Uma Carta

Uma Carta
de Luiz Rosemberg Filho
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Como é possível continuar criando quando vivemos em um mundo que cada vez mais nos elimina a possibilidade de criação e de viver pelo sublime? Quando cada vez mais o que se valoriza são as intrigas e as mesquinharias, o jogo do interesse pelo poder, a inveja e o “aqui-e-agora” ? Os “vídeos experimentais” de Luiz Rosemberg Filho são, acima de tudo, um sinal de resistência. A partir dos anos noventa, o curta-metragem em vídeo foi a única forma encontrada pelo diretor de não se calar. E Rosemberg fala, através da leitura de “cartas-manifestos” que assumem a forma de ensaios fílmicos sobre o audiovisual e o mundo contemporâneo, sempre com um tom de indignação e protesto ao atual estado de coisas, claramente devoto ao cinema de Godard. A crescente produção do diretor – são mais de vinte curtas no formato desde então – evidencia sua irreverência e seu inconformismo, características típicas do cinema do diretor, desde seus longas-metragens dos anos setenta.

No entanto, seu último filme, Uma Carta, surpreende com uma enorme lufada de vigor. Roserberg encara o desafio de “mudar para continuar o mesmo”: ainda que no interior de seu típico dispositivo (a leitura de um texto), Rosemberg avança em relação a seus vídeos experimentais anteriores pela coragem em dar esse passo rumo ao desconnhecido.

“Há silêncios e silêncios”
Em Uma Carta vemos e ouvimos a leitura de uma carta, mas o que se diz é pouco em relação ao que não se diz. Uma Carta fala também pelos seus silêncios, pelo que é sugerido ao invés de mostrado. Dessa forma, inicia seu percurso de ambiguidades e sutilezas, que num primeiro olhar nos passam despercebidas. O rigor típico de seus experimentais se percebe no início do curta (pois é um trabalho de continuidade): uma panorâmica bastante lenta percorre as fotos numa estante, que revelam, de um lado, o trabalho de colagens típico de Rosemberg; por outro, a influência do cinema (uma metalinguagem), através de autores marcantes (Bergman, Welles, Godard, etc.). Mas subitamente a câmera revela uma terceira vertente: um cinema pessoal, íntimo: a câmera pára no retrato do pai. Não satisfeita, a câmera revela uma quebra, uma fissura: um zoom nos aproxima da foto e nos mergulha no universo confessional do curta.

“Não é à toa que Édipo furou os próprios olhos”
É preciso que furemos os nossos próprios olhos, porque de um lado, a visão de nosso mundo (como ele é) é por demais dolorida. Mas por outro somente furando nossos olhos é que podemos ver além desse mesmo mundo. Furar os olhos para chegar à alma: a natureza do cinema que está escondida, adormecida, pronta para ser descoberta por meio de delicados sopetões. Uma Carta é um trabalho de descontinuidade, de euforia, de uma agilidade cinética ausente de seus experimentais anteriores, mais straubianos: agora vemos a oscilação entre cor e P&B, vozes masculinas e femininas, entre o movimento de câmera e a fizidez da imagem. Movimentos dialéticos, como a própria frase de Eisenstein que abre o curta já nos sinaliza. É preciso ver além do que a imagem nos mostra.

Mudar para continuar o mesmo
Toda essa euforia do conjunto dos recursos de linguagem, amplificados pela presença ativa da montagem (e da voz) de Joana Collier, na verdade revela uma mudança que espelha um caminho de continuidade. Mas agora não há o subterfúgio da política, da miséria, da pornografia, do cinema, do Brasil. A matéria-prima de Uma Carta é si mesmo.

Dessa forma, o que nos salta aos olhos é a coragem de Rosemberg em mostrar-se nu diante de nós, a alma limpa, serena e madura. “Sei que hoje me conheço melhor e sei a barra que é cohecer-se mais” Por isso, Uma Carta é uma espécie de resposta aos que infligem uma sina de fracassos a toda uma geração. “O homem é para sempre um ser trágico entre o que poderia ser e o que dramaticamente é”. É na consciência de sua própria tragicidade que Uma Carta se revela um trabalho confessional.

Um epílogo?
É preciso caminhar: amadurecer e rejuvenescer. Sem deixar de dialogar com Eisenstein, Kubrick e Godard, e com o seu próprio cinema, Uma Carta é um filme generoso, porque se permite um diálogo com uma nova geração de realizadores, próxima mas completamente desconhecida. É o desnudamento do intimismo oriental de Marcelo Ikeda combinado com a plasticidade técnica do movimento e da cor do Cinema de Poesia (André Scucato e Cristina Pinheiro). Temos a coragem da confissão, o olhar nu para a câmera, o despir-se de corpo e alma. De outro lado, os movimentos de chicote, as cores, o deslumbramento técnico e rítmo. Novas formas de se falar do mesmo.

Mas Uma Carta é misterioso: é um curta que esconde tanto quanto revela. Seu discurso é enigmático: em primeira ou terceira pessoa? Ao final, Rosemberg (o próprio) fita a câmera e anuncia que o texto é de autoria dela, “uma carta”. E em seguida, um mergulho no cinema puro, abstrato, de cores, luzes e formas: um retorno ao útero, ou simplesmente, a possibilidade de vivermos no reino da imaginação.

E nós ?
Falando de si, sem máscaras, Rosemberg paradoxalmente fez um curta que fala sobre uma geração, sobre um Brasil, sobre um cinema brasileiro, de uma forma madura e necessária. Fala de um fim, e de um começo, pois todo fim é uma forma de recomeçar.

Comentários

Anônimo disse…
Lindo Texto!
quero ver o filme.
abs.
Ricardo
Anônimo disse…
eu também!!!

luiz
Oi Vc tem o texto completo do filme? Eu assisti o curta mas gostaria de ter o texto...Meu email é patriciasflores@hotmail.com

Obrigada!
Cinecasulófilo disse…
Patricia,
infelizmente não possuo o texto da carta. Um abraço,

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