Sociedade dos Amigos do Crime

A Mostra do Filme Livre deste ano exibiu grandes longas-metragens como Terras, Pacific e A Bunda da Mulher Gorila, entre outros. Todos representantes de um cinema contemporâneo brasileiro, jovem, inventivo, criativo, livre. Mas existe um longa que não foi citado que será exibido amanhã, quase perdido no último dia de projeção de filmes da mostra, no meio da miríade da programação. Pelo menos para este que vos escreve, é o filme imperdível da mostra, muito mais imperdível que os filmes acima. Assim como aconteceu no ano passado (ver aqui), mais um filme do Dellani Lima tem sua estreia nacional na estreita mas afetuosa sala de vídeo do CCBB-RJ. Esta é a mesma sala em que estrearam meus vídeos caseiros como Em Casa, Desertum e Êxodo. Dellani, apesar de já estar no quarto ou quinto longa-metragem (já perdi as contas), não tem o reconhecimento dos cineastas acima, nem a representação no circuito dos “grandes” festivais de cinema. Pacientemente, ele constrói um cinema caseiro, ou, em sua expressão, um “cinema de garagem”, radical, sem concessões seja ao mercado de lançamentos seja mesmo ao mercado de festivais. Acredito que é um grande orgulho para a Mostra do Filme Livre poder, a cada ano, sediar a estréia de um artista como o Dellani.

Seu novo trabalho SOCIEDADE DOS AMIGOS DO CRIME é um tanto diferente de seus filmes anteriores, seja O Céu Está Azul Com Nuvens Vermelhas seja o belíssimo O Sonho Segue Sua Boca. Enquanto O Sonho Segue Sua Boca tem uma estrutura de um sonho, é como se Sociedade dos Amigos do Crime seguisse a de um pesadelo. Ou ainda, enquanto seus dois filmes anteriores eram afetuosos e delicados, este é agressivo e brutal. Sociedade possui uma estrutura ritualística, como se os atores-amigos que se envolvem na realização do filme participassem não só de uma filmagem mas de um pacto, em que a vida e a representação entram num jogo indissociável. Mas desta vez não cabe a afetividade mas sim a agressão: de uma certa forma, Sociedade é uma resposta, um contraponto aos filmes anteriores de Dellani. É como se o amor fosse sempre fugidio, de difícil contato, surpreendido por trapaças e artimanhas.

Sociedade dos Amigos do Crime possui uma certa estrutura teatral, com um intenso trabalho corporal de um conjunto de atores, mesclando referências como o Teatro da Crueldade de Artaud ou mesmo o Kabuki e o Nô orientais. O filme se desenvolve através de rituais, ora macabros e pervertidos ora simplesmente ingênuos. O filme combina essas referências com um explícito apreço a um cinema trash, marcado pela despretensão, pela aversão ao bom gosto e pela irreverência, talvez pela clara influência de sua amizade com Peter Baiestorf.

Por outro lado, ainda assim, como seu título já aponta, este filme dialoga com os trabalhos anteriores de Dellani por ser um filme sobre a amizade. Uma amizade nada trivial: difusa, ritualística, macabra. Ainda que Dellani não consiga aprofundar as perversões de suas personagens, sua busca rende momentos surpreendentes, e, como sabemos, o verdadeiro foco é no processo. Dellani faz parte de uma seita secreta, misteriosa e incompreendida: apesar de irregular, ainda em formação, aqueles que se deliciam de sua seiva apreciam os desígnios desse “afetuoso marginal”.

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