AVE CHANTAL AKERMAN (I)
Chantal Akerman: características gerais
Apesar de belga, é mais conveniente situar a carreira de Chantal Akerman em meio ao período imediatamente pós-nouvelle vague francesa, no início dos anos setenta. Desse modo, Akerman não chega a ser “uma geração mais velha” mas ao mesmo tempo não é exatamente contemporânea de Godard, Truffaut e os demais diretores ligados diretamente ou indiretamente à nouvelle vague, que surgiram no final dos anos cinquenta ou início dos anos sessenta. Cerca de dez anos mais tarde, houve na França o surgimento de alguns cineastas que radicalizaram as propostas estéticas apontadas pela nouvelle vague. Essa radicalização faz com que esses cineastas não mais possam ser vistos como um “grupo”, como um “movimento” mas quase que exclusivamente a partir de suas propostas singulares de cinema. Herdeiros indiretos do principal movimento francês, no entanto optam por um caminho mais singular, mais radical, afastando-se de um diálogo mais amplo com o público e com o “cinema de arte” europeu, para aprofundar um trabalho estético em relação ao tempo e à espacialidade. Além de Akerman, os outros dois diretores franceses de mais destaque nesse período são Jean Eustache e Philippe Garrel. Ou seja, entre os três, as semelhanças estão mais em que tipo de caminho seguir (uma estrada de terra que leva aos confins de um mundo misterioso) do que essencialmente seguir um caminho específico (cada um seguiu por uma trilha diferente). Mas todos levaram o cinema para recantos poucos explorados, desconhecidos, misteriosos, e os poucos aventureiros que tiveram fôlego para os visitarem saíram modificados, surpreendidos.
Os primeiros filmes de Chantal Akerman estão diretamente ligados ao cinema experimental. Passando uma longa temporada nos Estados Unidos, Akerman foi profundamente influenciada pela vanguarda experimental norte-americana de meados dos anos sessenta, especialmente o cinema estruturalista de Michael Snow. Se o anárquico SAUTE MA VILLE, seu primeiro curta, refletia mais propriamente a efervescência e a ousadia juvenil da França dos anos sessenta, em LA CHAMBRE, Akerman se mostrava devota ao cinema de Snow, através de uma longa panorâmica circular em torno do quarto, onde por vezes víamos, deitada na cama, uma mulher numa posição provocante, quase como uma versão de Olympia de Manet. La Chambre apresenta diversos temas futuros da filmografia de Chantal, pois, se por um lado, é nítida a influência estruturalista do cinema de Snow através do rigor das panorâmicas, da opção pelo cinema não-narrativo e pelo rigor da composição de espaço (especialmente o fora-da-tela), por outro já despontam temas presentes em toda a filmografia posterior de Chantal: a solidão feminina, o apreço pelos interiores e pela autobiografia, o rigor da câmera e os planos alongados, etc.
O primeiro longa de Chantal Akerman, HOTEL MONTEREY, prolonga os experimentos estéticos do início de sua filmografia, sendo o ápice de sua ventente estruturalista. Nesse filme de pouco mais de sessenta minutos, Chantal faz uma radiografia de um hotel barato nos Estados Unidos, de forma absolutamente singular, pois está pouco interessada pelo seu modo de funcionamento, em seus visitantes, etc. O Hotel Monterey é filmado com uma estética rigorosa, como se quisesse radiografar suas vísceras, a partir de um olhar radical em relação a seu espaço físico – quartos, corredores, elevadores, halls –, como se nada mais existisse nesse hotel a não ser a sua materialidade física. E a partir de um olhar radical para esse espaço físico, Chantal nos faz interrogar sobre o vazio desses corredores, sobre a incrustação das memórias nessas paredes descascadas ou de cores ocres, instala uma aura de mistério, poesia e espiritualidade (o que se esconde por trás das paredes do Hotel Monterey?), a partir dos mais básicos recursos da linguagem cinematográfica. Vazio e transcendência que são intensificados pelo enorme silêncio das imagens, já que o filme é totalmente mudo, inclusive som ambiente. Até chegar a um final surpreendente, em que consegue se libertar das paredes claustrofóbicas e fantasmagóricas desse hotel para respirar uma enorme lufada de ar fresco, ao retratar o terraço do hotel com enorme poesia, quando afinal vemos a vida lá fora que se segue.
Seu segundo longa-metragem – EU TU ELE ELA – é um trabalho absolutamente complementar a Hotel Monterey, apresentando uma outra faceta de sua filmografia: a autobiografia, a solidão feminina, o trabalho com o corpo. Ao mesmo tempo, apresenta um rigor particular e uma narrativa fissurada que permitem uma espécie de elo distante aos filmes mais estruturalistas. Eu Tu Ele Ela é um filme de três movimentos: no primeiro, a própria Chantal Akerman está em sua casa, tentando arrumar as coisas e conviver com sua solidão; no segundo, pega uma carona com um caminhoneiro na estrada, que lhe fala de suas experiências sexuais; no terceiro, Chantal se encontra com uma amante. Esses três movimentos revelam-se ao final um único movimento: um movimento de encontro, em direção ao outro, em sair da solidão claustrofóbica dessa casa e pegar uma estrada (ouvir) e ir em direção a quem se ama, mesmo que seja por uma só noite. A possibilidade do encontro – ainda que provisória – é tão importante quanto a possibilidade de partir, de romper o casulo – a casa sombria que já aparecia em Saute Ma Ville e em La Chambre e em alguma medida mesmo no Hotel Monterey. Três movimentos distintos que fazem parte de um único movimento: o primeiro, o lirismo e o rigor de Chantal Akerman se despindo (para si e para nós), diante do interior de si e de sua própria casa (um espaço físico que se revela um espaço íntimo. No segundo, entra um elemento raro, até certo ponto atípico do cinema de Chantal até então: a palavra, através do quase-monólogo desse caminhoneiro, que ao mesmo tempo despeja sua solidão e sua carência afetiva em sua “eterna viagem”. Mas ao contrário do caminhoneiro, a viagem de Chantal tem um destino (a terceira parte): a casa do outro. É aqui em que Chantal faz um final em que deixa clara a sua opção radical e irreversível (de vida e de cinema): despe-se de corpo e alma e faz amor com sua amante, com outra mulher. Nesse longo plano-sequência que acompanha as duas mulheres despidas, é a própria Chantal quem ali está, aliás como estava em todo o filme, celebrando a possibilidade de amar, de entregar-se ao amor. Um trabalho de exposição corajoso e extremamente poético.
Mas a excelência de todos esses trabalhos surge como uma espécie de preparação para a sua grande obra-prima: JEANNE DIELMAN, 23 QUAI DU COMMERCE, 1080 BRUXELLES. É um trabalho mais ambicioso que seus filmes anteriores, seja pela duração de 200 minutos, seja por conseguir o apoio de ninguém menos que Delphine Seyrig para o papel principal. O filme descreve o cotidiano de uma mãe, que vive em função de seu filho e das rotinas banais da casa (fazer o café, arrumar as coisas, fazer compras, etc.). A influência de seus filmes estruturalistas pode ser nitidamente observada por um rigor extremo na composição do enquadramento e na dilatação dos tempos, conferindo ao filme o que a autora Ivone Margulies chamou de um “hiperrealismo”: atos como “fazer o café”, “arrumar uma mesa”, ou mesmo “jantar” não são apresentados como “atos de transição até que cheguem os tempos fortes” como no habitual cinema clássico, pois esses atos é que são os tempos fortes, ou ainda, não existem tempos fortes ou fracos, existe apenas o tempo. Ao descrever de forma precisa e marcada todos esses pequenos gestos e tempos como se fosse um autêntico balé, Chantal consegue tornar essa rotina algo transcendente e ao mesmo tempo provocar no espectador uma enorme consciência da solidão dessa mulher. O filme atinge isso sem se utilizar de nenhum efeito psicológico padrão (motivações, relações causa-efeito, etc.): a personagem permanece opaca para o espectador, inclusive até o surpreendente ato final, que soa desequilibrado de todo o filme (um desequilíbrio salutar pois nos desequilibra, pois quebra sua organicidade para algo além de sua mera coerência interna, ou seja, é como se Akerman ali rompesse o cordão umbilical de sua influência estruturalista como papel determinista na sua filmografia). A câmera é imóvel, o enquadramento, em geral, frontal: a partir dos recursos considerados mais elementares da gramática cinematográfica, Chantal constrói um universo de grande complexidade sobre o imaginário feminino, ousado, rigoroso, surpreendente.
(esse texto continua)
Apesar de belga, é mais conveniente situar a carreira de Chantal Akerman em meio ao período imediatamente pós-nouvelle vague francesa, no início dos anos setenta. Desse modo, Akerman não chega a ser “uma geração mais velha” mas ao mesmo tempo não é exatamente contemporânea de Godard, Truffaut e os demais diretores ligados diretamente ou indiretamente à nouvelle vague, que surgiram no final dos anos cinquenta ou início dos anos sessenta. Cerca de dez anos mais tarde, houve na França o surgimento de alguns cineastas que radicalizaram as propostas estéticas apontadas pela nouvelle vague. Essa radicalização faz com que esses cineastas não mais possam ser vistos como um “grupo”, como um “movimento” mas quase que exclusivamente a partir de suas propostas singulares de cinema. Herdeiros indiretos do principal movimento francês, no entanto optam por um caminho mais singular, mais radical, afastando-se de um diálogo mais amplo com o público e com o “cinema de arte” europeu, para aprofundar um trabalho estético em relação ao tempo e à espacialidade. Além de Akerman, os outros dois diretores franceses de mais destaque nesse período são Jean Eustache e Philippe Garrel. Ou seja, entre os três, as semelhanças estão mais em que tipo de caminho seguir (uma estrada de terra que leva aos confins de um mundo misterioso) do que essencialmente seguir um caminho específico (cada um seguiu por uma trilha diferente). Mas todos levaram o cinema para recantos poucos explorados, desconhecidos, misteriosos, e os poucos aventureiros que tiveram fôlego para os visitarem saíram modificados, surpreendidos.
Os primeiros filmes de Chantal Akerman estão diretamente ligados ao cinema experimental. Passando uma longa temporada nos Estados Unidos, Akerman foi profundamente influenciada pela vanguarda experimental norte-americana de meados dos anos sessenta, especialmente o cinema estruturalista de Michael Snow. Se o anárquico SAUTE MA VILLE, seu primeiro curta, refletia mais propriamente a efervescência e a ousadia juvenil da França dos anos sessenta, em LA CHAMBRE, Akerman se mostrava devota ao cinema de Snow, através de uma longa panorâmica circular em torno do quarto, onde por vezes víamos, deitada na cama, uma mulher numa posição provocante, quase como uma versão de Olympia de Manet. La Chambre apresenta diversos temas futuros da filmografia de Chantal, pois, se por um lado, é nítida a influência estruturalista do cinema de Snow através do rigor das panorâmicas, da opção pelo cinema não-narrativo e pelo rigor da composição de espaço (especialmente o fora-da-tela), por outro já despontam temas presentes em toda a filmografia posterior de Chantal: a solidão feminina, o apreço pelos interiores e pela autobiografia, o rigor da câmera e os planos alongados, etc.
O primeiro longa de Chantal Akerman, HOTEL MONTEREY, prolonga os experimentos estéticos do início de sua filmografia, sendo o ápice de sua ventente estruturalista. Nesse filme de pouco mais de sessenta minutos, Chantal faz uma radiografia de um hotel barato nos Estados Unidos, de forma absolutamente singular, pois está pouco interessada pelo seu modo de funcionamento, em seus visitantes, etc. O Hotel Monterey é filmado com uma estética rigorosa, como se quisesse radiografar suas vísceras, a partir de um olhar radical em relação a seu espaço físico – quartos, corredores, elevadores, halls –, como se nada mais existisse nesse hotel a não ser a sua materialidade física. E a partir de um olhar radical para esse espaço físico, Chantal nos faz interrogar sobre o vazio desses corredores, sobre a incrustação das memórias nessas paredes descascadas ou de cores ocres, instala uma aura de mistério, poesia e espiritualidade (o que se esconde por trás das paredes do Hotel Monterey?), a partir dos mais básicos recursos da linguagem cinematográfica. Vazio e transcendência que são intensificados pelo enorme silêncio das imagens, já que o filme é totalmente mudo, inclusive som ambiente. Até chegar a um final surpreendente, em que consegue se libertar das paredes claustrofóbicas e fantasmagóricas desse hotel para respirar uma enorme lufada de ar fresco, ao retratar o terraço do hotel com enorme poesia, quando afinal vemos a vida lá fora que se segue.
Seu segundo longa-metragem – EU TU ELE ELA – é um trabalho absolutamente complementar a Hotel Monterey, apresentando uma outra faceta de sua filmografia: a autobiografia, a solidão feminina, o trabalho com o corpo. Ao mesmo tempo, apresenta um rigor particular e uma narrativa fissurada que permitem uma espécie de elo distante aos filmes mais estruturalistas. Eu Tu Ele Ela é um filme de três movimentos: no primeiro, a própria Chantal Akerman está em sua casa, tentando arrumar as coisas e conviver com sua solidão; no segundo, pega uma carona com um caminhoneiro na estrada, que lhe fala de suas experiências sexuais; no terceiro, Chantal se encontra com uma amante. Esses três movimentos revelam-se ao final um único movimento: um movimento de encontro, em direção ao outro, em sair da solidão claustrofóbica dessa casa e pegar uma estrada (ouvir) e ir em direção a quem se ama, mesmo que seja por uma só noite. A possibilidade do encontro – ainda que provisória – é tão importante quanto a possibilidade de partir, de romper o casulo – a casa sombria que já aparecia em Saute Ma Ville e em La Chambre e em alguma medida mesmo no Hotel Monterey. Três movimentos distintos que fazem parte de um único movimento: o primeiro, o lirismo e o rigor de Chantal Akerman se despindo (para si e para nós), diante do interior de si e de sua própria casa (um espaço físico que se revela um espaço íntimo. No segundo, entra um elemento raro, até certo ponto atípico do cinema de Chantal até então: a palavra, através do quase-monólogo desse caminhoneiro, que ao mesmo tempo despeja sua solidão e sua carência afetiva em sua “eterna viagem”. Mas ao contrário do caminhoneiro, a viagem de Chantal tem um destino (a terceira parte): a casa do outro. É aqui em que Chantal faz um final em que deixa clara a sua opção radical e irreversível (de vida e de cinema): despe-se de corpo e alma e faz amor com sua amante, com outra mulher. Nesse longo plano-sequência que acompanha as duas mulheres despidas, é a própria Chantal quem ali está, aliás como estava em todo o filme, celebrando a possibilidade de amar, de entregar-se ao amor. Um trabalho de exposição corajoso e extremamente poético.
Mas a excelência de todos esses trabalhos surge como uma espécie de preparação para a sua grande obra-prima: JEANNE DIELMAN, 23 QUAI DU COMMERCE, 1080 BRUXELLES. É um trabalho mais ambicioso que seus filmes anteriores, seja pela duração de 200 minutos, seja por conseguir o apoio de ninguém menos que Delphine Seyrig para o papel principal. O filme descreve o cotidiano de uma mãe, que vive em função de seu filho e das rotinas banais da casa (fazer o café, arrumar as coisas, fazer compras, etc.). A influência de seus filmes estruturalistas pode ser nitidamente observada por um rigor extremo na composição do enquadramento e na dilatação dos tempos, conferindo ao filme o que a autora Ivone Margulies chamou de um “hiperrealismo”: atos como “fazer o café”, “arrumar uma mesa”, ou mesmo “jantar” não são apresentados como “atos de transição até que cheguem os tempos fortes” como no habitual cinema clássico, pois esses atos é que são os tempos fortes, ou ainda, não existem tempos fortes ou fracos, existe apenas o tempo. Ao descrever de forma precisa e marcada todos esses pequenos gestos e tempos como se fosse um autêntico balé, Chantal consegue tornar essa rotina algo transcendente e ao mesmo tempo provocar no espectador uma enorme consciência da solidão dessa mulher. O filme atinge isso sem se utilizar de nenhum efeito psicológico padrão (motivações, relações causa-efeito, etc.): a personagem permanece opaca para o espectador, inclusive até o surpreendente ato final, que soa desequilibrado de todo o filme (um desequilíbrio salutar pois nos desequilibra, pois quebra sua organicidade para algo além de sua mera coerência interna, ou seja, é como se Akerman ali rompesse o cordão umbilical de sua influência estruturalista como papel determinista na sua filmografia). A câmera é imóvel, o enquadramento, em geral, frontal: a partir dos recursos considerados mais elementares da gramática cinematográfica, Chantal constrói um universo de grande complexidade sobre o imaginário feminino, ousado, rigoroso, surpreendente.
(esse texto continua)
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