(FestRio) 35 rhums

35 Doses de Rum
de Claire Denis
** ½

Alguns podem até achar de que se trata de um filme menor da francesa Claire Denis, e, de fato, este 35 Doses de Rum é bem menos ambicioso que outros filmes como Bom Trabalho ou A Intrusa. Mas um dos encantos desse singelo filme é exatamente o de ser um filme menor, como, à sua maneira, o irresistível Sexta à noite também o era. Nesse filme íntimo, Claire Denis observa de forma prosaica a vida de uma família negra de classe média baixa que vive no subúrbio de Paris. A delicadeza, a generosidade, o olhar para essa família simples sem preconceitos pré-determinados sobre questões essencialmente étnicas ou sociais, marcam a beleza desse filme, diferentemente, por exemplo, do discurso panfletário dos últimos filmes de um Ken Loach. A possibilidade de olhar para essa família de uma forma humana, doce, enfim, com uma generosidade, é o que afirma o humanismo do olhar de Claire Denis. Os personagens não são meros joguetes representativos de sua condição étnica ou social, que irrompe para o primeiro plano, como se sua existência na dramaturgia se justificasse apenas como exemplos de um discurso: ao contrário, somos convidados a respirar e a existir junto com esses personagens, em suas pequenas dores e alegrias.

Nisso, sim, afirmo – tema que vem sendo explorado em praticamente todos os textos sobre este filme – que 35 Doses de Rum não deixa de ser uma homenagem, ainda que singela, ao cinema de Ozu. Esta homenagem não precisa ser feita através de câmeras baixas ou de lentes 50mm (os recursos estéticos mais conhecidos do diretor japonês), ou mesmo a partir de uma simetria formal calcada em planos estáticos: nesses aspectos o filme de Claire Denis é bem diferente dos filmes de Ozu. No entanto, assim como Hou fez em Café Lumière, a sabedoria de Denis é dialogar explicitamente com Ozu mas modelar esse diálogo segundo a vida desses personagens, e ser fiel a uma estética particular, a um certo rigor pessoal na forma de olhar para esse universo. É nesse espelho ético a grande contribuição do olhar de Denis.

Há alguns gracejos e referências explícitas, especialmente ao filme Pai e Filha, que Ozu refilmou de diversas formas ao longo de sua filmografia. Uma delas é o fato de o pai presentear a filha com uma panela de fazer arroz tipicamente japonesa: uma referência bela, poética, e que ao mesmo tempo não deixa de falar sobre o atual fenômeno da globalização. Mas o diálogo com Ozu é mais íntimo e não se resume aos gracejos superficiais, às referências de objetos ou às referencialidades para os olhares atentos dos cinéfilos. Pois se Denis assim o fizesse ela estaria traindo exatamente o olhar genuíno de Ozu.

Pois 35 Doses de Rum, acima de tudo, é um filme de Denis, um filme sobre os corpos na chuva que buscam um abrigo contra a tempestade, e encontram compreensão, um filme sobre a condição feminina, um filme sobre ser estrangeiro num país outro, um filme sobre uma mudança de casa, sobre o sentido de estar em casa, um filme sobre a condição humana, sobre a terrível necessidade de estar junto, sobre o desejo pelo afeto. Filme menor, filme humano de um sopro generoso, um respiro vital e necessário. Quero revê-lo mas tenho a impressão de que 35 Doses de Rum é um filme subestimado, pela sua falsa simplicidade.

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