Os deuses e os mortos
Os deuses e os mortos
De Ruy Guerra
MAM dom 05 abr 18hs
*
Ainda que não se trate necessariamente de um bom filme, ver Os deuses e os mortos é uma experiência bastante interessante para se pensar os caminhos trilhados pelo cinema novo, após o seu ápice em meados dos anos sessenta. De 1970, esse pouco visto filme de Ruy Guerra é exemplar da chamada terceira fase do cinema novo, conforme a classificação de Bernardet, típico da chamada "fase alegórica". Em sua estética ligada ao barroco e ao excesso, o filme nitidamente se filia à estética glauberiana, mas com um elemento particular: a forma curiosa como o filme mescla uma beleza plástica com uma busca pelo repulsivo (sangue, lama), como se fizesse uma radiografia das contradições das entranhas de um Brasil. Seu vigor formal é também claramente visto através de uma narrativa em que na maior parte das vezes, o espectador se localiza apenas a posteriori, e acompanhando um personagem ambíguo (representado de forma brilhante por Othon Bastos) em que o espectador fica a meio caminho de se identificar e se afastar, aliás como todo o filme. Sua narrativa é também bastante singular, mas ao mesmo típica do cinema novo e dos movimentos glauberianos: após conseguir sobreviver a uma chacina, um homem jura vingança, destronando o dono de uma grande fazenda cacaueira da região, e assumindo o poder local. O filme assume uma perspectiva humanista apenas no final, quando esse homem descobre que esse poder é vazio e oco, assim como sua sede de vingança. Em paralelo, há um olhar sobre as entranhas da aristocracia cacaueira no nordeste brasileiro. A partir de uma eterna briga entre dois grupos, as dissidências e o desejo por vingança provocaram a decadência econômica e social dessa oligarquia, suplantada pelos grupos estrangeiros. Ou seja, um olhar sobre o domínio do capitalismo internacional sobre o atraso do regime familiar das oligarquias latifundiárias brasileiras.
O que mais impressiona no filme é sem dúvida o trabalho de câmera de Dib Lutfi, que transforma cada plano num verdadeiro tour de force. Na sua conhecida câmera na mão, Dib faz movimentos incríveis acompanhando diversos personagens que se cruzam, e ainda com oscilação de foco e mudança de diafragma, trabalhando com diferentes profundidades de campo e de abertura (por exemplo, a câmera entra numa casa e precisa-se abrir o diafragma, ou vice-versa). Além de enorme dificuldade técnica, e da clara marcação para que esse desenho funcione, a câmera emprega ao filme um vigor surpreendente, até porque em geral é feita com longos planos-sequência. Exemplo é a extraordinária cena em que Othon Bastos convence Nelson Xavier a enfrentar os inimigos de sua família.
Por outro lado, Os Deuses e os Mortos já antecipa uma tendência do cinema de Ruy Guerra, aprofundada em alguns filmes posteriores: a tendência ao formalismo, em que ao invés de revelar um olhar coerente e coeso, a abundância dos recursos de linguagem aponta mais para si mesma do que para a dramaturgia do filme, prejudicando a organicidade do filme em prol de um virtuosismo quase sempre irregular. De outro lado, e ainda mais fortemente, o filme parece um pastiche dos filmes de Glauber, um mistura de Deus e o Diabo com Terra em Transe, mas sem o talento dos originais. Aponta, com isso, para um certo esgotamento das fórmulas do cinema novo, ligadas a uma estética do delírio e ao mundo rural.
De Ruy Guerra
MAM dom 05 abr 18hs
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Ainda que não se trate necessariamente de um bom filme, ver Os deuses e os mortos é uma experiência bastante interessante para se pensar os caminhos trilhados pelo cinema novo, após o seu ápice em meados dos anos sessenta. De 1970, esse pouco visto filme de Ruy Guerra é exemplar da chamada terceira fase do cinema novo, conforme a classificação de Bernardet, típico da chamada "fase alegórica". Em sua estética ligada ao barroco e ao excesso, o filme nitidamente se filia à estética glauberiana, mas com um elemento particular: a forma curiosa como o filme mescla uma beleza plástica com uma busca pelo repulsivo (sangue, lama), como se fizesse uma radiografia das contradições das entranhas de um Brasil. Seu vigor formal é também claramente visto através de uma narrativa em que na maior parte das vezes, o espectador se localiza apenas a posteriori, e acompanhando um personagem ambíguo (representado de forma brilhante por Othon Bastos) em que o espectador fica a meio caminho de se identificar e se afastar, aliás como todo o filme. Sua narrativa é também bastante singular, mas ao mesmo típica do cinema novo e dos movimentos glauberianos: após conseguir sobreviver a uma chacina, um homem jura vingança, destronando o dono de uma grande fazenda cacaueira da região, e assumindo o poder local. O filme assume uma perspectiva humanista apenas no final, quando esse homem descobre que esse poder é vazio e oco, assim como sua sede de vingança. Em paralelo, há um olhar sobre as entranhas da aristocracia cacaueira no nordeste brasileiro. A partir de uma eterna briga entre dois grupos, as dissidências e o desejo por vingança provocaram a decadência econômica e social dessa oligarquia, suplantada pelos grupos estrangeiros. Ou seja, um olhar sobre o domínio do capitalismo internacional sobre o atraso do regime familiar das oligarquias latifundiárias brasileiras.
O que mais impressiona no filme é sem dúvida o trabalho de câmera de Dib Lutfi, que transforma cada plano num verdadeiro tour de force. Na sua conhecida câmera na mão, Dib faz movimentos incríveis acompanhando diversos personagens que se cruzam, e ainda com oscilação de foco e mudança de diafragma, trabalhando com diferentes profundidades de campo e de abertura (por exemplo, a câmera entra numa casa e precisa-se abrir o diafragma, ou vice-versa). Além de enorme dificuldade técnica, e da clara marcação para que esse desenho funcione, a câmera emprega ao filme um vigor surpreendente, até porque em geral é feita com longos planos-sequência. Exemplo é a extraordinária cena em que Othon Bastos convence Nelson Xavier a enfrentar os inimigos de sua família.
Por outro lado, Os Deuses e os Mortos já antecipa uma tendência do cinema de Ruy Guerra, aprofundada em alguns filmes posteriores: a tendência ao formalismo, em que ao invés de revelar um olhar coerente e coeso, a abundância dos recursos de linguagem aponta mais para si mesma do que para a dramaturgia do filme, prejudicando a organicidade do filme em prol de um virtuosismo quase sempre irregular. De outro lado, e ainda mais fortemente, o filme parece um pastiche dos filmes de Glauber, um mistura de Deus e o Diabo com Terra em Transe, mas sem o talento dos originais. Aponta, com isso, para um certo esgotamento das fórmulas do cinema novo, ligadas a uma estética do delírio e ao mundo rural.
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