Copie Conforme
Cópia Fiel
de Abbas Kiarostami
Cópia Fiel é um filme sutil, de diversas camadas, que provavelmente precisará de anos para ser de fato avaliado. O que dizer sobre Cópia Fiel? O que mais gostaria de dizer é que ele é um remake de Viagem à Itália, ou ainda, que a posição de Cópia Fiel na filmografia de Kiarostami possui muitos diálogos com a posição de Viagem à Itália na de Rossellini. Depois de três filmes bastante radicais, em que Kiarostami tensiona os limites entre a representação e o documental, com planos muito longos, fortemente calcados numa estrutura formal, experimentando com o digital, como em Dez, Cinco e Shirin, agora Kiarostami retorna ao “cinema propriamente dito”, ao enredo ficcional. E mais: trata-se de sua primeira produção internacional, a primeira filmada fora do Irã, com o star system do cinema de arte (Juliette Binoche). O que essas mudanças trazem para a encenação do filme? Poderíamos dizer que, em contraste com a radicalidade de seus três filmes anteriores, Cópia Fiel é mais convencional?
É difícil tentar precisar o que representa esse passo de Kiarostami, pois, num certo sentido, Cópia Fiel pode se parecer com Antes do Pôr do Sol, o filme do Linklater, em que um antigo casal se reencontra após o lançamento do livro de um deles, e passeiam ombro a ombro em Paris, como se fosse uma radionovela temperada com planos cartão-postal de Paris. “Pode se parecer” é uma expressão boa, pois Cópia Fiel é um filme sobre as falsas aparências, até porque nada se afastaria mais de Cópia Fiel do que o tão próximo filme de Linklater. É por isso que retomo a comparação com Rossellini: Viagem à Itália, no início dos anos cinquenta, poderia parecer um filme-óvni, pois as opções de Rossellini (como a escolha dos atores, mas, claro, não só isso...) muito fugiam do que se esperava de um cineasta egresso do neorealismo italiano. Mas nada era conservador, pois no filme tudo o que se mostrava na verdade escondia, e todo o filme é uma construção aguda da crise de um casal, que se descobre na falta, e o tom cristalino de Viagem à Itália revela um “desentendimento” entre a geografia física do interior italiano e a geografia íntima desse casal.
O próprio título já nos apresenta as torções entre documentário e ficção, ou entre representação e real, de uma outra forma, mais estranha que costumamos a ver: Cópia Fiel. Uma palestra, campo-contracampo. Mas há algo estranho que não está lá, que sempre nos falta, apesar do estilo cristalino de Kiarostami (num exemplo mais básico: o olhar do filho de Binoche que desvela as atitudes da mãe). Cópia Fiel é sobre o quê, se não essencialmente sobre um jogo de ser, sobre os mil jogos de espelho, em que narrativa e representação se confundem com a própria essência de ser dos personagens? Enquanto somos, brincamos de ser, jogamos com nossas próprias representações de nós mesmos.
Cópia Fiel, é claro, também prossegue com alguns modelos-fetiche de Kiarostami, inserindo novas camadas nesses diálogos. Um deles é entre o interior e o exterior. Há os lugares fechados, os diálogos nos carros, os becos, mas por outro lado Kiarostami observa a Itália e a Toscana, caminha pelas ruas e respira desse clima como poucos filmes do cinema recente (lembro talvez A Religiosa Portuguesa). Cópia....fiel: os jogos de espelho confundem o espectador que espera um filme transparente, um repouso confortável. Jogos de temporalidade, jogos entre a relação entre os dois personagens (quando começaram a ser um casal?: ora, começaram a ser um casal após a primeira meia hora de filme, após a cena do café...), jogos entre a beleza da Toscana (o clichê do amor como mercadoria para turista nos casamentos bregas ou de fato ainda assim pode-se encontrar o verdadeiro amor?), ou ainda, jogos entre as convenções do “cinema de arte”. Existe uma ironia fina no filme que nos perturba, mas que não impede que Kiarostami construa, ainda assim, um cinema em continuidade estilística com diversas de suas preocupações. Em suma, se os primeiros filmes de Kiarostami foram muito identificados com o neorealismo italiano, é possível dizer que Cópia Fiel é um remake de Viagem à Itália, de Rossellini.
Na verdade, não faz mais sentido falar em “jogos de espelho” ou “jogos de quebra-cabeça” em Cópia Fiel. Melhor dizendo, Cópia Fiel é um filme sobre o “desentendimento”. Desentendimento entre os membros de um casal, que ecoa para um desentendimento entre o filme e o espectador.
de Abbas Kiarostami
Cópia Fiel é um filme sutil, de diversas camadas, que provavelmente precisará de anos para ser de fato avaliado. O que dizer sobre Cópia Fiel? O que mais gostaria de dizer é que ele é um remake de Viagem à Itália, ou ainda, que a posição de Cópia Fiel na filmografia de Kiarostami possui muitos diálogos com a posição de Viagem à Itália na de Rossellini. Depois de três filmes bastante radicais, em que Kiarostami tensiona os limites entre a representação e o documental, com planos muito longos, fortemente calcados numa estrutura formal, experimentando com o digital, como em Dez, Cinco e Shirin, agora Kiarostami retorna ao “cinema propriamente dito”, ao enredo ficcional. E mais: trata-se de sua primeira produção internacional, a primeira filmada fora do Irã, com o star system do cinema de arte (Juliette Binoche). O que essas mudanças trazem para a encenação do filme? Poderíamos dizer que, em contraste com a radicalidade de seus três filmes anteriores, Cópia Fiel é mais convencional?
É difícil tentar precisar o que representa esse passo de Kiarostami, pois, num certo sentido, Cópia Fiel pode se parecer com Antes do Pôr do Sol, o filme do Linklater, em que um antigo casal se reencontra após o lançamento do livro de um deles, e passeiam ombro a ombro em Paris, como se fosse uma radionovela temperada com planos cartão-postal de Paris. “Pode se parecer” é uma expressão boa, pois Cópia Fiel é um filme sobre as falsas aparências, até porque nada se afastaria mais de Cópia Fiel do que o tão próximo filme de Linklater. É por isso que retomo a comparação com Rossellini: Viagem à Itália, no início dos anos cinquenta, poderia parecer um filme-óvni, pois as opções de Rossellini (como a escolha dos atores, mas, claro, não só isso...) muito fugiam do que se esperava de um cineasta egresso do neorealismo italiano. Mas nada era conservador, pois no filme tudo o que se mostrava na verdade escondia, e todo o filme é uma construção aguda da crise de um casal, que se descobre na falta, e o tom cristalino de Viagem à Itália revela um “desentendimento” entre a geografia física do interior italiano e a geografia íntima desse casal.
O próprio título já nos apresenta as torções entre documentário e ficção, ou entre representação e real, de uma outra forma, mais estranha que costumamos a ver: Cópia Fiel. Uma palestra, campo-contracampo. Mas há algo estranho que não está lá, que sempre nos falta, apesar do estilo cristalino de Kiarostami (num exemplo mais básico: o olhar do filho de Binoche que desvela as atitudes da mãe). Cópia Fiel é sobre o quê, se não essencialmente sobre um jogo de ser, sobre os mil jogos de espelho, em que narrativa e representação se confundem com a própria essência de ser dos personagens? Enquanto somos, brincamos de ser, jogamos com nossas próprias representações de nós mesmos.
Cópia Fiel, é claro, também prossegue com alguns modelos-fetiche de Kiarostami, inserindo novas camadas nesses diálogos. Um deles é entre o interior e o exterior. Há os lugares fechados, os diálogos nos carros, os becos, mas por outro lado Kiarostami observa a Itália e a Toscana, caminha pelas ruas e respira desse clima como poucos filmes do cinema recente (lembro talvez A Religiosa Portuguesa). Cópia....fiel: os jogos de espelho confundem o espectador que espera um filme transparente, um repouso confortável. Jogos de temporalidade, jogos entre a relação entre os dois personagens (quando começaram a ser um casal?: ora, começaram a ser um casal após a primeira meia hora de filme, após a cena do café...), jogos entre a beleza da Toscana (o clichê do amor como mercadoria para turista nos casamentos bregas ou de fato ainda assim pode-se encontrar o verdadeiro amor?), ou ainda, jogos entre as convenções do “cinema de arte”. Existe uma ironia fina no filme que nos perturba, mas que não impede que Kiarostami construa, ainda assim, um cinema em continuidade estilística com diversas de suas preocupações. Em suma, se os primeiros filmes de Kiarostami foram muito identificados com o neorealismo italiano, é possível dizer que Cópia Fiel é um remake de Viagem à Itália, de Rossellini.
Na verdade, não faz mais sentido falar em “jogos de espelho” ou “jogos de quebra-cabeça” em Cópia Fiel. Melhor dizendo, Cópia Fiel é um filme sobre o “desentendimento”. Desentendimento entre os membros de um casal, que ecoa para um desentendimento entre o filme e o espectador.
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