Kiyoshi Kurosawa

Bom, como está começando uma mostra no CCBB/RJ sobre o ainda pouco conhecido cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa, achei que essa era uma oportunidade de postar aqui um texto escrito há pouco mais de um ano sobre vários filmes do cineasta. Este texto foi publicado na Revista Etcetera, mas como ela está fora do ar, tomei a liberdade de republicá-lo aqui...


Kiyoshi Kurosawa

1 - Introdução

Um dos aspectos mais conhecidos do cinema contemporâneo japonês é o seu diálogo com o cinema de gênero, especialmente no gênero terror ou suspense. Alguns filmes chegaram até mesmo a serem refilmados por Hollywood, como é o caso de Ringu, de Hideo Nakata. Um desses diretores é Kiyoshi Kurosawa, considerado atualmente um dos principais diretores do cinema japonês contemporâneo. Mas a associação de Kurosawa com o cinema de gênero acaba por confundir ao invés de esclarecer sobre a natureza do cinema de Kurosawa. Apesar de ele ser mais conhecido por seus filmes atípicos de terror, por sua inspiração metafísica, Kurosawa não dirigiu apenas filmes do gênero, como License to Live (um “filme de família”) e Barren Illusions revelam. Mesmo seus filmes mais típicos não trabalham propriamente os elementos do cinema de terror. Em Pulse, por exemplo, os “fantasmas” não provocam nenhuma reação física nos vivos, a não ser despertar sua percepção para algo tão terrível que eles não conseguem mais suportar a própria existência.

Mas a carreira de Kiyoshi Kurosawa (nenhum parentesco com o Akira, mestre japonês) vem de bem antes. Começou a fazer filmes nos anos oitenta, filmes de baixo orçamento lançados diretamente no mercado de homevideo, em geral ligados ao gênero Yakuza. No entanto, mesmo dentro dos exíguos limites desse tipo de encomenda, Kurosawa começou a despertar a atenção dos cinéfilos e críticos japoneses em 1985 com The Excitement of the Do-Re-Mi-Fa Girl (título em inglês). No entanto, seu primeiro grande sucesso foi o thriller de suspense Cure (1997). Logo a seguir, conseguiu uma proeza: foi selecionado, no mesmo ano, para os festivais de Berlim (License to Live), Cannes (Charisma) e Veneza (Barren Illusions), transformando-o num dos principais nomes do cinema japonês.

Pulse, também exibido em Cannes, e com um diálogo direto com Cure, chegou a ser comprado pela Miramax para um remake, que seria dirigido por Wes Craven, mas depois o projeto foi abandonado. Com um ritmo menos intenso do que no final da década de noventa, Kurosawa continua dirigindo seus trabalhos no Japão. O Festival de Cannes deste ano apresenta, na Quinzena dos Realizadores, seu novo trabalho: Tokyo Sonta.

Mesmo com toda a repercussão nos principais festivais de cinema do mundo e inclusive com a possibilidade de retorno comercial que vários dos filmes apresentam, até o momento nenhum dos filmes de Kiyoshi Kurosawa foi lançado comercialmente no Brasil. Alguns deles puderam ser vistos apenas em esparsas mostras de cinema, especialmente no Rio e em São Paulo. Recentemente um de seus filmes (Sakebi) foi lançado em homevideo sem alarde, com o estranho título de Vítima de uma Alucinação.

Essa é portanto uma oportunidade de apontar para um mestre do cinema contemporâneo praticamente desconhecido do público cinéfilo brasileiro.


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2 – Aspectos Gerais

Como dissemos, a associação do cinema de Kiyoshi Kurosawa com o gênero do terror, feita a partir da repercussão de seus maiores sucessos – Cure e Pulse – traz mais equívocos do que esclarece sobre o espírito dos filmes do diretor. Isto porque, no fundo, seus filmes têm uma inspiração realista: refletir sobre as angústias existenciais de pessoas que vagueiam num Japão contemporâneo, sua inadaptação a um cenário de contínua solidão.

Mais que o cinema de terror, uma outra referência é a de um “realismo mágico”: a interação de elementos externos que fazem com que os “vivos” reavaliem sua própria existência. São os “fantasmas” de Pulse e Sakebi e mesmo a “água viva” de Bright Future. Os elementos da natureza também são utilizados de forma a provocar uma reflexão sobre o distanciamento dos seres humanos de sua essência. Nesse ponto, a água viva de Bright Future possui uma relação com a árvore de Carisma. No entanto, esses elementos típicos de um “cinema fantástico” não provocam um ritmo ágil, um “cinema de aventuras”, mas quase o seu oposto: um cinema baseado nas inações, com tempos contemplativos, planos gerais, planos longos com movimentos de câmera sutilmente arquitetados. Não há improviso no cinema de Kurosawa: tudo transmite uma sensação de longo pesar, um desespero mudo. É como se o mundo estivesse caindo a nossos pés e acompanhássemos seu desmoronamento com imensa sobriedade.

Esse “realismo” do cinema de Kurosawa vem acompanhado de uma atmosfera sombria, asfixiante, de uma transformação abrupta, geralmente pelo acaso ou por motivos não propriamente identificados. Em License to Live, um rapaz desperta após dez anos de coma. Em Pulse, subitamente percebe-se que as pessoas começam a ser invadidas por um sentimento obscuro, quando vêem a “sala escura”. Não há a tentativa de fuga do elemento mágico, e sua essência não é necessariamente ligada à natureza do mal: ao contrário, muitas vezes vem associado com um estranho sentimento de libertação dessa constante e terrível necessidade de viver. Por isso, a morte e a juventude acabam sendo os dois principais motes do cinema de Kurosawa, e não é à toa que ambos caminhem lado a lado. O que parece estar em jogo é a perspectiva do universo dos jovens poder refletir as transformações progressivas da sociedade japonesa trazendo possibilidades mais humanas para si mesmos.

Em decorrência disso, em algumas situações os personagens se perguntam se o drama que estão vivendo é real ou não. É o ambíguo final de License to Live, ou mesmo a conversa íntima dos dois personagens de Pulse. Ou ainda em Sakebi, quando os personagens vêem e até chagam a tocar nos fantasmas. Enclausurados num castelo de cartas leve e intrincado como a própria vida, os personagens de Kurosawa enfrentam sua própria possibilidade de se perceberem como vivos, ou como meros “fantasmas de si mesmos”. A conclusão em geral é pessimista, melancólica, mas com uma certa esperança. Esperança esguia, tipicamente japonesa, pois o que parece estar em jogo é a possibilidade de vivermos em liberdade.

De uma forma didática, vou dividir a filmografia recente de Kurosawa em dois grupos: o primeiro é o dos típicos “thrillers de suspense”, pelos quais o cinema de Kurosawa é mais conhecido; o segundo é que irei chamar de “filmes jovens”, em que o aspecto criminal e o elemento fantástico está reduzido, para propor uma espécie de retrato íntimo da falta de perspectivas de uma juventude. Mas como iremos ver, evidentemente existem diálogos e pontos de interseção entre essas duas vertentes.


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3 – Os “filmes jovens”

3.1 – License to Live e o desafio de “recomeçar”

License to Live, exibido no Festival de Berlim em 1998, pode surpreender quem espera por um filme de terror típico da filmografia de Kurosawa. Está mais próximo de um drama familiar: rapaz volta à consciência após ter ficado dez anos em coma. Quando acorda, encontra um mundo um tanto diferente. Mas sua tentativa de adaptação a este “novo mundo” cruza especialmente com questões familiares: seus pais se separaram, sua irmã mora fora do país, seu pai basicamente não quer mais vê-lo. Passa a viver com um amigo de seu pai, administrando uma espécie de pequena fazenda. Dito assim, podemos imaginar License to Live como uma espécie de “sessão da tarde” mas o filme é exatamente o oposto disso. Com planos extremamente longos e brilhantes movimentos de câmera, License to Live apresenta a difícil tarefa de Yutaka em (con)viver em um mundo que lhe é estranho. Ele é uma espécie de “jovem prematuro”: com 24 anos, já não é mais uma criança, e precisa viver sem o pai e sem a mãe. Mas por outro lado, é como se ainda tivesse 14 anos. Dessa forma, License to Live é uma variação do tema do rito de passagem da juventude para a fase adulta.

No entanto, sua maior particularidade é que ao despertar do coma, Yutaka não quer olhar para trás, não deseja descobrir os rastros de seus dez anos perdidos, mas apenas reconstruir a sua vida de forma a que se possa caminhar para a frente. Dessa forma, não há um clima de melancolia ou de desespero na readaptação de Yutaka, e sim de um senso de novidade e desafios crescentes. Dramaturgicamente, a chave para esse processo é a reforma do rancho, como espelho da construção de um novo modo de vida. Ou seja, Yutaka não está preocupado em reconstruir o antigo lar ou recuperar o antigo estado de coisas, mas sim construir uma nova vida, um novo lar, ainda que com uma família que não seja necessariamente a dele.

Para tanto, Kurosawa opta por uma dramaturgia baseada em pequenas ações (os encontros isolados com membros da família, o processo de construção do rancho, etc) e acontecimentos pontuais que não estão ligados entre si necessariamente por uma relação de causa e efeito. Da mesma forma, não há um perfil psicológico claro de Yutaka, não há uma definição com clareza do que o personagem procura, e nem mesmo há um conflito claramente estabelecido. Ao mesmo tempo não há os cacoetes do cinema autoral, com tempos vazios que exploram a angústia e a solidão de Yutaka. Isso existe mas não da forma como o estereótipo do cinema autoral contemporâneo nos oferece. Não há tempo ou espaço para a possível melancolia de Yutaka: ele sempre está cheio de coisas para fazer!

Ainda assim, há uma indiscutível afetividade na forma como Kurosawa acompanha a trajetória de seu protagonista. A relação de Kurosawa com Yutaka (isto é, do diretor com seu protagonista) é quase como a de Yutaka com seu cavalo. Ainda que Yutaka não acaricie e proteja seu cavalo como um mero bibelô, eles guardam uma relação de clara cumplicidade.

Mas quando tudo parece pronto para o equilíbrio final – fruto do trabalho persistente de Yutaka – Kurosawa está pronto para fazer uma conclusão severa: é quanto tudo está prestes a desmronar. Pois viver é sempre estar na corda-bamba, à mercê de um sopro para que tudo desmorone, como um longo castelo de cartas. Yutaka fala ao seu algoz com um leve sorriso de canto de boca: “Eu vim de algum lugar e vou para algum lugar.”. Esse é o cinema de Kurosawa, em que os personagens estão sempre à procura, mesmo que eles não saibam ao certo de quê. É como se Kurosawa nos dissesse que algumas pessoas podem passar anos de suas vidas desacordados, até que subitamente possam despertar e reencontrar o sentido de viver. E quando acham, tudo está próximo do fim. Perto do fim, chega a duvidar se tudo aquilo realmente existiu, ou se seu despertar do coma não foi meramente um sonho (ou seria um filme?). Mas Fujimori san (o amigo de seu pai que lhe hospeda) lhe responde com convicção que não há dúvidas que ele existe, que tudo é real. Não satisfeito, Kurosawa faz um final ainda mais sinistro, e um último plano extremamente misterioso, de um cartão-postal em branco. Esta é a recordação possível da existência meteórica de Yutaka, e do filme-cometa de Kurosawa, este objeto deliciosamente estranho.


3.2 – Barren Illusions

Ainda não satisfeito, pouco tempo depois Kurosawa realizou Barren Illusions, exibido no Festival de Veneza em 1998. A particularidade deste projeto é que ele foi produzido pela Escola de Cinema de Tóquio, em que Kurosawa era professor. Era um projeto para envolver os alunos na realização de um longa-metragem, em que os alunos participavam da produção, com a exceção do diretor de fotografia, câmera e som. Todas as demais funções foram feitas por alunos. Mesmo com as naturais limitações deste tipo de projeto, Barren Illusions é um dos projetos mais admiráveis de Kurosawa, e não é por acaso sua seleção por um festival da envergadura de Veneza. Por outro lado, é também um objeto estranho na filmografia de Kurosawa: distante do rótulo do “cinema de gênero terror”, é mais uma investigação das angústias dos jovens japoneses.

O filme acompanha a vida de um músico (Shinji Takeda) e uma funcionária dos correios (Miako Tadano). Eles moram juntos, mas o filme não deixa muito claro se são amantes ou apenas amigos. Provavelmente apenas amigos, pois suas vidas se cruzam de forma muito esparsa. Eles vivem solitários, e a única forma de viver em um grupo é quando ele se aproxima de um bando de delinquentes ou quando ela se junta a uma torcida de futebol. A solidão desses dois jovens é mostrada a partir de um cinema de planos longos e sem diálogos, com pequenos acontecimentos sem necessária ligação entre si, que os mostram dentro de seu apartamento ou perambulando por uma cidade de Tóquio em geral com tons acinzentados, nublados, sem grande brilho, como o próprio título – Barren Illusions – nos informa.

Em alguns momentos esses dois personagens tentam fugir da solidão. Tentam acompanhar uma vida que não lhes pertence (o sequestro das cartas do correio, as brigas dos vizinhos), compram um cachorro para lhes fazer companhia, pintam as paredes do apartamento, brincam de bola num parque (uma sequência linda). Mas parece que nada faz muita diferença. A solidão e o vazio de suas vidas preenchem todo o filme.

Barren Illusions também é composto de alguns elementos não-realistas, típicos da filmografia de Kurosawa: um suicídio radical (que depois será retomado em Pulse), uma epidemia, as súbitas “desintegrações” de Haru.

O final de Barren Illusions ainda nos revela mais surpresas. Há um fantástico movimento de câmera em 180 graus, que nos revela o mar. Em seguida, um diálogo arrepiante. Michi entra em desespero quando vê no mar um esqueleto.

- Tudo acaba assim!!!... Acabará tudo assim?
- Mas eu estou contigo!
- Mas onde estás?
- Estou bem aqui, não me vês?
- Onde?
- Aqui!
- Aqui aonde?
- Eu… onde eu estou?



3.3 – Água-Viva

Bright Future, exibido em algumas mostras no Brasil como Água Viva, é um trabalho que combina elementos dos “dramas realistas jovens” com outros dos “filmes de inspiração fantástica”. Novamente Kurosawa utiliza algumas convenções de um gênero específico do cinema japonês, o “filme de monstro”, apenas para completamente subverter suas relações com esse gênero. Dois jovens trabalham numa pequena fábrica e têm a chance de serem efetivados. Um deles Yuji Niimura (Jo Odagiri) é tímido e se vê profundamente influenciado pelo outro amigo Mamoru Arita (Tadanobu Asano), que possui em seu apartamento uma água-viva que solta uma substância venenosa. Ao perceber que tinha tentando lhe matar deixando que colocasse a mão no interior do aquário, o chefe demite Mamoru. Ele então mata não só o chefe como sua família, sendo preso e esperando a sentença, provavelmente a pena de morte. Seu amigo o visita na prisão, e recebe instruções de como alimentar a água-viva.

Yuji tem uma vida que praticamente não lhe pertence, à sombra de Mamoru. Com a morte desse amigo, ele é obrigado a “despertar para a vida” (usando a terminologia de License to Live). Ele passa a viver com o pai desse amigo, formando uma espécie de família com esse velho solitário (outra semelhança com License to Live).

Mas a chave de entendimento do filme é a presença misteriosa, silenciosa e soturna da água-viva. Ela é como uma espécie de “espelho do mundo”: vive em seu silêncio, mas quando tocada, é mortal. Por outro lado, ao ser cuidada, ela acaba crescendo e se multiplicando, avançando pelo mundo ao ser despejada num rio, causando a morte de pessoas do bairro.

Água Viva é dessa forma um filme sombrio, talvez tão sombrio quanto Pulse. A falta de perspectivas dos jovens japoneses (o plano final é bastante característico, mostrando jovens caminhando ao léu com camisas de Che Guevara, chutando caixas vazias) é mostrada a partir dessa enigmática água-viva, quase um símbolo dos “filmes-cometa” de Kurosawa. Sua beleza fascina mas pode ser apenas observada, a partir de uma certa distância: um toque gera a morte (a dificuldade do toque é um tema essencialmente japonês…). Quase como o mundo, cuja beleza parece ser impenatrável, inacessível. A morte de Mamoru passa a ser uma espécie de libertação para Yuji, que agora precisa tormar suas próprias decisões. Mas que decisões tomar nesse nosso mundo?

As águas-vivas avançam através do rio, e chegam perto das pessoas, para sua alegria ou tragédia. É quase como o cinema de Kurosawa, que cultiva esse sentimento de dor para proliferá-lo através dos canais do mundo.



4 – Os falsos “thrillers de suspense”


4.1 – Aspectos Gerais

Kurosawa tornou-se mais conhecido pelos “thrillers de suspense” que descreveremos a seguir. São projetos realizados com um orçamento maior, a partir de Cure (1997), o primeiro grande sucesso da filmografia de Kurosawa. Nesses filmes, há uma abordagem ambígua do cinema de gênero. Em Cure e Sakebi, parecemos estar no campo do “filme criminal”, em que um policial tenta descobrir o sujeito e os motivos para uma série de crimes. Em Pulse, estamos no campo propriamente dito do terror, pois as mortes, a princípios, parecem ser causadas por “fantasmas”. No entanto, esses campos se cruzam: em Sakebi, também surgem fantasmas que impulsionam os assassinatos; Pulse apresenta uma estrutura típica de um filme criminal, com “pistas” e “sinais” para que tentemos descobrir os motivos dos crimes.

Mas a particularidade do cinema de Kurosawa nesse conjunto de filmes é que, indo além das convenções específicas do cinema de gênero, e trabalhando nas bifurcações entre esses mesmos gêneros, é como se Kurosawa utilizasse elementos do cinema de gênero para no fundo fazer uma investigação da natureza humana. Mais que descobrir os crimes e suas razões, os personagens de Kurosawa empenhados na busca (o policial ou os jovens) acabam no fundo descobrindo a si mesmos. Em Cure e Sakebi, isso é muito característico: esse “policial durão” acaba ao longo dos filmes revelando suas fragilidades emocionais e sua carência afetiva. Os fantasmas e os assassinos são tão importantes porque eles revelam sinais impossíveis de serem apagados para os que continuam vivos. Por isso quanto mais os personagens se aproximam dos assassinos, mais eles estão perto de revelar a si mesmos a sua verdadeira natureza. Ou seja, uma tortuosa e dolorosa odisséia existencial.


4.2 – Cure

Cure foi o primeiro grande sucesso internacional de Kurosawa, em que o diretor encontra de forma madura seu estilo e forma de abordagem caracterísiticos. Grande hit comercial no Japão, o filme conseguiu projetar-se para o Ocidente após grande repercussão no Festival de Cinema de Tóquio. Em seguida, garantiu projeção no Festival de Rotterdam, e daí em diante a filmografia de Kurosawa deslanchou.

A princípio, Cure parece ser um típico thriller de suspense, na linha de alguns filmes de americanos de gênero, em que um policial tenta solucionar um conjunto de assassinatos. Pessoas aparentemente comuns, em lugares diferentes, cometem um mesmo tipo de assassinato mórbido, provocando em suas vítimas um corte profundo em forma de “X” que vai do pescoço até o tórax. O detetive Kenichi Takabe (representado de forma magistral por Kôji Yakusho, presente em diversos outros filmes de Kurosawa) investiga o caso com a ajuda de um psiquiatra.

No entanto, o que surpreende em Cure é a densidade do aspecto psicológico, especialmente na caracterização do detetive. À medida em que vai se aprofundando no caso como quase uma obsessão e que se aproxima do mentor desses crimes, esse detetive vai se descrobindo, e, com isso, o espectador presencia os seus limites e as dificuldades de sua vida pessoal, especialmente em sua relação com sua esposa doente. As regras do típico cinema de gênero vão se tornando cada vez mais difusas, e em seu terço final, Cure se revela um asfixiante drama sobre as contradições da natureza humana, seus limites e um sinistro desejo de morte.

Diversas das características desenvolvidas posteriormente por Kurosawa podem ser vistas em Cure. Primeiro, o aspecto sombrio, e a falta do horizonte e espaços abertos em externas quase sempre nubladas. Segundo, uma mórbida atração e ao mesmo tempo uma repulsa diante da proximidade da morte. Terceiro, um cinema de ambiguidades em relação ao cinema de gênero. Quarto, uma mise en scene elaborada, em geral com planos longos, ainda que com relativamente poucos tempos vazios. Quinto, a opção por finais abertos, inconclusivos.

Representação ambígua da natureza do mal, o criminoso de Cure é um estudioso, um mestre da manipulação da mente humana. Sua característica encantadora é sua imensa serenidade, seu senso de observação e curiosidade diante de conhecer o outro. Seu método de abordagem se baseia em retornar as perguntas, questionando os mais simples pontos de contato, causando uma desorientação. Não é à toa que as principais perguntas são “quem sou?” ou “onde estou?”: quase uma síntese da busca do cinema de Kurosawa pela essência da natureza humana e pela investigação do espaço fílmico. Avançando em forma de espiral, de forma contínua e de proporções crescentes, Cure é quase um estudo sobre a genealogia do mal. A partir de uma repentina aparição (a primeira vez que o criminoso aparece é à beira do mar), o mal se infiltra na apodrecida sociedade de Tóquio, impulsionando as pessoas a cometerem um ato que no fundo elas sempre gostariam de fazer mas que procuravam reprimir (essa é a ambiguidade de Cure). O criminoso não causa diretamente um mal às pessoas com quem ele tem contato: sua “sutileza” é que ele as leva a refletir sobre o que lhes causa prazer ou dor, e as impulsiona para um crime. Mas exterminado o criminoso, qual é a certeza de que novos atos não ocorrerão mesmo assim? O mal é como um vírus, que uma vez germinado, está pronto para se proliferar, sem controle. É esta a característica comum entre os “thrillers de suspense” de Kurosawa, e inclusive pode ser visto em Água-Viva, nesse ser aparentemente ingênuo que pode causar a morte e se multiplica pela cidade.

4.3 – Pulse

Pulse começa num navio navegando ao longo do oceano, uma espécie de imagem-síntese do dircurso de desespero do filme. “Tudo começou um dia sem aviso desta maneira”, e através de um flashback somos apresentados a uma espécie de versão do apocalipse. “Sem aviso”, é como se uma espécie de vírus tivesse invadido a mente e o corpo dos habitantes de Tóquio, em especial os jovens. Ao ter contato com a “sala escura”, em geral por um programa de computador (a analogia com o “vírus”), os jovens começam a ver “fantasmas”. Os fantasmas levam à morte, mas assim como o assassino de Cure, eles não causam mal diretamente aos que os vêem, mas, como um personagem define mais adiante no filme, “os fantasmas tentam apanhar as pessoas em sua própria solidão”. Pulse acompanha em paralelo dois casos, que se encontrarão no final: o primeiro, de duas amigas, Michi e Junko; o segundo, de Kawashima e Harue, que trabalha num laboratório de informática.

Pulse, a princípio nos parece um típico filme de terror, com a presença de “fantasmas” que assombram a existência dos vivos e os levam à morte. Mas com o tempo Pulse vai se tornando cada vez mais metafísico, sobre o destino certo da condição humana: a solidão profunda (a morte). Por isso, mesmo com um certo exagero, alguns críticos viram em Pulse (e também em Cure) estilhaços do cinema de Tarkovski, pela investigação metafísica da condição humana, pelos silêncios e espaços físicos atípicos, reinventados. A cidade de Tóquio é sempre vista como um cenário sombrio, nublado, em que ruas e mesmo veículos coletivos (ônibus, metrô) estão sempre completamente vazios.

Apesar de os fantasmas não causarem nenhum dano físico direto a quem os vêem, eles estão vivos, eles possuem uma presença física. Kawashima chega a tocar o fantasma quando entra na “sala escura”, e ouve “eu sou real”. Uma das principais discussões de Pulse é sobre a natureza do nosso mundo. Em um diálogo central (filmado num incrível plano sequência de cinco minutos), Kawashima tenta acalmar Harue. Diz que Harue está errada por achar que fantasmas e pessoas são iguais, porque afinal estamos vivos.

“Estão todos loucos. Ninguém sabe o que acontece quando se morre. Tudo isso sobre fantasmas, porém eu não acredito neles, mesmo se ver um. Porém eu sei que...que eu estou vivo e que você também, Harue.Isso é seguro, certo?”

No metrô, há um lindo diálogo entre Kawashima e Harue, que reforça o diálogo anterior.

H: Não tem ninguém...
K: Não...
H: Onde está todo mundo?
K: Estou aqui. Estou aqui do teu lado. Mesmo que não tenha mais ninguém, isso não importa. Ambos estamos aqui.

O amor pode parecer o único remédio para o “destino certo da condição humana”, ou ao menos para reverter a evolução do vírus. Mas apenas parece, pois Kawashima não consegue salvar Harue, nem Michi consegue salvar Junko. Pulse possui uma natureza cada vez mais pessimista e fatalista.

Pulse possui uma estrutura em espiral, assim como Cure, em que os fatos tomam consequências cada vez maiores, até um final que parece uma versão do apocalipse. E um final em aberto, esperança esguia da possibilidade dessa “aposta” que é continuar vivendo, ainda que num barco sem rumo ao longo do oceano.



4.4 – Sakebi (Retribution) – Vítima de Uma Alucinação

Sakebi, lançado no mercado de homevideo brasileiro com o título de Vítima de Uma Alucinação, foi exibido com discrição no Festival de Veneza em 2006. Tem inúmeros pontos de contato com Cure, por também mostrar um policial (representado pelo mesmo ator, o excelente Kôji Yakusho) que investiga uma série de assassinatos com uma mesma característica (ao invés do “X” de Cure agora é o afogamento numa poça de água salgada). Algumas cenas chegam a quase se repetir, como o depoimento de um dos assassinos, que tem um delírio e revela sua insanidade (em Cure, isso ocorre num estonteante plano sequência de mais de cinco minutos). Mas por outro lado, Sakebi possui elementos que tornam ainda mais complexa a busca do policial pelo assassino: ele aos poucos vai descobrindo indícios de que talvez ele próprio tenha cometido o assassinato. Isso poderia nos associar até a alguns filmes “neonoir” americanos dos anos oitenta (especialmente Coração Selvagem), só que há ainda outra característica, típica do cinema de Kurosawa, que tornará essa busca mais estranha: o fantasma da primeira vítima assassinada aparece continuamente para o policial. A forma como Kurosawa mostra o aparecimento desse “fantasma” esgarça definitivamente os limites entre o real e a alucinação. Kurosawa presentifica e corporifica esses fantasmas, de forma que os atormentados personagens de Sakebi acabam contracenando com eles. Nesse sentido, retoma alguns conceitos de Pulse, em que na “sala escura” as pessoas interagem com os fantasmas.

Por isso Sakebi deve ser visto como uma tentativa de ampliar (tornar mais complexo) o escopo de Cure e Pulse, seja no processo de busca do assassino como revelador da natureza própria do policial (Cure) seja na interação dos “fantasmas” com os vivos de forma a tornar ambíguos os limites do real e da alucinação (Pulse). No entanto, falta uma conclusão que articule de forma mais orgânica esses dois elementos, e as soluções encontradas (um hospital psiquiátrico do passado, a morte da mulher do policial) acabam parecendo soluções desgastadas distantes do asfixiante processo de espiral contido tanto em Cure quanto em Pulse.





Carisma

O primeiro aspecto de Carisma é sua ambiguidade em relação ao cinema de gênero. A princípio, o filme mostra mais um policial representado por Kôji Yakusho em ação. Mas a partir do resultado negativo de uma intervenção, que culminou com a morte de um criminoso e de um sequestrado, o policial é enviado para o interior, para uma espécie de retiro. É quando se envolve numa história misteriosa, envolvendo a disputa por uma árvore, apelidada de Carisma, considerada essencial para o equilíbrio de uma floresta. Nisso, o filme muda totalmente de tom, e sua base inicial do filme policial se revela uma história de conotação metafísica sobre a vida e a verdade. De uma certa forma, o clima metafísico que acaba se impondo às convenções do cinema de gênero, especialmente do filme policial ou de detetive, é comum ao cinema de Kurosawa, como abordamos especialmente em Cure e Sakebi. Mas em Carisma a ruptura com o cinema de gênero é mais radical: é como se seu início fosse uma espécie de Cinzas que Queimam, de Nicholas Ray, e ao final percebemos que se torna uma espécie de A Morte Num Beijo, de Robert Aldrich, aliás, dois filmes de dos anos cinquenta de cineastas americanos que, em sua época, romperam convenções de um certo cinema de gênero, e que Kurosawa já demonstrou em entrevistas a sua admiração.

Carisma antecipa os temas desenvolvidos posteriormente em Água-Viva. Um deles fala da necessidade de se fazer escolhas. A punição do policial se dá porque ele acreditava que seria possível salvar as duas vidas: a do criminoso e a do sequestrado. No final, houve a morte de ambos: muitas vezes é impossível salvar a todos. É preciso então fazer uma escolha. A travessia do policial representado por Yakusho ao longo da floresta representa a maturidade para se fazer essa escolha: a quem salvar e a quem executar. A floresta serve como uma espécie de travessia espiritual para que o policial decida de que lado deve ficar. O problema é que muitas vezes a verdade é difusa, de modo que não se base em que lado se quer ficar.

O segundo tema é a da possibilidade de se conviver com a diferença. A árvore de Charisma guarda inúmeros paralelos com a água-viva de Bright Future. Ambas são seres frágeis, aparentemente indefesos, mas que espalham um veneno que pode matar quem lhe toca. Espalhar esse veneno, proliferar esses seres, representaria a possibilidade de luta pela diferença ou aniquilação de uma comunidade? Kurosawa trabalha com os elementos do cinema fantástico, e coloca diversos pontos de vista em relação a essa árvore: o de um solitário lunático, que a protege como se fosse sua própria vida, a de uma cientista, que julga que a árvore representa a destruição do ecossistema da floresta, e de um bando, que busca a exploração madeireira do lugar. Entre o coração, a razão e a ganância, o policial precisa fazer uma escolha, e para isso, mergulha numa floresta com pistas difusas.

A partir de Charisma, alguns críticos viram no cinema de Kurosawa uma associação com Tarkowski. Essa comparação contribui mais para confundir do que para esclarecer os objetivos de Kurosawa, até porque, como dissemos, sua ambiguidade em relação ao cinema de gênero é um elemento fundamental de sua filmografia. Mas é curioso como podemos ver Carisma em comparação com O Sacrifício, de Tarkowski. O policial toma conta de uma frágil árvore, que é vista quase como símbolo da salvação de um mundo materialista. Além disso, a visão não-realista da floresta e os diálogos filosóficos dos personagens remetem a algumas cenas de Stalker. Ainda, a forma como Kurosawa compõe os espaços físicos, com casas abandonadas, com vidraças quebradas e espaços vazios lembram algumas das opções do cineasta russo. Mas creio que esses elementos são mais pontos em comum do que propriamente tentativas de diálogo entre os dois autores.

Realizado em 1999, Charisma aponta para um estranhamento da filmografia de Kurosawa: não é nem um “filme de juventude” nem “um thriller de suspense”. Seu arremedo de “cinema fantástico” contrasta com uma mise en scène de inspiração realista, especialmente na forma como o cineasta retrata a floresta: ao redor da árvore Charisma, há um espaço dessacralizado, como se nenhum elemento apontasse para o fato de que aquela árvore é especial. No entanto, junto com Cure, talvez seja o filme em que Kurosawa mais explicita a ambição metafísica de seu cinema. À medida em que avança para o seu final, Charisma retoma os temas de seu início: o fracasso do policial em proteger a frágil Charisma possui o contraponto do fortalececimento interior de uma ética. O sistema destrói a liberdade de ser em dissonância do outro: é preciso que a árvore se integre ao ecossistema da floresta para que possa sobreviver, senão é aniquilada. É a partir da consciência dessa tragicidade que o policial se declara pronto para deixar a floresta e regressar à sua rotina na cidade de Tóquio.

Comentários

legal seu texto, mas podeia mudar esse layout, coloque algo mais a ver com o cinema.

abraço
Roqueto disse…
Gostei muito das análises, me ajudaram a mergulhar ainda mais no fascinante cinema do KK.

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