Do Começo ao Fim e A Fita Branca
Do Começo ao Fim, de Aluísio Abranches
A Fita Branca, de Michael Haneke
Do Começo ao Fim não é um bom filme: seu roteiro é por demais frágil, os diálogos são sofríveis. Como já foi explorado em diversos veículos, o filme possui uma estética quase publicitária, evitando os conflitos, enchendo o filme de câmeras lentas e recursos um tanto bregas. O diretor utilizou um tema controverso (um incesto entre dois irmãos) e conseguiu fazer um filme água-com-açúcar sobre o tema.
Mas há algo nesse filme que nos perturba mesmo após a projeção. É que ao falar de um tema tabu (homossexualismo entre dois irmãos), seria de se supor que o filme explorasse a luta desse casal contra a sociedade, que tenta destruir a todo custo a possibilidade desse amor proibido. Mas não. O filme simplesmente blinda o amor perfeito desses dois irmãos do mundo. Por que isso? Seria pela fragilidade desse amor? Seria por que se receia enfrentar cara a cara a opressão do terrível mundo?
O fato é que Do Começo ao Fim foge do mundo, promove um enclausuramento dos dois irmãos num mundo que é só deles: um mundo sem trabalho, sem amigos, que se resume na casa no alto da Gávea. Esse amor perfeito, idealizado, “grego” não pode conviver com o mundo.
Isso faz com que o filme possua algumas cenas de uma ingenuidade comovente. O filme transpira uma total melancolia. Esse amor é tão perfeito, tão delicado, que quase não pode ser vivido. Há sempre a iminência de algo terrível, algo triste, por trás das imagens belas e plácidas. Há uma dor. Há fantasmas, há a sombra da morte, há a distância. Por mais que o pano de fundo seja a Praia de Copacabana, por mais que se encha o filme com câmeras lentas e “música decorativa”, há um sentido de profunda melancolia em Do Começo ao Fim. O filme é todo feito de meias-pausas, silêncios e dor. Nitidamente é um filme profundamente pessoal, como se pode ver nos créditos finais: dedicado “aos meus pais”.
Isso talvez sirva como uma introdução para que estejamos preparados para entender a cena-síntese do filme, de uma beleza esguia: o ritualístico despir dos dois irmãos, quando se entregam definitivamente, logo depois da morte da mãe, e do abandono da casa, agora vazia.
Já A Fita Branca (filme de Michael Haneke, vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2009) é um filme de perfeita realização. É um filme que comprova a maestria de um diretor, na maturidade, no perfeito domínio dos elementos de linguagem. Há curiosamente algo em comum nos dois filmes, pois A Fita Branca examina a origem do mal, que surge, sem que saibamos exatamente como, numa cidadezinha no Norte de Alemanha. Na verdade sabemos sim: o mal surge das estruturas de uma sociedade, surge de forma orgânica, não fruto de uma mente diabólica ou um acaso. É como se houvesse todo um contexto mais amplo que funcionasse como um berço para o despertar do mal. Despertar dos instintos, despertar da inevitabilidade do mal, que é o principal tema da filmografia de Haneke, mas aqui ele quis desafiar os seus críticos: fez um filme austero, sem parafernálias de câmera, sem purpurina. A Fita Branca é seco, descritivo, sem sangue ou exploração da miséria. De outro lado, alça um vôo mais amplo quando claramente percebe-se que o diretor nos diz sobre as origens da Alemanha nazista.
No entanto, por trás da excelência da realização de A Fita Branca e da felicidade em ver Haneke se desprendendo dos cacoetes espalhafatosos para buscar o seu típico cinema, ver A Fita Branca nos causa uma certa frustração. Pois parece um filme de tese, um filme programático: o fato de ter deixado o final em aberto e não amarrar sua narrativa para que saibamos a causa verdadeira dos crimes ou mesmo os culpados não faz do filme uma obra mais aberta, um filme contemporâneo. Não, porque A Fita Branca é cercada pelo “funcionalismo”: apesar de buscar um estilo que quer evitar as conclusões, ele no fundo faz com que tenhamos as mesmas conclusões de sempre. No fundo não há ambigüidades ao examinar o conservadorismo dessa sociedade: a Igreja repressora e a elite latifundiária exploradora e fútil. Os personagens representam uma posição de classe e não possuem uma essência individual própria, uma personalidade. Os planos, a narrativa, funcionam exclusivamente para comprovar um olhar do diretor, do início ao fim, sem mudanças, sem nuances. Tudo caminha num crescendo: o inevitável surgimento do mal numa sociedade conservadora e repressora, de modo que não há vida, não há cinema, não há surpresa que não seja terrivelmente programada.
Mas Haneke é um tremendo diretor. Há uma cena em que a irmã mais velha explica para o menor que uma pessoa morreu, e não voltará mais. Pensar nessa cena nos deixa constrangidos quando comparamos a cena em Do Começo ao Fim em que a mãe pergunta ao filho se está acontecendo algo “que ele não entende muito bem”. Se Abranches quer isolar seus personagens da possibilidade do mal, Haneke quer nos mostrar “por A mais B” como ele aparece, embora se esforçando ao máximo em apagar esses rastros. No fundo, dá na mesma. E por incrível que pareça, ainda que bem menos feliz, a radicalidade da ingenuidade de Do Começo ao Fim é mais perturbadora que os crimes de A Fita Branca.
A Fita Branca, de Michael Haneke
Do Começo ao Fim não é um bom filme: seu roteiro é por demais frágil, os diálogos são sofríveis. Como já foi explorado em diversos veículos, o filme possui uma estética quase publicitária, evitando os conflitos, enchendo o filme de câmeras lentas e recursos um tanto bregas. O diretor utilizou um tema controverso (um incesto entre dois irmãos) e conseguiu fazer um filme água-com-açúcar sobre o tema.
Mas há algo nesse filme que nos perturba mesmo após a projeção. É que ao falar de um tema tabu (homossexualismo entre dois irmãos), seria de se supor que o filme explorasse a luta desse casal contra a sociedade, que tenta destruir a todo custo a possibilidade desse amor proibido. Mas não. O filme simplesmente blinda o amor perfeito desses dois irmãos do mundo. Por que isso? Seria pela fragilidade desse amor? Seria por que se receia enfrentar cara a cara a opressão do terrível mundo?
O fato é que Do Começo ao Fim foge do mundo, promove um enclausuramento dos dois irmãos num mundo que é só deles: um mundo sem trabalho, sem amigos, que se resume na casa no alto da Gávea. Esse amor perfeito, idealizado, “grego” não pode conviver com o mundo.
Isso faz com que o filme possua algumas cenas de uma ingenuidade comovente. O filme transpira uma total melancolia. Esse amor é tão perfeito, tão delicado, que quase não pode ser vivido. Há sempre a iminência de algo terrível, algo triste, por trás das imagens belas e plácidas. Há uma dor. Há fantasmas, há a sombra da morte, há a distância. Por mais que o pano de fundo seja a Praia de Copacabana, por mais que se encha o filme com câmeras lentas e “música decorativa”, há um sentido de profunda melancolia em Do Começo ao Fim. O filme é todo feito de meias-pausas, silêncios e dor. Nitidamente é um filme profundamente pessoal, como se pode ver nos créditos finais: dedicado “aos meus pais”.
Isso talvez sirva como uma introdução para que estejamos preparados para entender a cena-síntese do filme, de uma beleza esguia: o ritualístico despir dos dois irmãos, quando se entregam definitivamente, logo depois da morte da mãe, e do abandono da casa, agora vazia.
Já A Fita Branca (filme de Michael Haneke, vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2009) é um filme de perfeita realização. É um filme que comprova a maestria de um diretor, na maturidade, no perfeito domínio dos elementos de linguagem. Há curiosamente algo em comum nos dois filmes, pois A Fita Branca examina a origem do mal, que surge, sem que saibamos exatamente como, numa cidadezinha no Norte de Alemanha. Na verdade sabemos sim: o mal surge das estruturas de uma sociedade, surge de forma orgânica, não fruto de uma mente diabólica ou um acaso. É como se houvesse todo um contexto mais amplo que funcionasse como um berço para o despertar do mal. Despertar dos instintos, despertar da inevitabilidade do mal, que é o principal tema da filmografia de Haneke, mas aqui ele quis desafiar os seus críticos: fez um filme austero, sem parafernálias de câmera, sem purpurina. A Fita Branca é seco, descritivo, sem sangue ou exploração da miséria. De outro lado, alça um vôo mais amplo quando claramente percebe-se que o diretor nos diz sobre as origens da Alemanha nazista.
No entanto, por trás da excelência da realização de A Fita Branca e da felicidade em ver Haneke se desprendendo dos cacoetes espalhafatosos para buscar o seu típico cinema, ver A Fita Branca nos causa uma certa frustração. Pois parece um filme de tese, um filme programático: o fato de ter deixado o final em aberto e não amarrar sua narrativa para que saibamos a causa verdadeira dos crimes ou mesmo os culpados não faz do filme uma obra mais aberta, um filme contemporâneo. Não, porque A Fita Branca é cercada pelo “funcionalismo”: apesar de buscar um estilo que quer evitar as conclusões, ele no fundo faz com que tenhamos as mesmas conclusões de sempre. No fundo não há ambigüidades ao examinar o conservadorismo dessa sociedade: a Igreja repressora e a elite latifundiária exploradora e fútil. Os personagens representam uma posição de classe e não possuem uma essência individual própria, uma personalidade. Os planos, a narrativa, funcionam exclusivamente para comprovar um olhar do diretor, do início ao fim, sem mudanças, sem nuances. Tudo caminha num crescendo: o inevitável surgimento do mal numa sociedade conservadora e repressora, de modo que não há vida, não há cinema, não há surpresa que não seja terrivelmente programada.
Mas Haneke é um tremendo diretor. Há uma cena em que a irmã mais velha explica para o menor que uma pessoa morreu, e não voltará mais. Pensar nessa cena nos deixa constrangidos quando comparamos a cena em Do Começo ao Fim em que a mãe pergunta ao filho se está acontecendo algo “que ele não entende muito bem”. Se Abranches quer isolar seus personagens da possibilidade do mal, Haneke quer nos mostrar “por A mais B” como ele aparece, embora se esforçando ao máximo em apagar esses rastros. No fundo, dá na mesma. E por incrível que pareça, ainda que bem menos feliz, a radicalidade da ingenuidade de Do Começo ao Fim é mais perturbadora que os crimes de A Fita Branca.
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