Cassandra´s Dream
O sonho de Cassandra
de Woody Allen
Dom 4 mai
***
O sonho de Cassandra mostra um Woody Allen na maturidade, sabendo que é importante “mudar para continuar o mesmo”. Ao invés das comédias que mostram os equívocos de um neurótico novaiorquino, O Sonho de Cassandra é um filme que não pode ser visto a parte de um de seus filmes anteriores, Match Point. A base é a mesma: um crime precisa ser cometido para que uma pessoa possa subir na vida. Mas qual é o preço que se paga? A diferença é que são filmes semelhantes mas quase antípodas na conclusão: em O Sonho de Cassandra Allen vai optar pela condenação dos assassinos. As referências são vastas: desde a clara referência moral a Crime e Castigo, até os exemplares cinematográficos (uma citação a Bonny and Clyde, a presença do barco como em O Céu por Testemunha ou mesmo Faca na água). Em termos de estilo podemos falar de Rohmer (especialmente na ironia e no filme falsamente baseado em diálogos) ou mesmo nos criminais de Chabrol.
Mas o que encanta em O Sonho de Cassandra é a fina ironia do filme, e é nisso que persiste o caminho de continuidade na filmografia de Allen. Ironia que também existia em Match Point. Ironia sutil, humor tipicamente inglês, mas claramente perceptível, na forma como Allen desenvolve sua versão de uma tragédia grega. Em uma das cenas do teatro, a atriz chega a dizer: “É engraçado como a vida chegou a isso. A vida não é nada, senão totalmente irônica.”
Para além disso, o tema-base de O Sonho de Cassandra é a ilusão do poder. Na verdade, comenta-se de forma crítica sobre um tripé: poder, dinheiro e família. Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrell)são dois irmãos de natureza diferente, mas bastante próximos: é como se o primeiro puxasse a mãe, e o segundo, o pai. Ambos precisam de dinheiro: o primeiro para seduzir uma atriz por quem está apaixonado e para montar uma rede de hotéis na Califórnia; o segundo, para saldar suas dívidas no jogo. Para isso, pedem ajuda a um tio que mora na China, e ele pede em troca um favor: que matem um homem. A seguir, o castigo, a pena, o arrependimento. Mas para apenas um deles.
O desenvolvimento do roteiro pode até parecer nada original mas a mise en scene de Allen tem os seus caprichos, que têm passado completamente desapercebidos. Allen sempre é conhecido por um certo estilo preguiçoso, baseado em planos médios e em filmes cujo maior mérito é o roteiro e os diálogos. Com muita ironia, é como se nesse trabalho e em Match Point, Allen extrapolasse de tal forma esses elementos que o seu cinema desponta de forma muito cristalina. A dramaturgia de O Sonho de Cassandra é toda recheada de diálogos, mas a sutileza da mise en scene é que revela a ironia do filme: é uma citação a Bonny and clyde, é a peça dentro do filme, é o repentino encontro (o acaso) com a atriz no meio da estrada, é o jogo de cartas decidido na última carta (novamente o acaso). O fatalismo do enredo está claro desde o início: os personagens estão sempre intrincados entre grades ou sinais distintivos, sendo nítida uma idéia de enclausuramento. Por meio da elegância do estilo clássico, e especialmente da iluminação, há algo de muito pobre naquela família que cada vez mais vai se deteriorando. Além disso, o filme tem planos longos, com uma decupagem nada trivial ou televisiva, inclusive com uma participação discreta mas importante de externas, especialmente quando os personagens saem de suas casas para as ruas.
Como os filmes de Rohmer, os personagens pecam por sua auto-suficiência. A vida é um jogo de cartas, de sutil ironia. É como se o filme fosse aquela peça de teatro, como se Ian fosse tão ou mais ator que sua parceira atriz. Mise em scene falsamente realista para um filme sobre um jogo de aparências; filme de falsas sutilidades para denunciar as futilidades de um modo de vida. Cinema de ordem moral, que seduz o espectador apenas para lhe revelar o quanto é fútil o artifício, mas tudo como um jogo sutil e irônico como a vida. Os personagens falam, falam, falam, mas revelam mais pelo que escondem, o que também é nítido, pois suas falas revelam suas contradições. Essa falsa estrutura teatral (ou televisiva) e esse falso realismo (ou ainda essa falsa acomodação) da filmografia de Woody Allen são a mostra de um cineasta na maturidade promovendo investigações sobre a natureza obscura (mesquinha) da condição humana, através de um cinema cuja transparência é a sua maior ironia.
de Woody Allen
Dom 4 mai
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O sonho de Cassandra mostra um Woody Allen na maturidade, sabendo que é importante “mudar para continuar o mesmo”. Ao invés das comédias que mostram os equívocos de um neurótico novaiorquino, O Sonho de Cassandra é um filme que não pode ser visto a parte de um de seus filmes anteriores, Match Point. A base é a mesma: um crime precisa ser cometido para que uma pessoa possa subir na vida. Mas qual é o preço que se paga? A diferença é que são filmes semelhantes mas quase antípodas na conclusão: em O Sonho de Cassandra Allen vai optar pela condenação dos assassinos. As referências são vastas: desde a clara referência moral a Crime e Castigo, até os exemplares cinematográficos (uma citação a Bonny and Clyde, a presença do barco como em O Céu por Testemunha ou mesmo Faca na água). Em termos de estilo podemos falar de Rohmer (especialmente na ironia e no filme falsamente baseado em diálogos) ou mesmo nos criminais de Chabrol.
Mas o que encanta em O Sonho de Cassandra é a fina ironia do filme, e é nisso que persiste o caminho de continuidade na filmografia de Allen. Ironia que também existia em Match Point. Ironia sutil, humor tipicamente inglês, mas claramente perceptível, na forma como Allen desenvolve sua versão de uma tragédia grega. Em uma das cenas do teatro, a atriz chega a dizer: “É engraçado como a vida chegou a isso. A vida não é nada, senão totalmente irônica.”
Para além disso, o tema-base de O Sonho de Cassandra é a ilusão do poder. Na verdade, comenta-se de forma crítica sobre um tripé: poder, dinheiro e família. Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrell)são dois irmãos de natureza diferente, mas bastante próximos: é como se o primeiro puxasse a mãe, e o segundo, o pai. Ambos precisam de dinheiro: o primeiro para seduzir uma atriz por quem está apaixonado e para montar uma rede de hotéis na Califórnia; o segundo, para saldar suas dívidas no jogo. Para isso, pedem ajuda a um tio que mora na China, e ele pede em troca um favor: que matem um homem. A seguir, o castigo, a pena, o arrependimento. Mas para apenas um deles.
O desenvolvimento do roteiro pode até parecer nada original mas a mise en scene de Allen tem os seus caprichos, que têm passado completamente desapercebidos. Allen sempre é conhecido por um certo estilo preguiçoso, baseado em planos médios e em filmes cujo maior mérito é o roteiro e os diálogos. Com muita ironia, é como se nesse trabalho e em Match Point, Allen extrapolasse de tal forma esses elementos que o seu cinema desponta de forma muito cristalina. A dramaturgia de O Sonho de Cassandra é toda recheada de diálogos, mas a sutileza da mise en scene é que revela a ironia do filme: é uma citação a Bonny and clyde, é a peça dentro do filme, é o repentino encontro (o acaso) com a atriz no meio da estrada, é o jogo de cartas decidido na última carta (novamente o acaso). O fatalismo do enredo está claro desde o início: os personagens estão sempre intrincados entre grades ou sinais distintivos, sendo nítida uma idéia de enclausuramento. Por meio da elegância do estilo clássico, e especialmente da iluminação, há algo de muito pobre naquela família que cada vez mais vai se deteriorando. Além disso, o filme tem planos longos, com uma decupagem nada trivial ou televisiva, inclusive com uma participação discreta mas importante de externas, especialmente quando os personagens saem de suas casas para as ruas.
Como os filmes de Rohmer, os personagens pecam por sua auto-suficiência. A vida é um jogo de cartas, de sutil ironia. É como se o filme fosse aquela peça de teatro, como se Ian fosse tão ou mais ator que sua parceira atriz. Mise em scene falsamente realista para um filme sobre um jogo de aparências; filme de falsas sutilidades para denunciar as futilidades de um modo de vida. Cinema de ordem moral, que seduz o espectador apenas para lhe revelar o quanto é fútil o artifício, mas tudo como um jogo sutil e irônico como a vida. Os personagens falam, falam, falam, mas revelam mais pelo que escondem, o que também é nítido, pois suas falas revelam suas contradições. Essa falsa estrutura teatral (ou televisiva) e esse falso realismo (ou ainda essa falsa acomodação) da filmografia de Woody Allen são a mostra de um cineasta na maturidade promovendo investigações sobre a natureza obscura (mesquinha) da condição humana, através de um cinema cuja transparência é a sua maior ironia.
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