas para que possamos vê-los com os olhos do
presente, com olhos descontaminados dos preconceitos de uma época. Com “olhos
livres”, como diria Carlos Reichenbach.
Se as pornochanchadas sempre foram
vistas como filmes escapistas cujo principal atrativo eram as cenas de sexo,
que atraía a incauta massa de espectadores que não queria refletir sobre os
problemas políticos de seu país, o que o filme de Fernanda nos mostra é uma
revisão desse olhar apressado, inserindo novas camadas de interpretação para
esse conjunto de filmes.
Nessa segunda leitura, Histórias que nosso cinema (não) contava
se revela não apenas um filme sobre a historiografia do cinema brasileiro (um
filme para cinéfilos) mas primordialmente um filme que revisita a própria
história do nosso país. Vemos, então, como o cinema popular brasileiro dos anos
setenta dialogou com o próprio momento histórico de nosso país. Longe,
portanto, de ser escapista, descobrimos, com o recuo do tempo, como esse cinema
estava profundamente embebido da realidade social brasileira, driblando os
mecanismos da censura – tanto a oficial (a de Estado) quanto a de mercado (a
necessidade de sobrevivência num mercado como sempre dominado pelo produto
estrangeiro) – ora revelando as contradições e hipocrisias do “doce charme” da
burguesia brasileira ora diretamente criticando suas convenções.
Assim, surge no filme um conjunto de
temas sociais que mostram desafios do país nos anos setenta: vemos a escalada
do capitalismo brasileiro, em seu anseio pelo desenvolvimento, seja pela via do
capitalismo industrial quanto do financeiro. Fala-se muito em dinheiro
(“dinheiro vivo” ou ações), na criação de empresas e indústrias (que poderiam
fabricar plástico ou penicos). Vemos a presença do capital estrangeiro, por
meio do sotaque dos gringos engravatados, ou mesmo na bolsa de valores. Os
gráficos que revelam a “subida” das ações causam um estímulo quase sexual aos
acionistas. A classe média brasileira busca elevar o seu padrão de consumo, por
meio da explosão do consumismo, com um desfile de carros, roupas, jóias e
outros acessórios. Mas escondem suas dificuldades por trás de um cenário de
grave crise econômica. A recessão, ou ainda, a inflação e o desemprego, são
revelados por meio de frases de duplo efeito (“houve um tempo em que eu subia como
o dólar”, “estou vendo como você está duro!”). De outro lado, alguns dos filmes
tocam em pontos considerados “subversivos”, mostrando o outro lado da moeda: a
“ameaça” do comunismo, a caça às bruxas (os policiais que vão atrás dos livros
proibidos), até mesmo uma cena de tortura. Outros temas que revelam a
insatisfação popular, como a greve (mesmo que seja a greve em um puteiro!), as
precárias condições de trabalho, ou mesmo a reforma agrária, são abordados em
alguns dos filmes exibidos.
Outro ponto importante abordado pelo
filme é a presença da mulher. Os filmes da pornochanchada sempre foram
considerados machistas e vulgares, tratando a mulher como mero objeto de desejo
masculino. Até que ponto é possível revisitar esse olhar? É possível
afirmar que em alguns desses filmes há
momentos de protagonismo feminino, dialogando com a emancipação feminina e a
revisitação dos costumes com a revolução sexual dos anos sessenta? É possível
afirmar que nesses filmes era permitido que as mulheres também gozassem, sendo donas
do seu próprio corpo, para além da moral fechada de sua época? São perguntas
provocativas, ainda mais pelo fato de o filme ser dirigido por uma mulher, e
que o filme não responde de uma forma conclusiva, mas apenas alusiva, como é a
tônica de seu discurso.
Minha única ressalva (metodológica) ao
filme de Fernanda é que, ao falar de filmes da pornochanchada, a diretora
escolhe um escopo de filmes que pode ser considerado restritivo, incluindo alguns
filmes que não preenchem os perfis mais básicos do gênero, como Terror e êxtase, Amante muito louca, ou mesmo Snuff.
São filmes que dialogam com o gênero de uma perspectiva muito transversal. É
possível pensarmos até que ponto seu recorte não induz um olhar que não é
hegemônico dentro do gênero. Por isso, acho mais interessante dizer que o filme
de Fernanda reflete sobre o “cinema popular brasileiro” do que propriamente
sobre o gênero da “pornochanchada”.
Vemos esses filmes dialogando com o
espírito de sua época, mas inevitavelmente os vemos aos olhos de hoje. O que
nos surpreende nessa revisão dos filmes populares dos anos setenta é a
atualidade desses filmes. A crise econômica, o desemprego, os paradoxos da
burguesia, a covardia da classe média brasileira, a ameaça do fim da Petrobrás,
são temas, entre outros, que poderiam ser tratados como hoje. A distância do
tempo talvez nos faça perceber que talvez os filmes dos anos setenta
retratassem melhor o Brasil de sua época do que os filmes de hoje. Ou ainda, será
que os principais “filmes populares brasileiros” (as comédias da Globo Filmes)
falam do nosso momento histórico como os filmes dos anos setenta, e que só
perceberemos isso daqui a quarenta anos?
Comentários