Invictus
Invictus
de Clint Eastwood
*** ½
Confesso que, ao ver um filme como Invictus, me sinto um pouco constrangido em dizer que tento ser um cineasta. Com isso não quero desmerecer o cinema experimental – cinema pelo qual tenho um profundo apreço, aliás cada vez mais intenso – mas simplesmente que é fascinante como o eterno cinema clássico americano alia técnica, razão, emoção e tesão em alto estilo. Invictus é um filme de maturidade: um produto do espectáculo cinematográfico americano mas ao mesmo tempo um filme absolutamente pessoal e curiosamente audacioso. E é essa “audácia com responsabilidade” o que mais me fascina no filme.
Clint Eastwood se baseia num fato real: a eleição de Nelson Mandela como Presidente da África do Sul e o campeonato da seleção nacional de rugby. Cria um filme de ficção sobre o fato tomando diversas liberdades. Mas essas liberdades são explícitas: o filme não procura simular um documentário na sua estética ou movimentos de câmera (com isso quero apontar para usos considerados “realistas” dos elementos de linguagem por filmes que se propõem examinar processos históricos, como por exemplo a câmera frenética do desembarque da Normandia em O Resgate do Soldado Ryan, ou mesmo em Domingo Sangrento, de Paul Greengrass) (a não ser logo no início do filme quando um material de arquivo em VHS é combinado com cenas ficcionais feitas exclusivamente para esse efeito – quase como em Zelig – mas nesse caso tem como efeito apontar para o espectador a atualidade da questão que o filme toca, devo falar disso no final, e não “borrar” a fronteira entre ambos). Por outro lado, não quer esgarçar o processo histórico a ponto de torná-lo uma caricatura grosseira, apontando para um virtuosismo da escrita cinematográfica, como efeitos gráficos ou jogos narrativos internos, como é o caso de filmes como Bastardos Inglórios, ou mesmo dos brasileiros Cidade de Deus ou Tropa de Elite.
Eastwood não procura fazer nem um nem outro: nem procura emular um documentário nem ser niilista, apontando para o vazio da história. Sua distância dessas duas abordagens se dá por um simples fato: o da busca por um cinema essencialmente ético que reflita sobre o mundo de hoje. A diferença de Eastwood para esses cineastas (Tarantino, Greengrass, Padilha, Meirelles, etc.) ocorre, claro, por uma visão de mundo, mas também na forma como são expostas imagens para o espectador; diferem em relação ao valor que conferem a uma imagem.
Como dizíamos, Invictus fala sobre Mandela e a África do Sul. Fala sobre os desafios de num mesmo país (ou num mesmo “mundo”) dialogarem tendências divergentes, questiona sobre a possibilidade de paz num mundo de diferenças. Curiosamente, sua resposta é positiva: a paz é possível se forem esquecidos os conflitos do passado para se investir num projeto de futuro. (Nisso, se assemelha bastante a Gran Torino). Ou ainda, se o projeto for se fato a aceitação da diferença, e não a supremacia de um grupo de poder sobre outro.
Mas o inusitado (daí a “audácia”) da proposta de Eastwood é investigar isso sobre o ponto de vista de uma seleção de rugby. Para o presidente, a chave de solução dos conflitos da África do Sul surge a partir da vitória da equipe nacional de rugby. Dessa forma, um jogo da seleção passa a ser mais importante que um programa ministerial: o rugby passa a ser uma questão de Estado. Aqui surge um incrível paradoxo que Eastwood resolve como mestre, e daí a singeleza desse filme. O que poderia cair numa comédia escrachada, ridicularizando essa tentativa de unificação, como um processo superficial e popularesco, acaba se revelando um enorme componente indutor de um olhar absolutamente complexo sobre a realidade de um país, sobre a natureza do espetáculo, sobre a política, sobre a natureza humana.
Há uma frase que resume essas intenções. A assessora do presidente o questiona sobre a importância dada ao rugby. Ela afirma que existem questões mais importantes para o país, e num determinado momento ela pergunta se é simplesmente um “cálculo”, uma forma política – eu diria populista – de aumentar sua base de poder. A resposta é genial: ele diz que existe sim um cálculo, mas “um cálculo humano”.
Invictus é sobre a possibilidade de humanização desse “cálculo”, chave de toda a busca do cinema ético de Eastwood, e chave de elucidação de como as imagens são usadas nesse filme para coroar isso.
Invictus é sobre uma conciliação possível. Mandela se torna presidente de um país, presidente dos brancos e dos negros. Ser “presidente dos brancos” não significa no entanto trair suas origens, nem também representa meramente um “acordo com as elites para a governabilidade do país”. O apoio à equipe de rugby não deixa de ser oportunista, mas um “oportunismo” de outra natureza: daí a humanização de seu cálculo. Para ser presidente dos brancos e dos negros, é preciso que os brancos e os negros tenham orgulho de um país. E o modo mais rápido e efetivo de conseguir isso é através do espetáculo.
O espetáculo em torno de um campeonato mundial de rugby é uma das facetas de uma sociedade do espetáculo, em que o cinema americano certamente faz parte disso. A paixão, a habilidade com que Eastwood filma as cenas de jogo é fascinante, porque mostra que esse “velhinho” é absolutamente jovial quando é necessária uma mobilidade da câmera, uma utilização mais presente dos recursos de montagem, dos efeitos sonoros, visuais (câmeras lentas), etc., jogos com a própria confecção, com a tessitura do dia-a-dia do material fílmico, em especial quando se trata de um filme de grande orçamento quanto Invictus.
Mandela sabe jogar conforme as regras do jogo, e essa é a sua enorme sabedoria, este é o seu “cálculo”, dado que esse “jogar” não compromete a verdadeira essência do seu discurso. Ou seja, é bem diferente do “os fins justificam os meios”. Devemos abrir mão do que importa a nível superficial para conquistar o que nos importa a nível das essências.
Num ano em que ambos concorrem ao Oscar, é curioso ver frente a frente Invictus e Bastardos Inglórios, dois filmes totalmente opostos: enquanto Bastardos Inglórios esgarça a imagem, concentra-se em jogos narrativos e distorce a realidade histórica para promover a vingança, a intolerância e o ressentimento, Invictus resgata o cinema clássico para subvertê-lo não nas superfícies dessa imagem, não nos cacoetes estilísticos, mas a partir da busca por um cinema ético que promova os valores da conciliação, do perdão e da tolerância. Uma mensagem pacifista mas sem ser ingênua, sem deixar de apontar que precisa-se abrir mão de algo para conquistar esse diálogo.
É só pensar na diferença entre as sequências de diálogo entre os dois filmes. Enquanto em Bastardos Inglórios, a sequência do oficial nazista com o camponês aponta para a ironia, o sarcasmo, os jogos verbais, os sotaques estilizados, a “verve do falar”, etc., em Invictus a do presidente com o capitão da equipe de rugby aponta para o não-dito, para a profundidade da humanização desse contato. Na primeira, não há diálogo verdadeiro; na segunda, um diálogo profundo, além das palavras.
O pacifismo de Invictus não é ingênuo, não é o pacifismo do “juntos chegaremos lá”. Um dos pontos destacados por Invictus é o da necessidade de não necessariamente satisfazer as expectativas dos seus aliados (amigos) para atingir um objetivo verdadeiro (veja a segurança pessoal do presidente, também composta por brancos, ou ainda lutar para manter as cores do uniforme da equipe de rugby). Ou ainda, Invictus aponta claramente para a solidão do poder, para o fato de que o verdadeiro líder inevitavelmente acaba solitário (é só ver os finais de A Troca e Gran Torino). Eastwood, no meio do espetáculo, faz questão de apontar sequências de transição que mostram caminhadas solitárias do presidentes pelas ruas vazias, ou ainda, o líder dormindo sozinho em sua grande mansão, longe da esposa e da filha. A forma como Eastwood mostra a casa em que o presidente mora é exemplar: quase sempre noturna, vazia, silenciosa, em penumbra, num clima de reflexão e angústia, onde esse grande líder se retira, como se fosse um filme japonês.
Há tantos outros pontos a se destacar no filme, mas o tempo urge e quero concluir com o essencial. Invictus é um filme sobre a política do mundo de hoje. É um filme sobre os Estados Unidos de hoje, e – por que não pensar – um filme sobre o Brasil de hoje: poderíamos pensar Lula e a seleção de futebol, e os “acordos com os brancos para a consolidação do poder”. Invictus é um filme tão complexo que “a situação e a oposição” poderiam chegar a idéias opostas sobre se o filme elogia ou critica a posição do presidente, e estariam em certa medida ao mesmo tempo corretos e equivocados em sua avaliação.
Será que o filme Lula, o Filho do Brasil será tão político quanto o filme de Eastwood?
de Clint Eastwood
*** ½
Confesso que, ao ver um filme como Invictus, me sinto um pouco constrangido em dizer que tento ser um cineasta. Com isso não quero desmerecer o cinema experimental – cinema pelo qual tenho um profundo apreço, aliás cada vez mais intenso – mas simplesmente que é fascinante como o eterno cinema clássico americano alia técnica, razão, emoção e tesão em alto estilo. Invictus é um filme de maturidade: um produto do espectáculo cinematográfico americano mas ao mesmo tempo um filme absolutamente pessoal e curiosamente audacioso. E é essa “audácia com responsabilidade” o que mais me fascina no filme.
Clint Eastwood se baseia num fato real: a eleição de Nelson Mandela como Presidente da África do Sul e o campeonato da seleção nacional de rugby. Cria um filme de ficção sobre o fato tomando diversas liberdades. Mas essas liberdades são explícitas: o filme não procura simular um documentário na sua estética ou movimentos de câmera (com isso quero apontar para usos considerados “realistas” dos elementos de linguagem por filmes que se propõem examinar processos históricos, como por exemplo a câmera frenética do desembarque da Normandia em O Resgate do Soldado Ryan, ou mesmo em Domingo Sangrento, de Paul Greengrass) (a não ser logo no início do filme quando um material de arquivo em VHS é combinado com cenas ficcionais feitas exclusivamente para esse efeito – quase como em Zelig – mas nesse caso tem como efeito apontar para o espectador a atualidade da questão que o filme toca, devo falar disso no final, e não “borrar” a fronteira entre ambos). Por outro lado, não quer esgarçar o processo histórico a ponto de torná-lo uma caricatura grosseira, apontando para um virtuosismo da escrita cinematográfica, como efeitos gráficos ou jogos narrativos internos, como é o caso de filmes como Bastardos Inglórios, ou mesmo dos brasileiros Cidade de Deus ou Tropa de Elite.
Eastwood não procura fazer nem um nem outro: nem procura emular um documentário nem ser niilista, apontando para o vazio da história. Sua distância dessas duas abordagens se dá por um simples fato: o da busca por um cinema essencialmente ético que reflita sobre o mundo de hoje. A diferença de Eastwood para esses cineastas (Tarantino, Greengrass, Padilha, Meirelles, etc.) ocorre, claro, por uma visão de mundo, mas também na forma como são expostas imagens para o espectador; diferem em relação ao valor que conferem a uma imagem.
Como dizíamos, Invictus fala sobre Mandela e a África do Sul. Fala sobre os desafios de num mesmo país (ou num mesmo “mundo”) dialogarem tendências divergentes, questiona sobre a possibilidade de paz num mundo de diferenças. Curiosamente, sua resposta é positiva: a paz é possível se forem esquecidos os conflitos do passado para se investir num projeto de futuro. (Nisso, se assemelha bastante a Gran Torino). Ou ainda, se o projeto for se fato a aceitação da diferença, e não a supremacia de um grupo de poder sobre outro.
Mas o inusitado (daí a “audácia”) da proposta de Eastwood é investigar isso sobre o ponto de vista de uma seleção de rugby. Para o presidente, a chave de solução dos conflitos da África do Sul surge a partir da vitória da equipe nacional de rugby. Dessa forma, um jogo da seleção passa a ser mais importante que um programa ministerial: o rugby passa a ser uma questão de Estado. Aqui surge um incrível paradoxo que Eastwood resolve como mestre, e daí a singeleza desse filme. O que poderia cair numa comédia escrachada, ridicularizando essa tentativa de unificação, como um processo superficial e popularesco, acaba se revelando um enorme componente indutor de um olhar absolutamente complexo sobre a realidade de um país, sobre a natureza do espetáculo, sobre a política, sobre a natureza humana.
Há uma frase que resume essas intenções. A assessora do presidente o questiona sobre a importância dada ao rugby. Ela afirma que existem questões mais importantes para o país, e num determinado momento ela pergunta se é simplesmente um “cálculo”, uma forma política – eu diria populista – de aumentar sua base de poder. A resposta é genial: ele diz que existe sim um cálculo, mas “um cálculo humano”.
Invictus é sobre a possibilidade de humanização desse “cálculo”, chave de toda a busca do cinema ético de Eastwood, e chave de elucidação de como as imagens são usadas nesse filme para coroar isso.
Invictus é sobre uma conciliação possível. Mandela se torna presidente de um país, presidente dos brancos e dos negros. Ser “presidente dos brancos” não significa no entanto trair suas origens, nem também representa meramente um “acordo com as elites para a governabilidade do país”. O apoio à equipe de rugby não deixa de ser oportunista, mas um “oportunismo” de outra natureza: daí a humanização de seu cálculo. Para ser presidente dos brancos e dos negros, é preciso que os brancos e os negros tenham orgulho de um país. E o modo mais rápido e efetivo de conseguir isso é através do espetáculo.
O espetáculo em torno de um campeonato mundial de rugby é uma das facetas de uma sociedade do espetáculo, em que o cinema americano certamente faz parte disso. A paixão, a habilidade com que Eastwood filma as cenas de jogo é fascinante, porque mostra que esse “velhinho” é absolutamente jovial quando é necessária uma mobilidade da câmera, uma utilização mais presente dos recursos de montagem, dos efeitos sonoros, visuais (câmeras lentas), etc., jogos com a própria confecção, com a tessitura do dia-a-dia do material fílmico, em especial quando se trata de um filme de grande orçamento quanto Invictus.
Mandela sabe jogar conforme as regras do jogo, e essa é a sua enorme sabedoria, este é o seu “cálculo”, dado que esse “jogar” não compromete a verdadeira essência do seu discurso. Ou seja, é bem diferente do “os fins justificam os meios”. Devemos abrir mão do que importa a nível superficial para conquistar o que nos importa a nível das essências.
Num ano em que ambos concorrem ao Oscar, é curioso ver frente a frente Invictus e Bastardos Inglórios, dois filmes totalmente opostos: enquanto Bastardos Inglórios esgarça a imagem, concentra-se em jogos narrativos e distorce a realidade histórica para promover a vingança, a intolerância e o ressentimento, Invictus resgata o cinema clássico para subvertê-lo não nas superfícies dessa imagem, não nos cacoetes estilísticos, mas a partir da busca por um cinema ético que promova os valores da conciliação, do perdão e da tolerância. Uma mensagem pacifista mas sem ser ingênua, sem deixar de apontar que precisa-se abrir mão de algo para conquistar esse diálogo.
É só pensar na diferença entre as sequências de diálogo entre os dois filmes. Enquanto em Bastardos Inglórios, a sequência do oficial nazista com o camponês aponta para a ironia, o sarcasmo, os jogos verbais, os sotaques estilizados, a “verve do falar”, etc., em Invictus a do presidente com o capitão da equipe de rugby aponta para o não-dito, para a profundidade da humanização desse contato. Na primeira, não há diálogo verdadeiro; na segunda, um diálogo profundo, além das palavras.
O pacifismo de Invictus não é ingênuo, não é o pacifismo do “juntos chegaremos lá”. Um dos pontos destacados por Invictus é o da necessidade de não necessariamente satisfazer as expectativas dos seus aliados (amigos) para atingir um objetivo verdadeiro (veja a segurança pessoal do presidente, também composta por brancos, ou ainda lutar para manter as cores do uniforme da equipe de rugby). Ou ainda, Invictus aponta claramente para a solidão do poder, para o fato de que o verdadeiro líder inevitavelmente acaba solitário (é só ver os finais de A Troca e Gran Torino). Eastwood, no meio do espetáculo, faz questão de apontar sequências de transição que mostram caminhadas solitárias do presidentes pelas ruas vazias, ou ainda, o líder dormindo sozinho em sua grande mansão, longe da esposa e da filha. A forma como Eastwood mostra a casa em que o presidente mora é exemplar: quase sempre noturna, vazia, silenciosa, em penumbra, num clima de reflexão e angústia, onde esse grande líder se retira, como se fosse um filme japonês.
Há tantos outros pontos a se destacar no filme, mas o tempo urge e quero concluir com o essencial. Invictus é um filme sobre a política do mundo de hoje. É um filme sobre os Estados Unidos de hoje, e – por que não pensar – um filme sobre o Brasil de hoje: poderíamos pensar Lula e a seleção de futebol, e os “acordos com os brancos para a consolidação do poder”. Invictus é um filme tão complexo que “a situação e a oposição” poderiam chegar a idéias opostas sobre se o filme elogia ou critica a posição do presidente, e estariam em certa medida ao mesmo tempo corretos e equivocados em sua avaliação.
Será que o filme Lula, o Filho do Brasil será tão político quanto o filme de Eastwood?
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