um bravo guerreiro
Na madrugada de hoje em Trancoso, veio a falecer, em decorrência de um súbito ataque cardíaco, Gustavo Dahl. Quis o destino que supostamente Dahl tenha começado a se sentir mal ao assistir a um filme. Dahl foi montador de A Grande Cidade e um dos principais críticos e articuladores do cinema novo, mas também foi realizador de primeira linha, especialmente com O Bravo Guerreiro, que considero um dos grandes filmes da história do cinema brasileiro, porque pode ser visto como um testamento profético de toda a vida posterior do realizador e de sua posição dentro das instituições do cinema brasileiro. Sim, porque Dahl acabou se tornando mais conhecido a partir de suas ações na política institucional do cinema brasileiro, alavancando a distribuidora da Embrafilme, na criada SUCOM (Superintendência de Comercialização), quando o cinema brasileiro atingiu nível recorde de 35% de participação no mercado interno. Depois de passagem pelo CONCINE, Dahl foi um dos principais articuladores para a criação da ANCINE, da qual se tornou o seu primeiro diretor-presidente. Sua importante participação política acabou deixando em segundo plano seu trabalho como realizador, e especialmente seus escritos, recheados de uma fina ironia e um nítido discurso crítico, com certa vocação para a polêmica. Recentemente, essa última veia retornou no restabelecimento da edição da Filme Cultura, em que Gustavo, vez ou outra, nos brindava com textos como o sobre Rubem Biáfora. Mesmo quando diretor-presidente da ANCINE, escrevia, ainda que raramente, alguns textos de impacto, como um artigo para a Revista Tela Viva em que dizia que “o Estado era uma concessão da televisão, e não a televisão era uma concessão do Estado”. Tive um contato tímido com o Gustavo durante minha passagem na ANCINE, quando ele estabeleceu um estilo discreto e por demais defensivo, diante dos difíceis anos de transição para o novo governo e da iminência do fim da agência, o que acabou não se concretizando. Gustavo tinha um certo humor malicioso que me agradava. Agradeço ao Gustavo por me manter na ANCINE, após a saída de minha diretora, mostrando habilidade ao me desviar do Fomento, que nunca quis minha presença, e me deixando aos cuidados do Carlos Guimarães, para cuidar dos relatórios estatísticos e da superintendência financeira. Recomendou-me certos passos que eu hesitei em tomar diante do processo de reestruturação da agência, hesitação que acabou por ser a primeira semente do processo de minha saída. Lembro que, em seu último dia como presidente da ANCINE, tive a oportunidade de ser recebido em seu gabinete, quando, entre outras coisas, sugeri a ele que escrevesse um livro contando suas experiências no cinema, que são riquíssimas. Ele, um pouco irritado, me retrucou dizendo que “ainda não era o tempo de ele contar as suas memórias”, como se isso representasse o início do fim. Hoje acho essa minha suposta gafe meio engraçada. Tempos depois, quando o encontrei no lançamento do número 50 da Revista Filme Cultura, logo após eu ter deixado a ANCINE, ele bateu no meu ombro e apenas me disse “você parece estar mais bem disposto”. Gostaria muito de ter feito uma entrevista com o Gustavo para a minha dissertação de mestrado, mas a minha mudança para Fortaleza dificultou meus planos. Depois da minha “gafe anterior”, fiquei um pouco receoso em enviar a ele algo que considero um documento bastante importante: seu discurso “de despedida” ao deixar a ANCINE, entregando a presidência da ANCINE a Manoel Rangel, em cerimônia na Firjan, em janeiro de 2007. Fiquei com medo de ser mal interpretado. Deveria tê-lo feito. Neste importante documento, além de toda a típica verve de Gustavo Dahl, é nítida sua consciência do que representava aquele momento: um ato simbólico que coroava a “passagem da guarda” para uma nova geração de políticos do audiovisual. De uma forma muito bonita, citando Godard, um autor caro à sua geração, como ele próprio enfatizou, Gustavo dizia que ele, que sempre buscou ser um “homem do agir”, agora “deixava o campo da ação para ingressar no campo da reflexão”, e desejava boa sorte aos “bravos guerreiros”. Belo discurso. Em homenagem à memória do Gustavo, coloco aqui a INÉDITA transcrição deste discurso. Agradeço à Mariana Coli pelo auxílio técnico na transcrição. Procuramos transcrever o discurso na íntegra, respeitando o estilo discursivo característico do Gustavo.
Discurso de Gustavo Dahl ao deixar a presidência da ANCINE, passando o cargo para Manoel Rangel – Rio de Janeiro, auditório da FIRJAN, 10/01/2007.
A última vez que eu estive aqui, quando iniciei o meu discurso, eu esqueci de cumprimentar as autoridades e iniciei meu discurso direto. Vou tentar não fazê-lo porque esta é uma ocasião especialmente oficiosa e eu comentava com o Ministro dos Esportes agora há pouco que nós brasileiros, ele dizia que nós temos essa grande vantagem da informalidade e eu dizia que eu acho que nós temos a vantagem, nós brasileiros temos a vantagem de, como sempre, trabalhar em duas frentes, lutar com as duas pernas. Nós conseguimos ser informais, mas conseguimos ser formais também.
Então começo saudando os donos da casa, o Ministro da Cultura Gilberto Gil e o presidente da FIRJAN. Saúdo também os ministros presentes, os deputados, os presidentes de agências reguladoras, os representantes do corpo diplomático, representantes do Ministério das Relações Exteriores, membros, dirigentes do Ministério da Cultura, em especial o Secretário do Audiovisual, Orlando Senna, os presidentes das entidades cinematográficas, dos sindicatos, das associações de classe, devo ter esquecido alguns, mas saúdo também, sobretudo, os meus colegas e as minhas colegas do cinema e do audiovisual brasileiro.
Quando eu fui apresentado como diretor-presidente da Ancine de 2001 a 2006, eu tive um repente de surpresa: estou dizendo, não, eu não fui diretor-presidente, eu fui aquele que teve a ideia. A história vem de antes e é principalmente com este título que eu me apresento aqui. De formulador e implantador da Agência Nacional do Cinema. É evidente, para mim, esta cerimônia tem uma carga simbólica muito grande. Ela evidentemente é uma passagem da guarda. É alguma coisa que quem acredita em evolução, em desenvolvimento, quem acredita em progresso, em avanço, sabe perfeitamente que um dos rituais mais valorizados e importantes da vida é esta passagem da guarda. Ai de quem não souber fazer a passagem da guarda. Eu, por exemplo, me considero, se me permitem uma referência pessoal, um exemplo típico dessa passagem de guarda. Eu tinha 20 anos de idade, quando Paulo Emílio Salles Gomes me convidou para escrever um artigo na coluna dele no prestigioso suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo. A minha geração, a geração que fez o cinema novo – o presidente da FIRJAN se referiu ao Luiz Carlos Barreto, Cacá Diegues, que está aqui – nós também sentimos isso, nós fomos uma repassagem da guarda. Da guarda de Paulo Emílio, da guarda de Alex Viany aqui no Rio de Janeiro, da guarda de Walter da Silveira na Bahia. Nós fomos tipicamente uma geração que chegou e encontrou seu espaço e que foi acolhida. Há outras passagens de guarda que são memoráveis e isto estou me referindo a esta primeira do ano de 1958. Já no ano de 68, ano em que se produziu Terra em transe e O Bravo guerreiro, se produziu também O bandido da luz vermelha e O Anjo nasceu de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane. E produziu também um fenômeno do tropicalismo do qual o cinema brasileiro participou intensamente.
Dez anos depois, na Embrafilme, na Superintendência de Comercialização, a famosa distribuidora da Embrafilme, que foi quando nós tivemos aqueles 35% a que se referiu o presidente aqui de presença do mercado, também houve uma repassagem de guarda. Houve uma repassagem de guarda para os então jovens Marco Aurélio Marcondes e Rodrigo Saturnino Braga. Devo dizer que eu tinha na época 38 anos de idade. Em 88, início dos 90, há a crise do modelo Embrafilme, mas logo em seguida nós vemos a retomada do cinema brasileiro com Carla Camurati, Fábio Barreto, é também uma passagem da guarda.
Em 98 nós vemos aparecer cinemas regionais, São Paulo, Rio Grande, nordeste, e vemos também aparecer a produção de diretores vindo da publicidade, a O2, a Conspiração, a Videofilmes. E se vê também, começa-se a criar o ambiente para realização do III Congresso Brasileiro de Cinema, que é um marco histórico, mas que começou, eu repito, já disse isso aqui da outra vez, começou com um seminário organizado por Nilson Rodrigues em Brasília exatamente nesta data.
Chegamos a 2007, no qual vimos isso que eu me referia que é a consolidação da Ancine. O processo de criação de um órgão publico é sempre mais trabalhoso do que parece no início. Mas, além da implantação da Ancine, e da Ancine, digamos assim, num certo sentido, estar pronta, ela coincide também com a aprovação da lei que reformula alguns incentivos fiscais, que permite a entrada da televisão, esta lei que foi aprovada agora e foi intensamente e competentemente trabalhada por Manoel Rangel. Eu estou dizendo que o que há sete anos atrás em Porto Alegre era definido como uma necessidade de repolitização do cinema brasileiro está dando seus frutos.
Eu quero dizer também da importância que eu acredito que tenha a Ancine e as agências de regulação de uma maneira geral. Acho que o mundo vive, depois de ter vivido a crise do modelo socialista, nós estamos vivendo a crise do modelo capitalista. Embora todos saibam, digamos assim, do meu comprometimento com a noção de mercado, comprometimento que vem de trinta anos atrás que foi quando comecei a trabalhar em distribuição, mas isso não impede também de constatar hoje como esta noção, a ilusão de que o mercado fosse resolver os problemas do mundo, ela hoje é questionada a cada momento. Alguns exemplos rápidos, porque acho que cai direto na questão da regulação, por exemplo, quando Henri Ford montou a linha de montagem, quando imaginou a linha de montagem, e fez o modelo “Ford-T” para vender para seus operários um carro barato, era um carro barato, mas que desperdiçava no mínimo a metade de seu espaço e fazia com que ele fosse movido a gasolina, já estava começando o processo de aquecimento mundial, que hoje é irreversível. A China e Índia estão trabalhando agora na criação de um modelo de automóvel de US$ 2 mil. Imagino o que será quando a China e a Índia começarem a rodar de automóvel gastando petróleo.
Há um outro exemplo dramático de imposição de mercado que são as cadeias de fast food e da indústria de alimentação de maneira geral. Alguns quarenta, cinquenta anos depois, ela produziu uma epidemia mundial de obesidade que realmente é uma das ameaças que pesa sobre nós. A própria balança comercial brasileira feita a partir do aumento das exportações, quando a gente pensa que se está desmatando a floresta amazônica para plantar soja, é preciso ver qual é o preço que o país está pagando exatamente por esse saldo comercial.
Há um exemplo mais dramático da distorção de mercado: é a invasão do Iraque que, embora tenha sido dito, em absoluto era a questão do petróleo que movia este movimento, mas nós vemos – imagina, o Iraque tem só 10% das reservas mundiais! – mas nós vemos já que neste momento há uma desnacionalização do petróleo no Iraque para permitir parcerias político-privadas – o cronista Mauro Santayana é que se refere a isso – parcerias público-privadas a qual, à parte o lucro iraquiano, servirá para pagar as empresas americanas que farão a reconstrução do Iraque. Tudo na mais perfeita ordem. Eu acredito que boa parte do choque de civilização que nós vivemos, de civilizações do mundo ocidental quanto no mundo árabe, está ligado a essa questão do petróleo e a essa questão do mercado, e de nossa parte a gente pode dizer, aliás no mundo inteiro, se o modelo socialista revelou as suas limitações, a gente sente agora as limitações do modelo capitalista na sua incapacidade de resolver a concentração de riquezas e a civilização feita através da imposição do consumo.
O cinema como sempre é um prenúncio, é um prenúncio das coisas que acontecem. A elitização das salas, o refluxo dos espectadores, a destruição do código, a destruição da linguagem pela linguagem da televisão, e não há aqui nada nostálgico, simplesmente dizer que a linguagem da televisão praticamente se dá através da filmagem exclusiva de diálogos; ela tem um impacto sobre a linguagem cinematográfica muito forte e a linguagem cinematográfica é um campo de operações, é um terreno de batalha. Quem conhece o audiovisual não tem nenhuma ilusão de que a guerra, a disputa pelo espectador, ela se dá, entre outras coisas, mas sobretudo, na disputa pela decifração de um código de linguagem. Nesse sentido, nós aqui no Brasil precisamos também formar espectadores que estejam afinados, sintonizados com a linguagem, com o código do cinema brasileiro. Não basta fazer os filmes como não basta escrever e editar os livros, é preciso o leitor, é preciso o espectador. Ainda nós no cinema novo sabíamos disso. Nós, além de fazer os filmes e produzi-los, nós exercíamos a crítica, dávamos entrevistas, como diz o Ivan Lessa que acaba de ser reeditado, se botar o ouvido no peito de cada diretor de cinema ouvirá uma entrevista. Bons tempos. E também o cineclubista, fomos todos cineclubistas. Ou seja, a interação com a sociedade se dava de uma maneira muito forte. Mas esta crise ela abre, ela como sempre tem uma perspectiva que é aberta pela revolução digital. Basta acompanhar os escândalos da internet, do Youtube, ou a notícia hoje do Steve Jobs, da Apple, lançando o iPhone, o telefone que é ao mesmo tempo iPod, telefone, iPod, televisão, pra perceber que estamos nitidamente perto de uma revolução do consumo. É evidente que, e nós temos também a situação do cinema nigeriano, o qual a partir de uma produção digital e de uma edição e de uma impressão digital fora do comércio, chegamos à possibilidade de um cinema nacional que na Nigéria movimenta anualmente US$ 1 bilhão. Esta é uma ruptura de paradigma e é nesta ruptura de paradigmas que eu acho que nós temos que avançar através do financiamento do consumo e da formação de público.
É evidente que isso nos leva à ação de Estado. Acho que o grande desafio do Estado e do Governo neste momento é instalar a meritocracia nos mecanismos de incentivos fiscais. Eu não vou entrar nos detalhes, o ponto de vista é polêmico, mas é para ser polêmico mesmo. Num momento em que também o exército americano contrata antropólogos e sociólogos para que expliquem para as tropas e para os generais, para que decifrem para as tropas e para os generais um sentido da civilização árabe-iraquiana, compreender o país em que nós estamos é alguma coisa fundamental. Não é a ideia de propor soluções, como se dizia antigamente, de um cinema moderno/antigo, que se queria crítico. É a noção de contribuir para o processo. Me lembro também, para citar um exemplo, durante a II Guerra Mundial, o Departamento de Estado contratou a antropóloga Ruth Benedict para examinar a cultura japonesa, de onde saiu um clássico, O crisântemo e a espada. Nós no Brasil temos alguns desafios. Nós estamos aí com a crise de segurança. O Brasil não está entendendo o porquê. Quem diria que depois de cem anos depois da abolição da escravatura ia ter-se essa situação. É evidente que todo mundo sabe. Não teve reforma agrária, não teve educação, há cem anos atrás, agora estamos aí com aquecimento global. Será que é reversível? É bom começar a pensar nisso. Acredito que o cinema brasileiro e o audiovisual brasileiro tenham sua contribuição a dar nesta reflexão, neste deciframento do país. O país tem também um problema de estagnação, de estagnação econômica no mínimo de 25 anos, somos a 12ª economia do mundo, somos lá pelo “cinqüentaeseisésimo”, “sessentésimo” em índice de desenvolvimento humano, e temos 1% do comércio mundial. Este é o mistério. É preciso decifrar. É preciso que a produção simbólica ajude a compreender o processo.
Devo, encaminhando, como penúltimo item aqui do meu discurso, eu quero falar um pouco sobre a construção da Ancine e dizer que é um discurso que evidente que a guerra é a continuação da política, para citar Clausewitz, mas que uma vez vencida a guerra há que ocupar o território e há que administrá-lo, há que geri-lo. Toda gestão institucional é um ato político. A Ancine, sobretudo ao longo desses anos, e esse foi meu esforço, se constituiu como ferramenta. E a ferramenta é importantíssima. A história do homem é a história das ferramentas que ele inventou. É a história da pedra que ele pegou para quebrar a primeira semente, do braço que ele estendeu para pegar o fruto que se perdia no rio. E olhe que não estou falando de instrumentos mais sofisticados, como o machado de pedra, tudo isso, estou me referindo praticamente ao nível mamífero. Imaginem que a cultura foi inventada pelos animais. Nós, atualmente, e é uma ferramenta importante na construção do mundo atual. Voltando à leitura dos jornais, acho que era ontem que o Bill Gates apresentava a casa informatizada, a futura casa conectada, com as paredes todas transformadas numa tela, e, além disso, dizia que o mundo inteiro vai ser conectado, que o ponto de ônibus vai ser conectado. É evidente que a Ancine tem a vocação de preparar este futuro.
Eu devo dizer também, aqui voltando ao nível pessoal, que quando a prática vem de cinqüenta anos atrás, eu escrevia, eu trabalhava na Cinemateca, eu já tinha angústia de não querer ser um intelectual, e querer ser um homem de ação. Um “homem de agir” – um “homem de ação” parece muito. De transformar as ideias em ação. E o final do meu filme O bravo guerreiro, no qual um deputado põe um revólver na boca, é a vontade de parar de falar e agir. Eram os gloriosos tempos que precederam à luta armada. Devo dizer que as empreitadas por onde andei, como o cinema novo, a Embrafilme, o Conselho Nacional do Cinema, o exílio auto-imposto depois da extinção do Concine e da Embrafilme e da distribuidora da Embrafilme, órgãos aos quais eu tinha dedicado, eu e alguns amigos que trabalharam comigo, tinha dedicado um grande esforço, e também, mas depois, essa necessidade de voltar à ação, ela se impõe, ela me traz de volta à realização do III Congresso, me traz de volta à relatoria do Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica, e me traz de volta, sobretudo, à implementação da Ancine. Devo dizer que nesta biografia rápida há dois órgãos que foram descontinuados: o Conselho Nacional de Cinema, que era um órgão regulador à época, estou falando de 20 anos atrás, e a distribuidora da Embrafilme, criando um vácuo que até hoje não foi preenchido dentro do cinema brasileiro. A questão da continuidade institucional se coloca para o país, mas se coloca também, e muito, para as instituições cinematográficas, e por que não dizer, para o próprio Ministério da Cultura.
Eu quero dizer que acredito que a gente sofra uma evolução ao longo da vida, que a consciência ao longo do processo sofre uma evolução, que a gente começa tendo a consciência social, depois tem uma consciência política, depois tem uma consciência institucional e por fim, simplifique tudo, e tenha uma consciência operacional. Ou seja, se todo mundo, se as coisas foram feitas direito, este negócio chamado o mundo termina entrando nos eixos. É uma mistura de humildade e megalomania, ou seja, basta trabalhar bem. Ou, como dizia o meu mestre, imaginar certo. Eu quero dizer também que é possível, como dizia um autor caro à minha geração, Jean-Luc Godard, no seu segundo filme, que o tempo da ação tenha passado e seja chegado o tempo da reflexão. Quero me referir também às pessoas, os amigos Manoel Rangel e Leopoldo Nunes, que eu tive ocasião de conhecer antes, até antes de eles entrarem para a estrutura de gestão institucional, mérito que não pode ser tirado do secretário Orlando Senna, e dizer que acredito que tanto um quanto o outro são capazes de transformar ideias em ações e ideias em articulações. Quando, há uns seis anos atrás, exatamente quando terminava o discurso inaugural do III Congresso, eu terminei dizendo, e com um sorriso nos lábios, podemos dizer que a luta continua. Eu quero terminar este discurso dizendo aos novos e velhos companheiros que nós estamos apenas começando, e dar boas vindas aos bravos guerreiros.
Discurso de Gustavo Dahl ao deixar a presidência da ANCINE, passando o cargo para Manoel Rangel – Rio de Janeiro, auditório da FIRJAN, 10/01/2007.
A última vez que eu estive aqui, quando iniciei o meu discurso, eu esqueci de cumprimentar as autoridades e iniciei meu discurso direto. Vou tentar não fazê-lo porque esta é uma ocasião especialmente oficiosa e eu comentava com o Ministro dos Esportes agora há pouco que nós brasileiros, ele dizia que nós temos essa grande vantagem da informalidade e eu dizia que eu acho que nós temos a vantagem, nós brasileiros temos a vantagem de, como sempre, trabalhar em duas frentes, lutar com as duas pernas. Nós conseguimos ser informais, mas conseguimos ser formais também.
Então começo saudando os donos da casa, o Ministro da Cultura Gilberto Gil e o presidente da FIRJAN. Saúdo também os ministros presentes, os deputados, os presidentes de agências reguladoras, os representantes do corpo diplomático, representantes do Ministério das Relações Exteriores, membros, dirigentes do Ministério da Cultura, em especial o Secretário do Audiovisual, Orlando Senna, os presidentes das entidades cinematográficas, dos sindicatos, das associações de classe, devo ter esquecido alguns, mas saúdo também, sobretudo, os meus colegas e as minhas colegas do cinema e do audiovisual brasileiro.
Quando eu fui apresentado como diretor-presidente da Ancine de 2001 a 2006, eu tive um repente de surpresa: estou dizendo, não, eu não fui diretor-presidente, eu fui aquele que teve a ideia. A história vem de antes e é principalmente com este título que eu me apresento aqui. De formulador e implantador da Agência Nacional do Cinema. É evidente, para mim, esta cerimônia tem uma carga simbólica muito grande. Ela evidentemente é uma passagem da guarda. É alguma coisa que quem acredita em evolução, em desenvolvimento, quem acredita em progresso, em avanço, sabe perfeitamente que um dos rituais mais valorizados e importantes da vida é esta passagem da guarda. Ai de quem não souber fazer a passagem da guarda. Eu, por exemplo, me considero, se me permitem uma referência pessoal, um exemplo típico dessa passagem de guarda. Eu tinha 20 anos de idade, quando Paulo Emílio Salles Gomes me convidou para escrever um artigo na coluna dele no prestigioso suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo. A minha geração, a geração que fez o cinema novo – o presidente da FIRJAN se referiu ao Luiz Carlos Barreto, Cacá Diegues, que está aqui – nós também sentimos isso, nós fomos uma repassagem da guarda. Da guarda de Paulo Emílio, da guarda de Alex Viany aqui no Rio de Janeiro, da guarda de Walter da Silveira na Bahia. Nós fomos tipicamente uma geração que chegou e encontrou seu espaço e que foi acolhida. Há outras passagens de guarda que são memoráveis e isto estou me referindo a esta primeira do ano de 1958. Já no ano de 68, ano em que se produziu Terra em transe e O Bravo guerreiro, se produziu também O bandido da luz vermelha e O Anjo nasceu de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane. E produziu também um fenômeno do tropicalismo do qual o cinema brasileiro participou intensamente.
Dez anos depois, na Embrafilme, na Superintendência de Comercialização, a famosa distribuidora da Embrafilme, que foi quando nós tivemos aqueles 35% a que se referiu o presidente aqui de presença do mercado, também houve uma repassagem de guarda. Houve uma repassagem de guarda para os então jovens Marco Aurélio Marcondes e Rodrigo Saturnino Braga. Devo dizer que eu tinha na época 38 anos de idade. Em 88, início dos 90, há a crise do modelo Embrafilme, mas logo em seguida nós vemos a retomada do cinema brasileiro com Carla Camurati, Fábio Barreto, é também uma passagem da guarda.
Em 98 nós vemos aparecer cinemas regionais, São Paulo, Rio Grande, nordeste, e vemos também aparecer a produção de diretores vindo da publicidade, a O2, a Conspiração, a Videofilmes. E se vê também, começa-se a criar o ambiente para realização do III Congresso Brasileiro de Cinema, que é um marco histórico, mas que começou, eu repito, já disse isso aqui da outra vez, começou com um seminário organizado por Nilson Rodrigues em Brasília exatamente nesta data.
Chegamos a 2007, no qual vimos isso que eu me referia que é a consolidação da Ancine. O processo de criação de um órgão publico é sempre mais trabalhoso do que parece no início. Mas, além da implantação da Ancine, e da Ancine, digamos assim, num certo sentido, estar pronta, ela coincide também com a aprovação da lei que reformula alguns incentivos fiscais, que permite a entrada da televisão, esta lei que foi aprovada agora e foi intensamente e competentemente trabalhada por Manoel Rangel. Eu estou dizendo que o que há sete anos atrás em Porto Alegre era definido como uma necessidade de repolitização do cinema brasileiro está dando seus frutos.
Eu quero dizer também da importância que eu acredito que tenha a Ancine e as agências de regulação de uma maneira geral. Acho que o mundo vive, depois de ter vivido a crise do modelo socialista, nós estamos vivendo a crise do modelo capitalista. Embora todos saibam, digamos assim, do meu comprometimento com a noção de mercado, comprometimento que vem de trinta anos atrás que foi quando comecei a trabalhar em distribuição, mas isso não impede também de constatar hoje como esta noção, a ilusão de que o mercado fosse resolver os problemas do mundo, ela hoje é questionada a cada momento. Alguns exemplos rápidos, porque acho que cai direto na questão da regulação, por exemplo, quando Henri Ford montou a linha de montagem, quando imaginou a linha de montagem, e fez o modelo “Ford-T” para vender para seus operários um carro barato, era um carro barato, mas que desperdiçava no mínimo a metade de seu espaço e fazia com que ele fosse movido a gasolina, já estava começando o processo de aquecimento mundial, que hoje é irreversível. A China e Índia estão trabalhando agora na criação de um modelo de automóvel de US$ 2 mil. Imagino o que será quando a China e a Índia começarem a rodar de automóvel gastando petróleo.
Há um outro exemplo dramático de imposição de mercado que são as cadeias de fast food e da indústria de alimentação de maneira geral. Alguns quarenta, cinquenta anos depois, ela produziu uma epidemia mundial de obesidade que realmente é uma das ameaças que pesa sobre nós. A própria balança comercial brasileira feita a partir do aumento das exportações, quando a gente pensa que se está desmatando a floresta amazônica para plantar soja, é preciso ver qual é o preço que o país está pagando exatamente por esse saldo comercial.
Há um exemplo mais dramático da distorção de mercado: é a invasão do Iraque que, embora tenha sido dito, em absoluto era a questão do petróleo que movia este movimento, mas nós vemos – imagina, o Iraque tem só 10% das reservas mundiais! – mas nós vemos já que neste momento há uma desnacionalização do petróleo no Iraque para permitir parcerias político-privadas – o cronista Mauro Santayana é que se refere a isso – parcerias público-privadas a qual, à parte o lucro iraquiano, servirá para pagar as empresas americanas que farão a reconstrução do Iraque. Tudo na mais perfeita ordem. Eu acredito que boa parte do choque de civilização que nós vivemos, de civilizações do mundo ocidental quanto no mundo árabe, está ligado a essa questão do petróleo e a essa questão do mercado, e de nossa parte a gente pode dizer, aliás no mundo inteiro, se o modelo socialista revelou as suas limitações, a gente sente agora as limitações do modelo capitalista na sua incapacidade de resolver a concentração de riquezas e a civilização feita através da imposição do consumo.
O cinema como sempre é um prenúncio, é um prenúncio das coisas que acontecem. A elitização das salas, o refluxo dos espectadores, a destruição do código, a destruição da linguagem pela linguagem da televisão, e não há aqui nada nostálgico, simplesmente dizer que a linguagem da televisão praticamente se dá através da filmagem exclusiva de diálogos; ela tem um impacto sobre a linguagem cinematográfica muito forte e a linguagem cinematográfica é um campo de operações, é um terreno de batalha. Quem conhece o audiovisual não tem nenhuma ilusão de que a guerra, a disputa pelo espectador, ela se dá, entre outras coisas, mas sobretudo, na disputa pela decifração de um código de linguagem. Nesse sentido, nós aqui no Brasil precisamos também formar espectadores que estejam afinados, sintonizados com a linguagem, com o código do cinema brasileiro. Não basta fazer os filmes como não basta escrever e editar os livros, é preciso o leitor, é preciso o espectador. Ainda nós no cinema novo sabíamos disso. Nós, além de fazer os filmes e produzi-los, nós exercíamos a crítica, dávamos entrevistas, como diz o Ivan Lessa que acaba de ser reeditado, se botar o ouvido no peito de cada diretor de cinema ouvirá uma entrevista. Bons tempos. E também o cineclubista, fomos todos cineclubistas. Ou seja, a interação com a sociedade se dava de uma maneira muito forte. Mas esta crise ela abre, ela como sempre tem uma perspectiva que é aberta pela revolução digital. Basta acompanhar os escândalos da internet, do Youtube, ou a notícia hoje do Steve Jobs, da Apple, lançando o iPhone, o telefone que é ao mesmo tempo iPod, telefone, iPod, televisão, pra perceber que estamos nitidamente perto de uma revolução do consumo. É evidente que, e nós temos também a situação do cinema nigeriano, o qual a partir de uma produção digital e de uma edição e de uma impressão digital fora do comércio, chegamos à possibilidade de um cinema nacional que na Nigéria movimenta anualmente US$ 1 bilhão. Esta é uma ruptura de paradigma e é nesta ruptura de paradigmas que eu acho que nós temos que avançar através do financiamento do consumo e da formação de público.
É evidente que isso nos leva à ação de Estado. Acho que o grande desafio do Estado e do Governo neste momento é instalar a meritocracia nos mecanismos de incentivos fiscais. Eu não vou entrar nos detalhes, o ponto de vista é polêmico, mas é para ser polêmico mesmo. Num momento em que também o exército americano contrata antropólogos e sociólogos para que expliquem para as tropas e para os generais, para que decifrem para as tropas e para os generais um sentido da civilização árabe-iraquiana, compreender o país em que nós estamos é alguma coisa fundamental. Não é a ideia de propor soluções, como se dizia antigamente, de um cinema moderno/antigo, que se queria crítico. É a noção de contribuir para o processo. Me lembro também, para citar um exemplo, durante a II Guerra Mundial, o Departamento de Estado contratou a antropóloga Ruth Benedict para examinar a cultura japonesa, de onde saiu um clássico, O crisântemo e a espada. Nós no Brasil temos alguns desafios. Nós estamos aí com a crise de segurança. O Brasil não está entendendo o porquê. Quem diria que depois de cem anos depois da abolição da escravatura ia ter-se essa situação. É evidente que todo mundo sabe. Não teve reforma agrária, não teve educação, há cem anos atrás, agora estamos aí com aquecimento global. Será que é reversível? É bom começar a pensar nisso. Acredito que o cinema brasileiro e o audiovisual brasileiro tenham sua contribuição a dar nesta reflexão, neste deciframento do país. O país tem também um problema de estagnação, de estagnação econômica no mínimo de 25 anos, somos a 12ª economia do mundo, somos lá pelo “cinqüentaeseisésimo”, “sessentésimo” em índice de desenvolvimento humano, e temos 1% do comércio mundial. Este é o mistério. É preciso decifrar. É preciso que a produção simbólica ajude a compreender o processo.
Devo, encaminhando, como penúltimo item aqui do meu discurso, eu quero falar um pouco sobre a construção da Ancine e dizer que é um discurso que evidente que a guerra é a continuação da política, para citar Clausewitz, mas que uma vez vencida a guerra há que ocupar o território e há que administrá-lo, há que geri-lo. Toda gestão institucional é um ato político. A Ancine, sobretudo ao longo desses anos, e esse foi meu esforço, se constituiu como ferramenta. E a ferramenta é importantíssima. A história do homem é a história das ferramentas que ele inventou. É a história da pedra que ele pegou para quebrar a primeira semente, do braço que ele estendeu para pegar o fruto que se perdia no rio. E olhe que não estou falando de instrumentos mais sofisticados, como o machado de pedra, tudo isso, estou me referindo praticamente ao nível mamífero. Imaginem que a cultura foi inventada pelos animais. Nós, atualmente, e é uma ferramenta importante na construção do mundo atual. Voltando à leitura dos jornais, acho que era ontem que o Bill Gates apresentava a casa informatizada, a futura casa conectada, com as paredes todas transformadas numa tela, e, além disso, dizia que o mundo inteiro vai ser conectado, que o ponto de ônibus vai ser conectado. É evidente que a Ancine tem a vocação de preparar este futuro.
Eu devo dizer também, aqui voltando ao nível pessoal, que quando a prática vem de cinqüenta anos atrás, eu escrevia, eu trabalhava na Cinemateca, eu já tinha angústia de não querer ser um intelectual, e querer ser um homem de ação. Um “homem de agir” – um “homem de ação” parece muito. De transformar as ideias em ação. E o final do meu filme O bravo guerreiro, no qual um deputado põe um revólver na boca, é a vontade de parar de falar e agir. Eram os gloriosos tempos que precederam à luta armada. Devo dizer que as empreitadas por onde andei, como o cinema novo, a Embrafilme, o Conselho Nacional do Cinema, o exílio auto-imposto depois da extinção do Concine e da Embrafilme e da distribuidora da Embrafilme, órgãos aos quais eu tinha dedicado, eu e alguns amigos que trabalharam comigo, tinha dedicado um grande esforço, e também, mas depois, essa necessidade de voltar à ação, ela se impõe, ela me traz de volta à realização do III Congresso, me traz de volta à relatoria do Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica, e me traz de volta, sobretudo, à implementação da Ancine. Devo dizer que nesta biografia rápida há dois órgãos que foram descontinuados: o Conselho Nacional de Cinema, que era um órgão regulador à época, estou falando de 20 anos atrás, e a distribuidora da Embrafilme, criando um vácuo que até hoje não foi preenchido dentro do cinema brasileiro. A questão da continuidade institucional se coloca para o país, mas se coloca também, e muito, para as instituições cinematográficas, e por que não dizer, para o próprio Ministério da Cultura.
Eu quero dizer que acredito que a gente sofra uma evolução ao longo da vida, que a consciência ao longo do processo sofre uma evolução, que a gente começa tendo a consciência social, depois tem uma consciência política, depois tem uma consciência institucional e por fim, simplifique tudo, e tenha uma consciência operacional. Ou seja, se todo mundo, se as coisas foram feitas direito, este negócio chamado o mundo termina entrando nos eixos. É uma mistura de humildade e megalomania, ou seja, basta trabalhar bem. Ou, como dizia o meu mestre, imaginar certo. Eu quero dizer também que é possível, como dizia um autor caro à minha geração, Jean-Luc Godard, no seu segundo filme, que o tempo da ação tenha passado e seja chegado o tempo da reflexão. Quero me referir também às pessoas, os amigos Manoel Rangel e Leopoldo Nunes, que eu tive ocasião de conhecer antes, até antes de eles entrarem para a estrutura de gestão institucional, mérito que não pode ser tirado do secretário Orlando Senna, e dizer que acredito que tanto um quanto o outro são capazes de transformar ideias em ações e ideias em articulações. Quando, há uns seis anos atrás, exatamente quando terminava o discurso inaugural do III Congresso, eu terminei dizendo, e com um sorriso nos lábios, podemos dizer que a luta continua. Eu quero terminar este discurso dizendo aos novos e velhos companheiros que nós estamos apenas começando, e dar boas vindas aos bravos guerreiros.
Comentários
Saravá!
Axé!
MAM
Abração,
Vinícius.
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