A juventude no cinema brasileiro recente (I): Morro do Céu
Ainda que tímida, é interessante observar que nos anos de 2009 e 2010, tem existido uma tendência no cinema brasileiro recente de fazer filmes sobre jovens. Uma outra questão – que o Felipe Bragança apontou há alguns anos no Festival de Tiradentes, ainda que não exatamente dessa forma – é se os filmes que falam sobre jovens são efetivamente jovens, mas, de qualquer forma, o que quero apontar aqui é a existência, num período curto de tempo, de um conjunto de longas-metragens brasileiros que se debruçam sobre os rumos da juventude, fato raro no cinema brasileiro em geral. São eles: Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro, Os Famosos e os Duendes da Morte, de Esmir Filho, As Melhores Coisas do Mundo, de Laís Bodansky, e Estrada Para Ythaca, dos Irmãos Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes. São filmes complementares na forma como observam os caminhos para juventude, e como se utilizam dos elementos da linguagem cinematográfica para refletir sobre suas visões de mundo e de cinema. Mas, cada um à sua maneira, e em maior ou menor grau, são filmes notáveis, estimulantes, que em geral buscam uma certa lufada de ar fresco. Acredito que a juventude, com suas angústias, dúvidas e inseguranças, mas sua paixão, autenticidade e verdade, parece ser um bom caminho para se pensar em possibilidades para o mundo.
Morro do Céu foi realizado pelo gaúcho Gustavo Spolidoro num pequeno vilarejo no interior do Rio Grande do Sul, que dá título ao filme, financiado pelo DOCTV. É curioso pensar Morro do Céu como produto do DOCTV, já que a formação de Spolidoro é quase toda da ficção, e, talvez por isso, Morro do Céu, seja um filme praticamente ficcional. É incrível como Spolidoro trabalha no tênue limite entre a ficção e o documental. Ainda que trabalhe registrando o cotidiano de alguns dos moradores do local, em especial um jovem chamado Bruno Storti, Morro do Céu apresenta elementos ficionais na forma como estrutura sua narrativa, e como utiliza habilmente artifícios como uso da trilha sonora, convenções de personagens, paralelismos que são retornados adiante no filme, diálogos que revelam motivações que “levam o filme para frente”, etc. Com isso, Morro do Céu mostra que Spolidoro, talvez pela influência da mostra de cinema que organiza, o CineEsquemaNovo, é um bom leitor do cinema contemporâneo, não só pela forma sutil com que articula a ficção e o documentário, mas essencialmente porque soube absorver a principal lição desse cinema: a sabedoria de saber observar, articulando de maneira orgânica uma geografia física a uma geografia interior. Nesse aspecto é extraordinário o amadurecimento de Spolidoro: enquanto sua filmografia anterior preocupava-se, acima de tudo, com os fetiches do processo de filmagem, em especial os planos-sequência, agora Spolidoro utiliza a sutileza e a sugestão, com planos de câmera parada, um cinema que aponta pouco para si e para o seu processo de construção, ainda que na verdade, se revele de um profundo e complexo processo de elaboração estilística. Essa transformação de uma estética revela no fundo uma transformação de uma possibilidade de ver o mundo. O cinema de Spolidoro quase sempre falou sobre jovens, mas sua “linguagem jovem” era repleta de excessos, atitudes radicais, um humor escrachado, um movimento incessante muitas vezes para lugar nenhum. Mas a diferença é que agora Spolidoro apontava sua câmera para o interior, um canto recôndito, desconhecido e misterioso: agora seria necessário observar, e não apontar de antemão. Morro do Céu é bonito porque é um filme que sabe observar. Observar de forma íntima, delicada, profunda, sugerindo mais do que dizendo. Observar sempre de muito perto mas mantendo uma certa distância, uma distância respeitosa, delicada, eu diria quase oriental. Nunca invadindo uma intimidade, machucando, apontando para o espectador as dificuldades e os dilemas daquele menino, daquela comunidade, mas sempre observando, dialogando, sugerindo. Isso tudo foi possível, porque além de um sentimento pelo mundo, existia uma técnica, que se espelha num modo de realização. Praticamente todo o filme foi feito apenas pelo próprio Gustavo, que, “sozinho”, pôde acompanhar seu tímido protagonista de maneira delicada, deixando-o à vontade. Esse filme foi possível porque Gustavo encontrou uma handycam HD full de enormes possibilidades técnicas e intimistas: uma VIXIA HG-21, que custa cerca de US$1000. Ainda assim, Spolidoro não buscou os maneirismos da câmera digital, mas optou por um certo distanciamento, um certo rigor, baseados na não-intervenção e na opção pela câmera parada.
Mas falando de tudo isso, deixamos de ir ao essencial: quem é Bruno Storti? quais são os seus sonhos, seus desejos, o que lhe afeta? O filme mostra o seu cotidiano entre o final do período de aulas e as férias escolares, até o Carnaval. Spolidoro observa o cotidiano de Bruno: o estudo para as provas, seu trabalho amador como mecânico, seu grupo mais próximo de amigos, a vontade de ter uma namorada. De alguma maneira, Morro do Céu me lembrou de um filme muito íntimo para mim: Kes, o primeiro filme de Ken Loach, que mostra um menino que resiste a ter a vida de seus pais e trabalhar na mina de carvão e que nas horas vagas tenta adestrar um pássaro. Mas em Morro do Céu não se trata disso: é quase como se esse “romance de formação de consciência” fosse composto a partir de uma “decantação” e não de uma “agitação”. O desejo de Bruno está no extracampo, talvez perdido entre as folhagens reveladas nos belos grandes planos gerais do filme, que permitem um respiro adequado a essa reflexão, ou mesmo entre os abandonados caminhos dos trilhos do trem (Suzaku?), que possam levá-los para o além: desejo pela “borboletinha de Cotiporã”, que nunca vemos, nem mesmo no Carnaval, desejo pela fábrica na Itália, que nunca vemos, desejo pelo fora e pelo dentro, desejo por ser outro, desejo por ser si mesmo, desejo tímido, interior, libertário, humano, que revela no fundo que a grande sabedoria de Spolidoro não é escancarar, arrancar de dentro da dramaturgia essas dificuldades, mas simplesmente em respirar de uma maneira muito respeitosa e delicada uma possibilidade de ser.
Morro do Céu foi realizado pelo gaúcho Gustavo Spolidoro num pequeno vilarejo no interior do Rio Grande do Sul, que dá título ao filme, financiado pelo DOCTV. É curioso pensar Morro do Céu como produto do DOCTV, já que a formação de Spolidoro é quase toda da ficção, e, talvez por isso, Morro do Céu, seja um filme praticamente ficcional. É incrível como Spolidoro trabalha no tênue limite entre a ficção e o documental. Ainda que trabalhe registrando o cotidiano de alguns dos moradores do local, em especial um jovem chamado Bruno Storti, Morro do Céu apresenta elementos ficionais na forma como estrutura sua narrativa, e como utiliza habilmente artifícios como uso da trilha sonora, convenções de personagens, paralelismos que são retornados adiante no filme, diálogos que revelam motivações que “levam o filme para frente”, etc. Com isso, Morro do Céu mostra que Spolidoro, talvez pela influência da mostra de cinema que organiza, o CineEsquemaNovo, é um bom leitor do cinema contemporâneo, não só pela forma sutil com que articula a ficção e o documentário, mas essencialmente porque soube absorver a principal lição desse cinema: a sabedoria de saber observar, articulando de maneira orgânica uma geografia física a uma geografia interior. Nesse aspecto é extraordinário o amadurecimento de Spolidoro: enquanto sua filmografia anterior preocupava-se, acima de tudo, com os fetiches do processo de filmagem, em especial os planos-sequência, agora Spolidoro utiliza a sutileza e a sugestão, com planos de câmera parada, um cinema que aponta pouco para si e para o seu processo de construção, ainda que na verdade, se revele de um profundo e complexo processo de elaboração estilística. Essa transformação de uma estética revela no fundo uma transformação de uma possibilidade de ver o mundo. O cinema de Spolidoro quase sempre falou sobre jovens, mas sua “linguagem jovem” era repleta de excessos, atitudes radicais, um humor escrachado, um movimento incessante muitas vezes para lugar nenhum. Mas a diferença é que agora Spolidoro apontava sua câmera para o interior, um canto recôndito, desconhecido e misterioso: agora seria necessário observar, e não apontar de antemão. Morro do Céu é bonito porque é um filme que sabe observar. Observar de forma íntima, delicada, profunda, sugerindo mais do que dizendo. Observar sempre de muito perto mas mantendo uma certa distância, uma distância respeitosa, delicada, eu diria quase oriental. Nunca invadindo uma intimidade, machucando, apontando para o espectador as dificuldades e os dilemas daquele menino, daquela comunidade, mas sempre observando, dialogando, sugerindo. Isso tudo foi possível, porque além de um sentimento pelo mundo, existia uma técnica, que se espelha num modo de realização. Praticamente todo o filme foi feito apenas pelo próprio Gustavo, que, “sozinho”, pôde acompanhar seu tímido protagonista de maneira delicada, deixando-o à vontade. Esse filme foi possível porque Gustavo encontrou uma handycam HD full de enormes possibilidades técnicas e intimistas: uma VIXIA HG-21, que custa cerca de US$1000. Ainda assim, Spolidoro não buscou os maneirismos da câmera digital, mas optou por um certo distanciamento, um certo rigor, baseados na não-intervenção e na opção pela câmera parada.
Mas falando de tudo isso, deixamos de ir ao essencial: quem é Bruno Storti? quais são os seus sonhos, seus desejos, o que lhe afeta? O filme mostra o seu cotidiano entre o final do período de aulas e as férias escolares, até o Carnaval. Spolidoro observa o cotidiano de Bruno: o estudo para as provas, seu trabalho amador como mecânico, seu grupo mais próximo de amigos, a vontade de ter uma namorada. De alguma maneira, Morro do Céu me lembrou de um filme muito íntimo para mim: Kes, o primeiro filme de Ken Loach, que mostra um menino que resiste a ter a vida de seus pais e trabalhar na mina de carvão e que nas horas vagas tenta adestrar um pássaro. Mas em Morro do Céu não se trata disso: é quase como se esse “romance de formação de consciência” fosse composto a partir de uma “decantação” e não de uma “agitação”. O desejo de Bruno está no extracampo, talvez perdido entre as folhagens reveladas nos belos grandes planos gerais do filme, que permitem um respiro adequado a essa reflexão, ou mesmo entre os abandonados caminhos dos trilhos do trem (Suzaku?), que possam levá-los para o além: desejo pela “borboletinha de Cotiporã”, que nunca vemos, nem mesmo no Carnaval, desejo pela fábrica na Itália, que nunca vemos, desejo pelo fora e pelo dentro, desejo por ser outro, desejo por ser si mesmo, desejo tímido, interior, libertário, humano, que revela no fundo que a grande sabedoria de Spolidoro não é escancarar, arrancar de dentro da dramaturgia essas dificuldades, mas simplesmente em respirar de uma maneira muito respeitosa e delicada uma possibilidade de ser.
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