(FESTIVAL DE BRASILIA) BIG JATO
BIG JATO
de Claudio Assis
Na apresentação de BIG JATO no Festival de Brasília,
confirmou-se o boato que já rolava nos bastidores, a polêmica que já se
esperava: um conjunto de vaias para o diretor Claudio Assis, em reação à
polêmica que se estabeleceu na internet a partir do debate no Recife, em que
Assis e Lírio Ferreira interromperam Anna Muylaert, numa sessão de pré-estreia
na cidade de Que horas ela volta? O público quase respondeu na mesma moeda: não
deixou Assis falar. Intolerância replicada com intolerância.
Essa apresentação no palco - cercada de expectativas e muito
comentada - precisa ser pensada de alguns modos. O primeiro é que o cinema de
Claudio Assis acabou se confundindo, e cada vez mais com o tempo, com a própria
personalidade do seu realizador. Isso a meu ver reflete o lado mais
problemático do cinema do autor (suas distorções), quando o estado-performance
do autor acaba se impondo sobre sua obra.
Começo falando sobre isso, porque esse disse-me-disse, para
além do campo fofocas/picuinhas do cinema brasileiro, reflete em muitas medidas
os impasses do cinema de Assis. Naquelas vaias, estava aberto o possível
paradoxo: como era possível que o diretor que, há algumas décadas, talvez
melhor encarnasse um espírito jovem, irreverente e inconformista no cinema
brasileiro contemporâneo passasse a ser visto por boa parte da plateia (e
especialmente pela plateia jovem) por um realizador que espelhava uma faceta
conservadora?
Me interesso por BIG JATO a partir dessa questão central (um
projeto de juventude como uma questão moral). O enfant terrible do cinema
brasileiro, o diretor de AMARELO MANGA, está envelhecendo - e isso é terrível
no caso de um cinema que precisa o tempo todo parecer jovem. Se ao mesmo tempo em que a violência brutal e
provocativa dos primeiros filmes de Assis vai se reduzindo a partir de FEBRE DO
RATO - ponto que até acho louvável, porque não raras vezes soava gratuita, ou
apenas a favor do escândalo - Assis sente mais dificuldade em respirar a
suposta juventude do seu cinema.
Assim, BIG JATO reflete essa lacuna geracional do cinema
brasileiro, espelhada, num nó estratégico, no próprio cinema pernambucano. O
cinema de Assis e de Lírio (e de mais alguns outros) agora é também o cinema de
Mascaro, de Pedroso, de Kleber Mendonça.
Mas não é apenas isso. BIG JATO acaba sendo um filme que
tenta responder questões, se insere numa problemática do cinema brasileiro da
retomada. É um filme que tenta se inserir em questões postas nos anos noventa.
Assim, parece um filme "velho", deslocado de seu tempo, quando
pensamos nas questões lançadas por alguns filmes jovens contemporâneos.
Com isso, busco me referir aos padrões éticos, econômicos,
estéticos e políticos que o filme de Assis tenta propor ou responder. Para além
de um modo de produção e de organização de equipe, e de uma certa proposta de
contato com o público (chaves econômicas), o filme propõe uma busca estética
baseada numa beleza que talvez não caiba no filme. A representação visual do
interior, a encenação (opções por exemplo de direção de arte, figurino,
cenografia), sem contar as opções de movimentação de câmera, as gruas, etc,
apontam para uma fuga de um desejo do real. Ou seja, a questão não é de
verossinilhança, é de verdade. Aproximamos da caricatura, do cinema de cenário.
Ou ainda, quando se mergulham nos dramas dos personagens, não se vai muito a
fundo. Ou seja, a merda nunca cheira no filme.
Fico pensando numa comparação entre BIG JATO e A DANÇA DA
REALIDADE de Jodorowsky. Não conseguirei aprofundar essa relação, mas em linhas
gerais coloco que, apesar de os dois filmes compartilharem um olhar próximo
quanto às possibilidades de produção e o tom visual da cena quanto ao desafio
realismo-encenação, no filme do Jodorowsky o drama se aprofunda porque se busca
um desejo de mergulhar a fundo nas contradições de seu personagem, fazendo-o
mergulhar até o inferno para que, a partir daí, ele ressurja, como fênix,
purificado. Assis, mais preocupado em parecer fazer bom cinema, permanece nas
superfícies dessa busca por um certo "cinema poético".
BIG JATO trabalha com dualidades que não dão mais resposta à
complexidade das relações do mundo jovem de hoje, às pulsões que movem o cinema
da juventude, seja do ponto de vista ético/moral seja no estético. O interior e
a capital, a poesia e a matemática, a rádio e a fossa, o homem e a mulher, o
partir e o ficar.
BIG JATO é uma aposta franca pelo atraso de um modo de vida
do interior: "aqui os poetas não podem ficar". É preciso sair. É
preciso ir ver o mar. Tudo ali - os dois Nachtergales, não importa - vai secar
e morrer. A liberdade, para o menino, é a fuga de um espaço - essa é sua única possibilidade
de encontro.
Os modos de representação desse mundo - as interpretações
que esbarram numa escolha pela estilização ou mesmo pela caricatura (esp Nachtergale),
as opções visuais, as frases de almanaque, as cenas nos puteiros - evocam um
olhar para um interior nordestino que não mais respondem às transformações
econômicas e sociais desses espaços. O cinema brasileiro também mudou, e propõe
uma visão menos romanceada desses espaços, assim como outros modos de
representação.
No fundo, BIG JATO nos mostra muito pouco, ele está mais
preocupado em narrar do que mostrar. E, para Assis, narrar é impor relações a
esse espaço visto como cenário e não como paisagem, ou seja, o espaço é elemento
exógeno à narrativa.
Filme de incrível e emocionante sinceridade, relato
enormemente pessoal, BIG JATO nos emociona pela forma como expõe as cicatrizes
de um percurso do cinema brasileiro, pela forma aberta como sinaliza para as
contradições, os impasses e os limites de um certo projeto de cinema brasileiro
dos anos noventa. BIG JATO é um certo ápice desse discurso, e ao mesmo tempo, a
comprovação de seu fim.
No debate em Brasília, Nachtergaele disse que vê seus dois
personagens como os dois lados de um zíper: de um lado, o "velho"
conservador bebum que dirige o caminhão que desafoga fossas; de outro, o
artista-radialista com uma energia libertária irradiante, mas anacrônico e
datado. Penso que esses dois personagens são o próprio Claudio Assis, e nunca
antes em seus filmes, vimos de forma tão aberta essas fissuras. O problema do
filme é que - moral e esteticamente - ele está muito mais próximo ao pai/tio
que ao menino, achando que está mais do lado do menino. BIG JATO seria mais
potente se sua narrativa estivesse mais francamente do lado dos adultos do que
dos jovens
.
Comentários
não digo que o filme é um fracasso. busco dizer que o filme é sobre o fracasso de um projeto para o cinema brasileiro. Escrevo fracasso, porque na verdade me parece que somos fracassados mas permanecemos tentando. O fracasso não invalida nossa busca. Como diria Beckett, é preciso fracassar cada vez melhor. Ter consciência dessa fracasso. Penso assim. Sou também influenciado por um texto de que gosto muito do Denilson Lopes, "Lições do fracasso". Assim, o que me incomoda no filme não é nem o seu suposto fracasso mas evitar assumi-lo.
Mas você tem razão: assim, pode parecer mais pesado.
Vou trocar assim a frase final do texto: "O que falta a BIG JATO talvez seja o reconhecimento do fracasso do seu projeto."
Sobre "vaia não apaga poesia", digo que não me importo com as vaias. Nem com os aplausos. Já elogiei e defendi muitos filmes vaiados, e já escrevi atacando muitos filmes aplaudidos. Assim, o objetivo do meu texto não é "atacar" o cinema do Claudio Assis, muito menos o cinema parnambucano nem independente. Tenho o maior respeito pelo trabalho do Claudio, um cineasta brasileiro importante. Busco muito modestamente tentar lançar alguns elementos que possam nos fazer refletir mais sobre o filme.