Caros esparsos leitores desse blog,
Minha vida está muito corrida neste fim de ano, então infelizmente tem me restado pouco tempo para ver e pensar cinema. De volta de uma viagem à Madri (e Barcelona), pelo menos passei para DVD as 10 fitas MiniDV que gravei durante minha estada, e vi parte desse material. Estou pensando (na verdade já havia decidido enquanto gravava essas imagens) em fazer algo bem diferente do que venho fazendo, se bem que os que me conhecem sabem que no fundo não será nada radicalmente diferente, pois para mim pequenas mudanças são grandes movimentos, difíceis e estudados com muita atenção. Cada vez mais vem me incomodando esse sentido de beleza que o filme, a obra de arte deve ter (e novamente dá-lhe Jonas Mekas!). A beleza deve ser outra, claro, a beleza da verdade, da honestidade, da singeleza, e não meramente essa beleza plástica, a plasticidade da imagem, essa nuvem de purpurina que enche as imagens de um tom vão e falacioso. Cada vez mais tenho a consciência de buscar uma beleza crua, uma beleza esguia, incompleta, cheia de falhas e acidentes de percurso. E, enfim, quero falar, quero preencher o filme com a minha voz, porque é uma forma de lidar com esse silêncio absurdo que é a vida.
Dos raros filmes que vi, duas revisões obrigatórias. VIAGEM À ITÁLIA, do Rossellini; e A VIDA DE OHARU, do Mizoguchi. O primeiro, eu o revi estimulado pelo extraordinário texto do Sarraceni sobre o filme e sobre o diretor, publicado num catálogo de uma mostra do Rossellini que aconteceu em São Paulo creio que no ano passado. Texto de grande beleza, de poder de síntese, de relação pessoal e de enorme poder de análise, texto de sabedoria. Rever o filme do Rossellini foi importante para mim, porque não me lembrava do quanto ele tem em comum com as coisas que venho pesquisando, especialmente a relação do estrangeiro com um espaço físico e como isso desvela um abismo emocional. Viagem à Itália é um dos grandes filmes sobre essa questão, e nisso o Sarraceni entendeu com enorme sabedoria o que fica do filme hoje, sessenta anos após sua produção. E, claro, um Rossellini visionário, que vai além do neo-realismo para buscar uma outra (a mesma) forma de expressão, mais madura, mais sábia. Uma Europa unida e partida, abismos dos abismos, processo de reconstrução que parte de um abismo entre povos, gerações, culturas, sexos. Um abismo que pode no entanto ser o início de um processo de encontro, pois é na diferença em que todos podemos nos encontrar. Etc, etc, etc. Mais objetivamente, o filme é sobre um casal em crise, dois ingleses que vão à Itália para vender uma propriedade, e querem retornar o quanto antes. Eles se fecham para o outro, para si mesmos e para o que esse contato com o estrangeiro pode lhes oferecer. Eles vão à Itália mas não entendem nada, não vêem nada, não conhecem nada. “Aqui estão as ruínas”, etc, o guia mostra à Ingrid Bergman, mas ela não vê nada, pois a Itália não é nada disso. (o que é precursor das famosas cenas de Hiroshima meu amor “você não viu nada”...). É extraordinária a forma como Rossellini se identifica com esse casal europeu (um casal como qualquer outro em crise) e ao mesmo tempo afirma esse distanciamento crítico (a burguesia européia enfadada). Geografia física (neo-realismo) e geografia emocional (o cinema crítico rosselliniano): Viagem à Itália é um filme sobre uma geografia física e humana em mutação, em ponto de encontro, à margem de um abismo. Claro que nesse retrato do estrangeiro, o filme não é tão radical quanto as experiências de uma Chantal Akerman em News from home ou mesmo La-bas. Não se trata disso: é o cinema narrativo, levemente romântico, com um certo humor bastante estranho e entrechos típicos que às vezes nos cansam um pouco. Mas o filme deve ser visto, é claro, além disso: na forma extremamente precisa e à frente do seu tempo como Rossellini conjugou todos esses elementos, até um final visionário, fantástico mesmo, em que toda essa idéia desse espaço físico que é pano de fundo explode, como no vulcão de Stromboli, para o primeiro plano do filme. Na verdade diria mais, as tensões reprimidas entre o casal eclodem no meio de um “encontro forçado” entre essa cartografia física e humana, esse caldeirão de tradições e culturas e rituais tipicamente italianos, alheios ao mundo desse casal. Ali sim Ingrid Bergman viu a Itália que não conseguiu ver em todos aqueles museus e ruínas, conseguiu talvez entender a beleza da briga daquele casal pouco antes do casamento (ela na verdade já começara a ver). Por fim, Viagem à Itália, prolongamento de maturidade de um certo neo-realismo, antecipa todo um caminho que leva ao cinema contemporâneo, cuja filiação é clara, passando necessariamente pelo A Aventura do Antonioni que talvez seja o primeiro filme derivado diretamente das influências de Viagem à Itália.
A Vida de Oharu já vem de outra lógica, a do cinema japonês, que é o melhor cinema do mundo, e a desse artista-artesão chamado Kenji Mizoguchi, e da complexidade de seu cinema. A história extremamente melodramática de Oharu e seus pontos de virada muitas vezes pouco críveis a princípio não nos chamariam a atenção, mas o cinema – e especialmente o cinema de mise-en-scene – tem essa dávida de oferecer por meio disso uma visão do mundo de enorme impacto crítico e emocional. Oharu, esse anjo caído, assiste à sua “ruína programada” com enorme consciência do seu devir, com uma absurda – diria oriental, diria zen – consciência da fatalidade do seu fim, do absurdo da miséria plena de sua condição, esse sentido de resignação que nunca se confunde com um acomodamento, até porque a vida de Oharu é de presente luta, processo contínuo e até diria sufocante, extenuante. Sua decadência física, moral e espiritual é acompanhada com um olhar observador do diretor, que funciona quase como um acalanto ao pobre destino dessa mulher, destino que também é marcado pelos traços do preconceito de uma sociedade japonesa centralizadora e conservadora, de repressão à possibilidade da liberdade, e também marcado por sua condição feminina. Oharu entre outras coisas é aprisionada por sua beleza feminina que seus conterrâneos devem lutar para fenecer. Ou seja, um olhar que também é crítico a todo um estado de coisas de um Japão semi-feudal, e um olhar fatalista que olha com grande desencanto ao possível processo de reconstrução da nação japonesa do pós-guerra. Mizoguchi observa tudo isso com enorme melancolia mas com um abraço carinhoso no percurso dessa personagem – mas é claro, o abraço possível para um japonês, um abraço distante – , através de uma estonteante beleza plástica e de movimentos de câmera que dão ao filme uma languidez, um ritmo peculiar, uma solução econômica em termos de espaço físico (funcional) e ao mesmo tempo de enorme sensibilidade plástica. Um valor do tempo que não raras vezes dão ao filme um fluxo em busca de uma liberdade que nunca vem (um filme sobre a liberdade feito num estúdio), como na comovente cena da corrida pela mata quando Oharu lê a carta deixada por seu único amor.
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