QUE HORAS ELA VOLTA?





O novo filme de Anna Muylaert vem gerando uma aprovação crítica quase unânime como um filme importante que analisa as contradições das classes sociais e as transformações econômicas e sociais brasileiras, comparado com filmes como O SOM AO REDOR e CASA GRANDE.

Acho curioso que essa boa recepção crítica tenha sido precedida pelo sucesso do filme em sua exibição no exterior. A ótima acolhida do filme em Sundance e em Berlim abriu os caminhos para a aprovação crítica do filme no Brasil. Parece que ainda vivemos sob o complexo de inferioridade: é preciso uma aprovação de fora para corroborar a aceitação no nosso próprio país.

Tendo a desconfiar que a boa acolhida no exterior tenha contribuído para atenuar a avaliação crítica do filme, pois a meu ver o filme possui falhas estruturais muito visíveis.

QUE HORAS ELA VOLTA? parte de uma premissa interessante: analisar as contradições da classe média brasileira sob o ponto de vista de uma empregada doméstica nordestina em uma família rica paulistana. Assim, estão em jogo as diferenças entre o Nordeste e São Paulo, entre classes sociais, entre gerações, entre homens e mulheres. Se Val (a empregada representada por Regine Casé) é submissa, vivendo em função da vida de seus patrões, sua filha Jéssica é determinada, com viés crítico e visão de futuro. É uma nordestina, filha de uma doméstica, que quer estudar arquitetura na USP.

O que começa a complicar é como o filme dá forma a esse desejo de falar das contradições do país, são as opções que a diretora utiliza para dar corpo a essas intenções.

O que me incomoda no filme é a falta de sutileza na composição dos personagens e das situações. Os personagens são todos personagens-tipo, cujas motivações, falas e gestos são totalmente marcados por sua função dentro do roteiro, não possuindo nenhum tipo de contradição, de dúvida ou de nuances de cinza. O tempo todo o roteiro precisa ser o mais didático e esquemático possível para revelar ao espectador a função de cada peça na narrativa. Assim, temos altas doses de obviedades e redundâncias. Exemplo é quando Jéssica chega à casa dos patrões de sua mãe, e se forma rapidamente um prenúncio de triângulo amoroso entre o pai e o filho. Imediatamente o pai dá em cima de Jéssica, e o filme vai apenas reiterar esse desejo.

O filme é todo baseado em personagens-tipo. Val é a empregada doméstica guerreira e bem-humorada que vem do Nordeste; Bárbara é a patroa rica fútil, que não dá atenção ao filho muito menos à empregada; Fabinho é o filho mimado virgem que não consegue passar no vestibular; etc. A univocidade do perfil dos personagens não consegue dar conta das ambiguidades e sutilezas das transformações do país. Ou seja, a caracterização dos personagens do filme parece construir uma tese mais do que compor uma tessitura humana que dê corpo de forma orgânica a essas intenções. O corpo dos atores está totalmente contaminado com essas intenções apriorísticas: o corpo, a voz, o sotaque de Val versus o de sua patroa Bárbara. Todas as situações e diálogos são criados para ilustrar de forma didática as intenções do roteiro sem camadas de sutileza: a disputa pelo pote de sorvete, o flerte de Carlos (o pai) sobre Jéssica. E especialmente os trejeitos e caretas de Regina Casé, simpática na medida certa para cativar, seduzir e emocionar o espectador, o que faz com que o filme gere uma adesão fácil e rápida à posição da empregada que reduz o ponto de vista crítico da narrativa. Quando ela se transforma a passa a fazer ações que tensionam seu lugar passivo (entrar na piscina, levar o jogo de xícaras), as ações são escolhidas na medida certa a funcionar como pequenas vinganças que aumentam a adesão emocional do espectador. E, como bem já disse Beckett, só é possível ter uma análise crítica se mantivermos certa distância, e, para isso, evitar a catarse emocional do espectador. A forma como O SOM AO REDOR vai se equilibrar numa narrativa fragmentada, e se posiciona de forma muito mais ambígua entre seu personagem principal e seu suposto antagonista, foge das armadilhas do roteiro-de-tese e dos personagens-tipo - duas das coisas mais problemáticas que se deve evitar a todo custo quando se busca construir um filme que se propõe a uma análise de um estado de coisas no "mundo real". O bonito de O SOM AO REDOR é que a narrativa se põe ao lado do personagem de classe média (o filho), o mesmo do próprio diretor, sendo portanto um relato honesto das dificuldades de uma geração e de suas incoerências. A diferença é como se em QUE HORAS ELA VOLTA? a narrativa fosse do ponto de vista do filho mimado, que observa as coisas um pouco de longe, não gosta muito de seus pais, tem uma simpatia pelos empregados mas está até o pescoço enterrado na sua "herança". Muylaert prefere contar essa história do ponto de vista da doméstica simpática, que logo logo vai ganhar a adesão do público.

Por trás de seu tom prosaico e de base realista, o tom de artifício é muito visível em Que horas ela volta?, e suas estratégias resvalam para o folhetinesco, reduzindo seu impacto crítico. Todas as opções de encenação - os tempos da narrativa, a direção de arte (vejam as diferenças entre o quarto da empregada e o quarto de hóspedes), a iluminação (bastante grosseira), o corpo e trejeito dos atores - explicitam as intenções prévias da narrativa, repetindo, reiterando, trazendo a simpatia do espectador, que em nenhum momento recua, desconfia, se surpreende. O que nos faz concluir que QUE HORAS ELA VOLTA? é um falso filme político, pois em nada leva a uma transformação no padrão da classe média que assiste ao filme: no máximo trata-se de um filme "simpático" que afaga nossa consciência para o drama das "segundas mães". O final otimista lança o apelo emocional final, mostrando a esperança, a vitória da virtude e da garra desses mulheres solitárias (sem homens, pois todos os homens do filme são imprestáveis) que podem triunfar num Brasil que "vem dando certo" e permite uma ascensão social para o futuro (ainda no extracampo). Vitória que em nenhum momento tensiona a posição dos patrões, que permanecem confortáveis em seus lugares, mais ou menos como a posição dos próprios espectadores do filme.

QUE HORAS ELA VOLTA? é interessante como produto: como proposta de filme médio que busca uma comunicação com maiores camadas do público consumidor, e, ainda que coproduzido pela Globo Filmes, fuja do modelo hegemônico do padrão das comédias televisivas que se proliferam. Como proposta de filme médio, o filme consegue adesão com um público de classe média, através da simpatia dos personagens, especialmente Regina Casé, e um roteiro redondo e uma ambientação coerente, sem atropelos, com sua visão otimista e seu certo humor. O que me parece exagerado é elevar o filme a uma camada de reflexão aguda e profunda sobre um estado de coisas da sociedade brasileira, pois seu roteiro e mise en scene são por demais convencionais/didáticos para dar esse salto. Penso mesmo na diferença entre o filme de Muylaert e O AMOR É ESTRANHO, maravilhoso filme de Ira Sachs que se aprofunda mais nas relações humanas porque não precisa comprovar uma tese mas "apenas" viver o drama dos personagens.

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Comentários

Murilo disse…
nao sei nem quero saber a hora
que vai voltar...











CUiDADO mADAME!!!!
Murilo disse…
Este SIM é que é o grande e underground
movie sobre as empregadas e nele
elas não voltam...atrás.


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Cuidado, Madame (1970) – Júlio Bressane
DEZEMBRO 15, 2014 / REVISTA A!


https://www.youtube.com/watch?v=YP4RIhEmEqw


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Cuidado, Madame (1970)

Dir.: Júlio Bressane







Os personagens de Michelangelo Antonioni, Jim Jarmusch e da Belair (pseudo-produtora da qual a autoria das obras pode ser repartida entre Júlio Bressane e Rogério Sganzerla) vagam pelo filme como flanêurs, sem nenhum propósito. Pra lá e pra cá, eles andam, sentam, comem, dormem, quase como se não tivessem vontade, como se fossem folhas caídas da árvore da narrativa linear, movendo-se com menor ou maior rapidez ou violência pela tutela de forças exteriores.

Em Antonioni, o tédio é o motor desse vagar sem direção. Uma classe econômica decadente se descola da sociedade que comanda, da história que a criou e da resposta ao chamado do futuro. À pergunta existencial “o que fazer com isso que sou”? eles preferem não responder, não por medo, mas por preguiça. No entanto, a ação dessa pergunta, o vazio de sua não-resposta, repercute na vida tediosa dessa classe. Não há nada a se fazer, mas cada coisa não-feita no cotidiano movido à tédio nos lembra que não há nada a se fazer. O nada está presente.

Não é o que acontece com os personagens de Jarmusch. Estes nem sequer tem consciência desse nada. Antonioni sabe que a vida tem uma estrutura, na qual o sentido da vida desempenha um papel, e seus personagens são aqueles que vivem essa estrutura colocando a falta de um sentido no lugar do sentido. Jarmusch acaba com o próprio lugar do sentido. Não, é claro, através de uma destruição criadora, mas sim da simples ignorância simbólica. Seus personagens vivem pelo tédio, pela falta de um sentido, mas não notam essa falta – ou não estão interessados em notá-la, em senti-la. Por certo a consciência da falta cria uma vida de sofrimento existencial, o que não é o mesmo em Jarmusch. O sofrimento existe, mas ele é da própria natureza hedonista – por vezes temos prazer, por vezes não.

Bressane/Sganzerla tem uma diferença essencial em relação aos dois outros diretores. Ao contrário dos personagens deles, que através da pobreza existencial se separam do mundo à sua volta, na Belair as pessoas estão, pela pobreza existencial e material, inseridas no mundo. São indivíduos brasileiros, o que não se pode dizer dos personagens do diretor italiano ou do diretor norte-americano, cujo vazio se traduz fora do mundo. Pela falta de sentido os boçais do cinema marginal estão no mundo mais do nunca. Se fundem ao mundo, dele tiram proveito, por ele são violentados.

Ao fundir existencialismo e materialismo, a Belair achou a chave do baú, o mapa do tesouro. Cuidado, madame é luta de classes, algo que parece sumir do jogo de filmes como A Aventura ou Estranhos no Paraíso. Mesmo em O Deserto Vermelho ou Down By Law, quando esses diretores parecem tocar nas questões sociais, logo saem pela tangente através da falta de sentido do filme. Tudo nasce de um parricídio: Rosselini e Füller contradizem seus “filhos”, Antonioni e Jarmusch, respectivamente, dizendo que a política é o lugar do sentido (esquerda, para Rosselini, direita para Füller). A prole quer escapar da influência paterna escapando do sentido, mas compra a estrutura anterior mantendo a equação sentido=política. Dizem: é precisa escapar do sentido, por isso largamos a política. Os dois tentam superar seus pais superando a política.

Pra escapar dessa estrutura é necessário escapar dessa equação, mas para tanto não basta a força de vontade, a liberdade autoral. O filme é uma máquina produzida por uma indústria formada por um mosaico muito maior que a vontade e liberdade de um homem com uma câmera. Só com condições materiais diferentes se pode criar novas estruturas de pensamento.

Murilo disse…
Quem dizia isso era Glauber Rocha: só no terceiro mundo é possível superar a estrutura européia. Mas especificamente, naquilo que o terceiro mundo tem de mais próprio, a pobreza material e espiritual. Cultura derivada, técnica defasada, investimento financeiro quase nulo. Assim como o proletariado é a classe revolucionária não por uma vontade miraculosa, mas por condições materiais específicas (que estão em relação bilateral com a vontade, já que as condições sozinhas não implicam necessariamente na revolução), o cinema brasileiro e terceiro-mundista, por sua situação histórica, social, é o lugar onde a forma do cinema pode se reconfigurar plenamente (o que não quer dizer que ela o faça).

É por isso que o grande cinema nacional é marxista, mas de um marxismo que Rosselini e os grandes partidos de centro-esquerda europeus que tomaram o poder na metade do século XX já se haviam se esquecido, em nome da realpolitik.

Em Cuidado, Madame, as classes estão em polvorosa, se digladiando como animais, transbordando seus domínios próprios com os interesses de classe, com o líquido rubro da parcialidade política. As pessoas são o que são, mas no mundo, e não fora dele. Um existencialismo burguês poderia dizer que a autenticidade reside na refutação dos rótulos do mundo – um indivíduo ama, odeia, sente, emociona, pensa, fundamentalmente, para além da classe. Para um existencialismo materialista, como queria Sartre (que veio ao Brasil), por sua vez, não importa aquilo que fizeram de nós (como querem behavioristas sociais) e nem aquilo que fazemos de nós (como querem idealistas burgueses), mas aquilo que fazemos do que fizeram de nós.

Murilo disse…
As empregadas matam suas patroas e vão pra praia, os filhos matam suas famílias e vão pro cinema, as classes matam-se umas as outras e não deixam de ser o que são. Na violência segregam-se os lugares de onde cada força social parte.

A câmera participa dessa luta também, balançando displicente na mão do cinegrafista, disputando a atenção dos atores, que são e não são, como em Cassavetes, os personagens que interpretam.

A edição, que se mostra se ocultando, em cenas demoradas sem cortes, planos-sequencia enormes e tediosos, no início parece incompreensível ou desnecessária, mas gradativamente vai causando o que quer causar, a sensação de transe, a epifania cotidiana. Através do cenário, o espaço, e do tempo demorado da edição, unidos à câmera documental, o filme passa o stimmung dos personagens do filme e do próprio filme, enquanto produção subdesenvolvida. É o Rio de Janeiro, e não qualquer lugar, como nos filmes onde o tédio existencial deixa o mundo em preto e branco, e o lugar onde tudo se passa, as classes onde tudo acontece, pouco importam (o que não chega a ser o caso pleno de Antonioni, mas isso é outra discussão). São os anos 70, igualmente. O filme é datado, e eis sua grandeza. Ele, como seus personagens, como seus autores, tem a clareza soberana de declarar o que são.

A última cena do filme merece menção. A câmera, balançando levemente em 180º de forma horizontal, filma, de noite, prédios em frente ao Aterro do Flamengo. Os prédios são pouco visíveis, apenas distinguíveis, de noite, mas os anúncios, outdoors gigantescos em seus terraços, brilham com força, apesar de estar muito longe para sabermos ao certo quais são os produtos que vendem. Isso fica por alguns minutos, talvez uns 5, que parecem mais, porque absolutamente nada acontece, a não ser o som do rádio, com as estações mudando, entre um jogo de futebol do Vasco, um bolero antigo, um pop setentista, e coisas do tipo. O grande truque aqui é que a câmera – e isso nós só notamos “tonalmente”, conforme o transe se apossa de nós – é uma câmera subjetiva. O personagem não aparece. Num filme catártico, isso nos faria cogitar quem ele é. Aqui, no entanto, todas as hipóteses são: um homem ouvindo rádio no aterro, uma das meninas do filme, o cinegrafista (Bressane? Sganzerla?) e o espectador, é claro. Não há um sujeito porque o sujeito , sendo o que é, aqui é fundido ao mundo em que habita. Ele não é simplesmente plural: é uma unidade plural. Uma coisa só, que são muitas. Uma coisa só que está atrelada necessariamente ao lugar de onde fala.

É necessário frisar mais uma vez que é de grande maestria cinematográfica conseguir fazer uma câmera descritiva (o narrador terceira pessoa da literatura aplicado ao cinema), através do ritmo, do tempo do filme, e de nada mais, sem auxílio narrativo, se tornar subjetiva.

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fonte:

https://cagueipraintencaodoartista.wordpress.com/2014/12/15/cuidado-madame-1970-julio-bressane/
Cinecasulófilo disse…
muito bons seus comentários murilo. muito pertinentes as comparações com CUIDADO MADAME!!! Continue nos presenteando com seus comentários! Um abraço!

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