TIRADENTES 2014: A VIZINHANÇA DO TIGRE




Em A VIZINHANÇA DO TIGRE, Affonso Uchoa utiliza alguns artifícios já conhecidos no cinema contemporâneo: falar da periferia de uma forma afirmativa, mesclando ficção e documental. Ou ainda, colocando de forma melhor, tornando indiscerníveis os limites entre o que existe previamente à presença da câmera e o que é transformado a partir do momento em que ela é disparada. Ou seja, a partir de um encontro com o mundo, com o dia-a-dia dos personagens e com o espaço (geográfico, humano), o realizador engendra estratégias para que algo brote na presença da câmera, algo que possa dizer de forma mais potente O QUE É aquele mundo.

Assim, o filme se insere numa tradição do cinema contemporâneo mesmo a nível mundial (não temos como não lembrar Pedro Costa) mas especialmente no caso brasileiro. Em maior ou menor grau, podemos dizer que VIZINHANÇA se aproxima de filmes recentes como O CÉU SOBRE OS OMBROS, AVENIDA BRASÍLIA FORMOSA, MORRO DO CÉU, A CIDADE É UMA SÓ?, ESSE AMOR QUE NOS CONSOME, entre outros.

A VIZINHANÇA DO TIGRE observa então alguns jovens da periferia, de um bairro de Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte. O filme se baseia então em "esquetes", em alguns momentos em que esses amigos jovens estão juntos. Não há propriamente um desenvolvimento dramatúrgico; não há o desejo de dar a ver o que são as condições sociais desse lugar; os personagens não são vistos como oprimidos, como explorados ou como vítimas. Os meninos procuram ser. Os meninos não são representantes de classe.

A política de A VIZINHANÇA DO TIGRE, ou ainda, o seu cinema social, é bem diferente, portanto, do olhar do Cinema Novo, ou mesmo de um certo cinema brasileiro da "retomada".

A violência está presente em todo o filme. Os personagens não são propriamente miseráveis mas vivem em situação de pobreza. Os meninos brincam de armas, conhecem o jargão da violência, fala-se em pessoas que foram presas, ou no tráfico de drogas. Os meninos se xingam. Vão para um terreno baldio e jogam pedras. Exibem as suas cicatrizes, de tiros ou facadas. Cantam um rap cuja letra fala de tudo isso.

No entanto, não é a violência de Cidade de Deus. Não existe um projeto de futuro: os meninos querem apenas brincar, aproveitar o presente. Se a violência está o tempo todo no filme, ela não é vista como instrumento de exploração, de espetacularização da barbárie.

A estratégia de todo o filme é a de humanizar o convívio dos personagens com a violência. Os meninos sublimam a violência pela forma como, a partir dela, se relacionam. Eles criam uma forma possível de viver que não dá as costas à violência, que não nega a violência, mas que resignifica a violência, transformando-a numa forma de afeto. Ou seja, a violência é parte inerente desse dia-a-dia, e eles não a negam, não a evitam: eles assimilam a violência, reconhecem-na como parte de suas vidas, e a deslocam, na forma como interagem uns com ou outros.

De outro lado, a ressignificação da violência em afeto gera um rap. Ou ainda, gera um filme. Enquanto fazem os personagens de si mesmos, os meninos revalorizam a violência, jogando-a para um outro lugar.

Ou seja, a violência gera afeto, sem negar a violência. A violência está no corpo e na voz desses personagens, mas curiosamente é percebida também como afeto. Esse é o principal mérito e a principal contribuição do filme do Affonso: pensar a juventude, a periferia e o papel da violência nesse olhar de cinema e de mundo.

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