TIRADENTES 2014: os filmes da Mostra Aurora e as opções da curadoria
A cada vez que passa percebo mais
claramente que fazer uma boa curadoria é muito mais complexo do que
simplesmente selecionar "os melhores filmes". Uma boa curadoria é
aquela que repercute ao trazer questões, que aponta para uma discussão que atravessa
os filmes. Nesse sentido, entendo que este ano foi uma das mais interessantes
seleções da Mostra Aurora. Os sete filmes exibidos se complementam, e, através
de suas semelhanças e diferenças, é possível apontar para algumas das
possibilidades para o "cinema-de-garagem" brasileiro.
É curioso porque muito se
comentou a princípio sobre a ausência de filmes do eixo RJ-SP, e o suposto
excesso de filmes mineiros na programação (quatro filmes mineiros entre os sete
selecionados). No entanto, vendo com mais cuidado, os filmes mineiros exibidos
apontam para caminhos bem diferentes dentro do panorama do cinema brasileiro
jovem contemporâneo.
No primeiro dia, A VIZINHANÇA DO
TIGRE, de Affonso Uchoa, apresenta um olhar original para as periferias,
através de um híbrido entre documentário e ficção, num cinema social que
procura olhar para o outro de uma forma generosa, buscando a potência dos
corpos ao invés de um cinema de denúncia que busca classificá-los como
representantes de classe, ou como oprimidos. Em seguida, os dois longas
mineiros exibidos nos dois dias posteriores retomam a tradição do cinema
poético mineiro em seu diálogo com a videoarte e com as artes visuais. No
entanto, o fazem de formas bem diferentes. O BAGRE AFRICANO DE ATALEIA, de
Aline X e Gustavo Jardim, é um filme múltiplo, de difícil categorização, um
olhar idílico sobre os moradores da remota cidade de Ataleia, que serve como
ponto de partida para que os realizadores possam compor uma espécie de ensaio
visual sobre as tradições, os mitos e as reminiscências da memória nos dias de
hoje. Se O BAGRE é um filme conscientemente repleto de excessos, em uma
narrativa cheia de meandros, de idas-e-vindas, ou ainda, permeado de
"pistas falsas", em "narrativas-corais", como bem disse
Ewerton Belico, A MULHER QUE AMOU O VENTO, de Ana Moravi, também prossegue as
tradições da videoarte mineira, mas aposta no minimalismo, na dilatação dos
tempos e na rarefação narrativa. Se O BAGRE ainda possui uma certa vocação
documental, A MULHER é complemente ficcional: composto de pequenos elementos
com sutis variações, é uma aposta pela contemplação e pela beleza, retirando-se
de um mundo materialista e competitivo, observando a relação de uma mulher com
o seu amado vento. O quarto filme mineiro é absolutamente diferente dos demais.
ALIANÇA, de Gabriel Martins, João Toledo e Leonardo Amaral, dialoga diretamente
com o cinema de gênero: uma comédia rasgada, diretamente inspirada nos filmes
dos anos oitenta/noventa sobre a juventudade norte-americana, como os filmes de
Appatow, Mottola, Irmãos Farrely, e alguns outros. Comédia besteirol
francamente narrativa, distancia-se seja da vocação documental seja do tom
experimental. Procura um cinema jovem que mergulha com os personagens, em
direta comunicação com o público. Um cinema estranho, que não quer ser nem o
cinema da Teia ("o sofisticado cinema de arte") nem o da Camisa
Listrada ("o de produção requintada que busca um certo reconhecimento de
mercado"). Assim, os quatro filmes mineiros apontam para caminhos
complementares dentro do pensamento jovem do cinema brasileiro contemporâneo.
Completam a programação outros
três filmes bastante interessantes. De um lado, AQUILO QUE FAZEMOS COM AS
NOSSAS DESGRAÇAS, do paranaense Arthur Tuoto, é um ensaio visual à moda do
cinema de Godard, Debord e Farocki, uma relexão sobre a natureza e a função da
imagem na contemporaneidade, todo feito por uma única pessoa, e quase todo
realizado a partir de "found footage", ou seja, material "de
arquivo" seja de imagem ou de som. Se muito se fala sobre o jovem cinema
contemporâneo brasileiro a partir desse espírito de coletividade, o cinema
rigoroso e solitário de Tuoto marca uma notável contribuição a esse cenário,
mostrando a viabilidade da realização audiovisual por uma única pessoa, dadas
as possibilidades da tecnologia digital e de sua disseminação nas redes
virtuais.
BAT-GUANO, do paraibano Tavinho
Teixeira, é uma sátira bem humorada, em que, num cenário pós-apocalíptico,
Batman e Robin vivem juntos, como um casal, num pequeno sítio no interior. O
próprio diretor faz o papel de Robin, contracenando com Everaldo Pontes, com
uma performance admirável. A irreverência, o tom provocativo, o humor, o tom
performático, sua aderência por uma cinema mais de situações ou de esquetes do
que de evolução dramática tornam BAT-GUANO um oásis dentro do cinema brasileiro
contemporâneo.
Por fim, o interessantíssimo
BRANCO SAI PRETO FICA, do brasiliense Adirley Queirós, aprofunda o caminho já
trilhado por seu filme anterior (A CIDADE É UMA SÓ?, que venceu a Mostra Aurora
em 2012), ao acompanhar a trajetória de alguns moradores da Ceilândia,
mesclando documentário e ficção. Desta vez, de forma ainda mais radical que em
seu filme anterior, criando uma mise en scene sóbria, com um tom quase de
ficção científica. Se assim como em A VIZINHANÇA DO TIGRE, Adirley olha para
seus personagens de periferia não como vítimas mas vendo seu desafio de ser
mesmo com todas as dificuldades, em BRANCO SAI PRETO FICA a solução proposta
pelo realizador é o do enfrentamento, o do confronto.
Muitas outras relações podem ser
feitas entre esses filmes. É muito interessante ver tantos aspectos que os
aproximam e que os afastam. Penso que dois temas surgem como centrais para
pensar essas obras: a JUVENTUDE e a PERIFERIA. De outro lado, atravessam esses
olhares um embate entre o documental e o ficcional, e as ambíguas relações com o
cinema de gênero.
Se pensamos num tema como a
juventude, tendemos a aproximar A VIZINHANÇA DO TIGRE e ALIANÇA. Filmes que
buscam uma forma jovem de encenar, que buscam se aproximar de uma forma honesta
de seus personagens jovens, não negando suas dificuldades emocionais, mas
tentando aproximá-los, afastá-los de uma certa solidão, a partir de um
reposicionamento do afeto. O AFETO - essa palavra que alguns querem
transformá-la num clichê, ou em algo já superado, já visto, mas que percebo
que, ao contrário, é uma expressão de resistência, algo que está apenas
começando, um simples esboço diante de suas inesgotáveis possibilidades - ou
ainda, a amizade, se revela potência central nesses filmes, mas também surge
apontando suas diferenças, e revelando uma certa violência. É como os amigos se
tratam, de forma tão franca, que quase chega a ser ofensiva. Os amigos de A
VIZINHANÇA DO TIGRE se xingam a cada momento, assim como os de ALIANÇA
"zoam", chamando o outro de virgem, de judeu, etc. No entanto, os
dois filmes defendem a amizade como mola propulsora de um olhar humano para as
dificuldades do caminho. No entanto, as estratégias de abordagem e o olhar para
essa juventude são totalmente diferentes nos dois filmes. A VIZINHANÇA DO TIGRE
é repleto de situações comuns, em que são criadas situações em que os "não
atores" possam conviver entre si. Já ALIANÇA, os "não atores"
são os próprios diretores que, à moda de ESTRADA PARA YTHACA, se "fantasiam"
para espelhar sua posição de grupo não como espelho autobriográfico de si, mas
como ponto de partida para se reinventarem. Como na inversão típica do
Carnaval, eles se "travestem" para que, assim, consigam falar de si,
ainda que sem nenhuma relação diretamente documental. Todas as situações
completamente inventadas, por um roteiro seguido à risca, no entando são
artifícios que espelham, num labirinto de espelhos, a própria relação de
amizade que esses diretores guardam entre si. A juventude aqui vem nesse gesto
de se aceitar como precário, de se aceitar como é, de mergulhar em sua
imaturidade como um elogio à superfície. Como se não houvesse mais nada a não
ser a beleza desse gesto de querer estar junto e ser adolescente para sempre, e
que a vida durasse uma noite à base de (boa) cerveja.
Se pensamos na periferia,
tendemos a relacionar os filmes de Affonso Uchoa e o de Adirley, que foram, no
final das contas, os "vencedores" da Mostra. Ambos são realizadores
que nasceram e foram criados nessas comunidades e procuram olhar para a
possibilidade de fazer cinema na periferia, acompanhando o percurso de
personagens que não são vistos como vítimas, que não buscam meramente fazer uma
denúncia do descaso das autoridades para esse cenário de exclusão. A periferia
é vista como potência; os personagens é que precisam dar conta desse sentimento
de superarem suas dificuldades, a partir de um reconhecimento de um estado de
ser. No entanto, ambos têm opções bem diferentes. Se ambos apresentam um
híbrido entre documental e ficção, ou ainda, em termos melhores, entre o que
existe previamente à presença da câmera e entre o que a presença de uma câmera
transforma no instante em que é disparado um "dispositivo", é como se
os dois filmes usassem estratégias diversas. Enquanto o filme de Affonso busca
um certo apagamento das estruturas ficcionais, o filme de Adirley busca
examente o apagamento dos rastros do documental no interior da ficção. Não é
possível propriamente falar em "afeto" quando vemos o filme do
Adirley. Os personagens se ajudam mutuamente, mas não necessariamente por uma
relação de amizade, mas por uma consciência social, ou mesmo por interesse (a
troca entre o passaporte e a gravação do CD). Não é a amizade propriamente o
motor de transformação de um mundo, mas a consciência de que é preciso somar
forças. A palavra "força" aqui não vem por acaso. Se um dos
personagens do filme do Affonso quer sair da comunidade para ter a chance de
ter outra vida, o filme de Adirley fala do pertencimento. Os outros é que precisam
mudar. Adirley lança sua "bomba": ele não evita o confronto, a
necessidade do enfrentamento. Seus personagens guardam as marcas da exclusão em
seus corpos. Mas há uma diferença. Enquanto no filme de Affonso, os dois
meninos brincam exibindo as cicatrizes (marcas de tiros, facadas, etc.) em seus
corpos, concretizando essa violência através dos corpos, no filme de Adirley
isso é ainda mais radical. Seus personagens são mutilados, quase ciborgues,
diante de uma ação concreta da política num baile da periferia. Não são apenas
cicatrizes, são marcas profundas de mutilamento que passa a reconfigurar suas
vidas. BRANCO SAI PRETO FICA é o cruzamento entre BLADE RUNNNER e o cinema da
periferia.
Esses são alguns apontamentos, um
ponto de partida, para pensar alguns dos elementos dos fascinantes filmes que
competiram na Mostra Aurora no Festival de Tiradentes neste ano de 2014. Em
seguida, vou buscar me debruçar um pouco mais sobre alguns dos filmes.
Comentários