A juventude no cinema brasileiro recente (IV): comparações com Conta Comigo
No último post fiz uma espécie de piada com Conta Comigo, e aqui retorno ao tema porque a citação não foi por acaso. Acredito que Conta Comigo e Gerry são dois filmes com diversas semelhanças mas também com enormes diferenças. Para o que interessa aqui, eu poderia dizer que enquanto em Gerry um grupo de amigos se perde num deserto, em Conta Comigo as crianças se encontram numa floresta. Mas o que os dois filmes têm em comum são a projeção de uma idéia de fuga como um sentido de um encontro. E, ainda, como essa relação está diretamente ligada com um percurso, físico e geográfico. Percurso como transformação, marcado no corpo do ator: a fome, a sede em Gerry; ou mesmo a cena-limite das sanguessugas em Conta Comigo. Ou ainda, representado pelos pés, ao longo de grandes, grandes, contínuas caminhadas.
Conta Comigo é um filme-chave nos anos oitenta sobre jovens (crianças) que tentam descobrir a si mesmos, superar seus limites, enfrentar seus medos – e isso só porque ali ninguém está só. Ao mesmo tempo, há um profundo sentido de solidão, há um certo distanciamento na observação de tudo por um personagem, o “menino inteligente” que vai se tornar escritor, cujo destino provavelmente será diferente de seus amigos delinqüentes. Há uma melancolia porque essa história é narrada em flashback por esse menino quando se torna adulto. Nostalgia que será resumida nas últimas frases do romance, que vemos na tela do computador (tela dentro da tela): “Nunca mais tive amigos como os que eu tivera aos doze anos. Meu Deus, e alguém tem?” As pessoas se encontram e se separam na vida, de modo que se aponta para a fragilidade desses nossos laços emocionais.
Enquanto os meninos de Conta Comigo passam a noite conversando em torno da fogueira, os meninos de Estrada Para Ythaca passam a noite bebendo e cantando. Eles se expressam de um modo além (ou aquém) das palavras dirigidas diretamente de uns aos outros, mas em geral por meio de canções ou de brindes. Reina um silêncio, um vazio, uma distância. É como se tivesse a consciência de que é preciso fugir, mas não se sabe o porquê ou para onde. É difícil dirigir uma palavra ao outro. Tudo está dito, nada está dito.
Assim como no filme de Rob Reiner, os meninos de Ythaca também realizam uma travessia para encontrar um cadáver, cujo corpo se faz presente ao longo de todo o filme. No entanto, a presença do cadáver se faz presente não propriamente num sentido físico – como a lamentável presença do corpo em Amigos de Risco, por exemplo – mas através da presença da morte: o cachorro, as sanguessugas, o desafio ao trem em Conta Comigo, ou as fotos e as repentinas aparições de Yhtallo em Estrada Para Ythaca. Ali não se pode ficar, deve-se ir pelo caminho, mas volta-se outro: Ythaca é de certo modo não muito diferente de um “diário de viagem” como Êxodo ou Desertum.
Existe um aspecto fantástico no que diz respeito ao percurso trilhado pelos meninos no filme de Rob Reiner: esse percurso físico acompanha a linha do trem, mas em algumas ocasiões os personagens têm a consciência de se afastar dos trilhos (como a parada para comida num ferro velho). Mas o mais impressionante é quando os meninos abandonam de vez a trilha para pegar um atalho pela floresta. Quando entram pela floresta (um filme de Kawase? um filme de Aoyama? um filme de Satyajit?), é como se esses meninos estivessem prontos para passar a ser os protagonistas de seus próprios destinos.
Os jovens de Morro do Céu também encontram a estrada de ferro, quase como uma referência explícita ao filme de Rob Reiner. Mas não conseguem se afastar dela como os meninos de Conta Comigo: ao contrário, são intimidados pela imponência de sua construção, querem descobrir as entranhas da arquitetura de ferro, assim como dos carros que consertam na oficina. Mas sempre retornam, pois não pensam em sair da cidade, temem onde aquela linha de fato os irá levar. Recuam diante de sua majestade. Dessa forma, a estrada é mais a projeção de um desejo do que efetivamente possibilidade. Um lugar em que se pode estar só, um refúgio. Já em Ythaca, a estrada é não só mero refúgio mas percurso físico. No entanto, esse percurso é essencialmente meio para se perder (um deserto, como o deserto de Gerry), e não simplesmente como um caminho de encontro (Conta Comigo, ou mesmo Morangos Silvestres), ainda que seja um encontro transformador. É até possível dizer que o grupo chega a Ythaca, mas é como se isso pouco importasse: mais importante que eles terem achado o destino é que eles se perderam enquanto tentavam achá-lo e talvez o tenham achado exatamente por ter se perdido. Enquanto Conta Comigo está interessado no fim, Ythaca está no meio, no caminho em si, e não no caminho como forma de se achar algo além. Ou ainda, em Ythaca mesmo que se tenha um destino, esse caminho é percorrido sem mapa. Mas ir sem mapa não implica que esse caminho é trilhado desinteressadamente, de modo aleatório, pois há um rigor, um olhar e um sentimento. Algo que me faz lembrar (novamente) de O Canto dos Pássaros, mas essa já é uma outra história...
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