Allen e Bergman

Por um acaso, acabei assistindo em seguida dois filmes de veteranos cineastas: Sarabande e Whatever works. Essa coincidência estimula uma comparação entre os dois filmes pelo fato de Allen já ter confessado explicitamente sua enorme admiração pelo cinema de Bergman. Pois bem, para minha surpresa ver Whatever Works logo depois de Sarabande aprofundou meu apreço pelo cinema de Allen, minha sensação de que Allen é um cineasta cada vez mais incompreendido.


 

Sarabande é o último filme de Bergman, rodado em digital com quatro câmeras, um projeto modesto, feito para TV. Um filme coerente, uma experiência com o digital, uma preocupação com o texto maior do que com o filme. Uma estrutura toda montada em dez partes, que se articulam de forma intrincada, em torno de quatro personagens: um antigo casal de idosos – os extraordinários Liv Ullmann e Erland Josephson –, o filho do personagem de Josephson e a filha deste, ou seja, a neta de Josephson (na verdade cinco, pois Anna, a falecida esposa do filho de Josephson é um fantasma que vagueia por todo o filme). Cada uma das partes – com exceção do prólogo e do epílogo, em que Liv Ullmann aparece como uma espécie de narradora – é articulada através de diálogos entre dois dos quatro personagens, como se o filme fosse uma combinação desses pontos de vista, ao mesmo tempo em que joga a narrativa para a frente, em torno das expectativas dessas três gerações (o avô, o filho, a neta). Ullmann – como o prólogo e o epílogo confirmam – é quase uma testemunha desses choques, como se fizesse o papel do espectador, com quem ela fala em algumas partes. Ao mesmo tempo, esse jogo entre as partes em torno de duos refletem a estrutura da forma musical da Sarabanda, remetendo tanto ao movimento da suíte de cello numero 5 de Bach quanto a um momento pontual da narrativa. O filme na verdade é uma espécie de continuação de Cenas de um Casamento, com o mesmo casal de protagonistas décadas depois. A ênfase num cinema psicológico mostrando as dificuldades de relacionamento entre os seres humanos, o tom teatral, a influência dos close ups, fazem de Sarabande um filme com certas marcas nítidas do cinema de Bergman, mas que aqui resvalam num certo academicismo. Um filme correto, uma despedida digna, mas que não possui nada do brilhantismo da carreira de Bergman. De qualquer forma é um privilégio assistirmos a Josephson e Ullmann contracenando juntos mais uma vez, ainda mais dirigidos por um mestre como Bergman, mas "dizer isso dessa forma" já mostra que o filme deve ser visto mais com esse tom de despedida do que ele de fato se propõe a apontar.


 

Whatever Works é mais um novo filme do prolífico Woody Allen, que desde 1969 (ou seja, há quarenta anos!!!) realiza um longa-metragem por ano, o que só não foi feito em 1970, 1974, 1976 e 1981. Ou seja, desde Annie Hall (1977) em que supostamente ele encontrou o "seu estilo", Allen fez religiosamente um filme por ano (o de 1981 pode ser descontado pois em 1987 ele fez dois filmes...rs). Em sua intensa atividade, Allen é portanto quase como seus personagens, que "falam muito", compulsivamente, mas que ainda assim permanecem muito longe de serem compreendidos. Allen possui uma filmografia bastante coerente mas ao mesmo tempo há nítidas mudanças, "fases" de sua filmografia. Seus últimos filmes têm sido associados a uma "fase européia", com uma mise en scene mais sóbria e dramas morais. Mas Whatever Works é um retorno ao cinema desbocado e novaiorquino de Allen. Um retorno em termos, pois é um retorno que avança, sempre para frente. Com isso, quero dizer que o que me fascina é a consciência de Allen em sempre empurrar a sua filmografia para sempre, sua incansável tarefa em "mudar para continuar o mesmo", em abrir mão de determinadas coisas para ser fiel a si mesmo. Em Whatever Works isso é feito de uma forma bastante radical, o que me leva a ver o filme como um dos mais comoventes e pessoais de sua filmografia. Pessoal a ponto de escalar um outro ator para fazer o papel de si mesmo. Vou tentar me explicar melhor. De um lado, Whatever Works é uma refilmagem de Manhattan (ver aqui): a (im)possibilidade de um relacionamento estável entre um homem bem mais velho e uma jovem mulher, a presença da cidade de novaiorque e o papel do acaso e do destino como espelho das fissuras da vida. De outro, o filme é um enorme desabafo, uma direta declaração de princípios, em que Allen (ou melhor, Larry David) fala diretamente para a câmera (como no recurso de Annie Hall) sua frustração com a vida, com o mundo, com a TV ou o cinema, com os Estados Unidos (ver seu início), mas que mostra claramente, por trás desse jeito raivoso e rabugento, uma possibilidade humana de ver a vida. Ou seja, não é rancoroso nem niilista. Gostaríamos que a vida fosse de outra forma, mas ainda assim é possível vivê-la. Ou ainda, por outro lado, um desabafo de Allen de mostrar que "sua fase européia" não significa em absoluto negar o humor de sua fase inicial, mas uma nova forma de dizer o mesmo: Whatever Works não só ratifica o típico cinema de Allen mas radicaliza: é quase uma screwball comedy, com uma mise en scene simples, recheada de diálogos, que nega os supostos traços autorais do cinema de autor em torno de uma estetização da imagem ou uma hiperestilização da decupagem. Essa simplificação é um aprofundamento de um olhar para o cinema e para o mundo, uma forma de se manter coerente a um processo e não mera acomodação. Whatever Works é um filme um tanto amargo, que certamente permanecerá incompreendido, um filme imperfeito e maldito. Mas ainda assim, por trás disso, um bonito libelo a favor da liberdade e da tolerância, contra a paranóia, o pessimismo e a aversão ao estrangeiro e à mudança. O rabugento Boris Yellnikoff tem sua vida mudada por receber uma estranha em casa, o que iria contra a todas as "normas de segurança" da nova América. E o filme confirma que um dos principais temas da filmografia de Allen é o papel do acaso.


 

-Inacreditável. O fator "acaso" na vida é incompreensível. Você entrou no mundo como um evento aleatório, vindo de algum lugar do Mississipi. Eu surgi através da conjunção entre Sam e Yetta Yellnikoff, no Bronx, décadas antes. E através de uma astronômica combinação de circunstâncias, nossos caminhos se cruzam. Dois fugitivos nesse universo vasto, escuro, indescritivelmente violento e indiferente.


 

Mas o que mais nos impressiona em Whatever Works é o desejo de Allen de empurrar sua filmografia para frente: um cineasta único, que não se importa com nada (as firulas do cinema de autor contemporâneo) a não ser fiel a si mesmo, um cineasta na maturidade, cujo paralelo (nesse sentido!!!) só pode ser feito com Manoel de Oliveira. Um desejo de repensar, de se atualizar, de questionar, e ainda assim mantendo-se fiel a tudo o que já fez anteriormente. Um desejo de colocar-se a si mesmo em xeque. Whatever Works não é um filme de despedida, e sim de alguém que se imagina no meio de um processo criativo, em evolução, apenas parcial. Essa postura jovial e instigante entra em choque com o velho academicismo de Bergman, que realiza tipicamente um "filme de despedida", reforçando todos os pontos de sua filmografia. Com isso, não quero ser mal interpretado: não quero dizer que o cineasta precise sempre se reinventar a cada filme. Não esperamos que Ozu, Dreyer ou Naruse se reinventem a cada filme. Não é isso o que quero dizer, e sim que esses cineastas nunca fizeram um filme como um mero prolongamento, como uma sombra do anterior. O correto Sarabande, ao contrário do irregular Whatever Works, é um filme anacrônico, posto que totalmente voltado para o passado, sem nem um espaço que seja para o futuro. E o que me parece mais comovente no filme de Allen é justamente como, sem deixar de refletir profundamente sobre seu passado, se assume como uma instância parcial, um caminho que aponta sempre para as perspectivas de um próximo filme.

Comentários

George Luis disse…
Visito este blog com frequência e diante de um texto como esse não poderia ficar mais em silêncio. Sua escrita flui de maneira espetacular, provando que és cinéfilo e excelente escritor.

p.s.: tbm sou muito fã de Woody Allen!!!!!!!!!!!!!1
Sam disse…
Caro Cinecasulofilia,

Os Óscares de Marketing Cinematográfico, iniciativa que pretende nomear o melhor que se fez em publicidade de Cinema no ano de 2009, estão de regresso ao Keyzer Soze’s Place.

Assim, convido o autor deste blog a expressar a sua opinião em http://sozekeyser.blogspot.com/2010/01/oscares-de-marketing-cinematografico-2.html.

Desde já, apresento o meu profundo agradecimento na sua disponibilidade para participar nesta iniciativa.

Cumprimentos cinéfilos!

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