A chegada e a saída de um conjunto de trens do enquadramento cinematográfico: Benning e Lumière


Eu me lembro que em 1995, nas comemorações dos cem anos do cinema, começaram a ser publicadas listas dos melhores filmes da história do cinema. Uma das listas era composta por listas individuais de críticos brasileiros. Um dos críticos – não me recordo o nome – colocou A Chegada do Trem na Estação, dos Irmãos Lumière, encabeçando sua lista. Apenas anos mais tarde fui perceber que sua lista era por ordem cronológica, de modo que, naquele instante, pensei que o crítico colocava o que é considerado o marco inicial da história do cinema como seu filme mais importante. Na época, fiquei absolutamente indignado com essa colocação, como se fosse uma provocação, pois senti que era como se o cinema não tivesse se consolidado, já que se o filme mais importante era o primeiro, então era porque todos os seguintes não estavam à sua altura? Curiosamente esta constatação poderia ser vista como tipicamente “lumieriana”, já que supostamente os Lumière disseram uma frase bastante famosa e ainda pouco compreendida: “o cinema é uma invenção sem futuro”.


Hoje, 110 anos após a primeira exibição desse filmete dos Lumière, de cerca de um minuto, não seria exagero se o considerássemos como um dos filmes mais importantes da história do cinema. Hoje, esse filmete ganha novas e novas significações. A suposta ingenuidade dos Lumière, registrando com câmera fixa acontecimentos simples (um trem chegando a uma estação, operários saindo de uma usina), com títulos (magistrais) que simplesmente descreviam o que víamos (era isso, nada além disso), hoje pode ser visto como uma síntese das possibilidades expressivas de um certo tipo de cinema contemporâneo, em suas relações com o espaço físico, a duração e a câmera fixa. Ao contrário de Griffith (bem depois), que encenava dramas morais, ou de Meliès, que fazia trucagens espetaculares, os Lumière, em seus filmes mais significativos, “apenas” colocavam uma câmera e deixavam-na ali registrando o escorrer do tempo e da vida ao longo da película cinematográfica. Paradoxalmente essa suposta ingenuidade pode ser vista hoje como a “ponta de linha” das investigações sobre o cinema contemporâneo.


“O cinema é uma invenção sem futuro”. Mais de cem anos depois é sobre este contexto que é possível assistir a uma experiência extremamente radical e extremamente simples (intuitiva) como os filmes de James Benning, especialmente um filme como RR. É importante frisar que RR não é o primeiro filme de Benning, que, por sua vez, não é um jovem de vinte anos de idade. RR é mais um filme que comprova todo um caminho de experimentação artística desse realizador canadense que agora começa a ter seus trabalhos mais difundidos, especialmente devido a internet. Isso é extremamente curioso, já que a radical opção de Benning pela película cinematográfica, pelos filmes de longa duração com planos fixos, pode parecer “anacrônica”, “antiquada”, ou ainda, absolutamente oposta ao espírito inquieto, perscrutador, incisivo, geralmente associado às novas tecnologias. Nesse sentido, RR ainda tem uma participação especial, pois talvez seja a última experiência em película de Benning, já que seu filme seguinte, Ruhr, foi o primeiro em que o autor utilizou uma câmera digital, em HD.


O que é RR? Num certo sentido, o filme é uma coleção, um conjunto de quinze, vinte planos (não sei ao certo quantos) com câmera fixa, de trens passando pela superfície norte-americana, entrando e saindo de quadro, sem nenhum efeito em imagem e som (na verdade há alguns, e em Ruhr o autor vai radicalizar isso, mas não vou aprofundar isso aqui). Para além disso, podemos fazer inúmeras relações: o trem como símbolo da modernidade, o trem como ícone de uma origem cinematográfica, o realismo da imagem cinematográfica, o rigor do cinema estruturalista, a importância econômica e social do trem (são trens de todos os tipos, de passageiros, de carga, passando por desertos, pontes, cidades, etc.), o trem como desestabilizador de uma harmonia geográfica e sonora [lembremos o Thoreau de Walden], o movimento (deslocamento) da imagem e do som como trajetória no interior da imagem fixa, o jogo entre previsibilidade e o acaso (cada trem passando é uma experiência única, impossível de ser repetida), etc, etc, etc.


Mas além disso, o que está em jogo, é uma possibilidade de olhar e ouvir o mundo, de se inserir num certo espaço e tentar reproduzir essas sensações visuais e acústicas para o espectador, a partir das possibilidades e especialmente das impossibilidades do cinema. Quando saímos do fim de um filme de Benning (aqueles que o conseguem), passamos a rever nossas relações de percepção com o mundo. Mas não é só isso, passamos a RESIGNIFICAR o sentido dessas próprias relações e, ao resignificar, estamos fazendo cinema! O cinema de Benning se insere numa dualidade que ele resume com muita solidez, de forma robusta, e daí a singeleza de seu projeto cinematográfico: de um lado passamos a observar de forma mais atenta o mundo, de outro (como se o anterior ainda fosse pouco), passamos a resignificar a possibilidade dessa própria observação (o rigor do estilo, a autoconsciência do estilo, a ênfase na repetição – o que me lembra Cezanne “ver, ver, ver, para que possamos desver”). O “impressionismo” do cinema de Benning (cada trem é um trem) com o rigor de um estilo, um “estruturalismo” (um “equilíbrio”, uma “harmonia”). É como se Benning quisesse fazer uma síntese entre Cezanne e Rafael. E isso com apenas meio naco de tinta.


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