Ave Candeias (VI): AOPÇÃO
Aopção, ou As Rosas da Estrada
de Ozualdo Candeias
Caixa qui 10 18hs
****
Rever Aopção em película para mim foi a constatação de que se trata do maior filme do cinema brasileiro. Não sei se se trata do maior – maior que Limite, que Deus e o Diabo, etc. Provavelmente não. Mas pelo menos é o filme brasileiro que mais bate forte dentro de mim, e é isto aqui o que importa.
O Brasil na era do cinema contemporâneo
Uma das principais características do cinema contemporâneo é a combinação orgânica entre documentário e ficção, de modo em que os limites entre um e outro gênero se tornem tão difusos que problematizem o tempo todo sua construção. Outros pontos podem ser identificados: evitar a identificação do espectador com os personagens, seja evitando a psicologia, seja com elipses abruptas que provoquem uma desorientação, seja tornando dúbias suas motivações. Quanto à construção narrativa, jogando para o espaço os princípios de causa-e-efeito.
Em qualquer um desses aspectos, Aopção antecipa em pelo menos vinte anos o que veio a se convencionar de “cinema contemporâneo”. Sem diálogos, sem paternalismo, sem didatismo, o filme é o único mergulho possível – radical, sem qualquer concessão – no universo de algumas “rosas da estrada”, mulheres que deixam o trabalho no canavial para tentar chegar na cidade grande, em busca de algo que elas não sabem bem o que é. Oferecem seu corpo em troca de transporte e comida. Vivem. Vivem? Por isso o título, em que o “a” de “aopção” funciona como partícula de negação, num neologismo radical que mostra alguns dos desafios de Candeias nesse filme.
Um Brasil
Rotulado como marginal, primitivo, grotesco, amador, o olhar de Candeias em Aopção é o da busca por um Brasil que existe como percurso e como geografia. Anti-road movie, Aopção é muito mais radical como tempo e como experiência de percurso do que mesmo um filme tão radical quanto Corrida Sem Fim, de Monte Hellmann. Por muitos anos caminhoneiro (inclusive aparecendo no filme, numa cena em que há inscrições num banheiro), Candeias filma uma espécie de autobiografia torta, em que desopila seu próprio trajeto pessoal em sobreviver dentro do cinema brasileiro.
Aqui não cabe nem o paternalismo do cinema novo nem o deboche do cinema marginal. Não cabe também a “poesia da miséria” típica do neo-realismo zavattiniano nem “a plasticidade da solidão” de um Antonioni ou um Visconti, com tempos largos e reflexivos. Não há a busca por um “purismo” nem por um “paternalismo assistencial”. Não há clima de denúncia do descaso das autoridades ou coisa do tipo. Não há nem mesmo o “esteticismo” da busca de um Brasil interior dos filmes recentes da Teia, da nova vanguarda mineira. As pessoas são feias, a estrada é feia, o cinema é cru, a fotografia desigual, o som parturbador, com cortes secos que nos desorientam.
“Eta Vidinha de Merda!”
Como típico filme de Candeias, não há diálogos. Na trilha sonora (que parece ter sido toda feita na pós-produção), predominam os sons da estrada, um grunhido agudo e torturante que funciona como uma espécie de trilha musical do filme (não há música). Os personagens não se falam, porque não há nada a ser dito, apenas a ser mostrado. Aopção é um dos filmes mais duros do cinema brasileiro porque não há nenhuma demonstração de afeto possível entre as pessoas, elas existem enquanto corpo e para suprir suas necessidades fisiológicas, de alimentação e sexo. Dois instantes típicos são quando um caminhoneiro usa um martelo para conferir se seu membro não está “mole”, da mesma forma como faz para verificar os pneus do caminhão. Outro caminhoneiro usa um punhado de graxa como lubrificante antes do ato sexual. Eles fazem sexo, mas não trocam uma palavra, um olhar. Aopção é um filme seco.
O começo
Em cinco minutos de filme, já sabemos de que se trata de uma obra-prima. Num estilo documental, Candeias mostra os trabalhadores num canavial. Trabalham. Páram para almoçar, com um semblante pesado. Comem. Ouvem uma música caipira, tipicamente do interior. Esboçam um sorriso. Voltam para a lavoura. Esse conjunto de meios-sorrisos, filmados em close, é uma das coisas mais perturbadoras e mais afetuosas já filmadas no cinema brasileiro.
Logo depois, uma das mulheres desiste, ela avista um caminhão numa estrada. Troca do roupa, sobe num morro, lá longe tem a estrada e os caminhões. Ela é filmada em close, a estrada lá embaixo e o vento bate nos seus cabelos. Sem abrir a boca, ela murmura “eta vidinha de merda!”. Eis sua “opção”.
A opção de Candeias
Por trás de tudo isso, há a opção de Candeias. Opção em fazer um filme solitário (ele próprio assina argumento, roteiro, fotografia, câmera, montagem, produção), um filme-ilha dentro do cinema brasileiro, filme esquecido, solitário, amargo. Fim do milagre econômico, fim do sonho desenvolvimentista, início do fim do sonho do cinema brasileiro, do cinema da Boca.
Ave Candeias!
de Ozualdo Candeias
Caixa qui 10 18hs
****
Rever Aopção em película para mim foi a constatação de que se trata do maior filme do cinema brasileiro. Não sei se se trata do maior – maior que Limite, que Deus e o Diabo, etc. Provavelmente não. Mas pelo menos é o filme brasileiro que mais bate forte dentro de mim, e é isto aqui o que importa.
O Brasil na era do cinema contemporâneo
Uma das principais características do cinema contemporâneo é a combinação orgânica entre documentário e ficção, de modo em que os limites entre um e outro gênero se tornem tão difusos que problematizem o tempo todo sua construção. Outros pontos podem ser identificados: evitar a identificação do espectador com os personagens, seja evitando a psicologia, seja com elipses abruptas que provoquem uma desorientação, seja tornando dúbias suas motivações. Quanto à construção narrativa, jogando para o espaço os princípios de causa-e-efeito.
Em qualquer um desses aspectos, Aopção antecipa em pelo menos vinte anos o que veio a se convencionar de “cinema contemporâneo”. Sem diálogos, sem paternalismo, sem didatismo, o filme é o único mergulho possível – radical, sem qualquer concessão – no universo de algumas “rosas da estrada”, mulheres que deixam o trabalho no canavial para tentar chegar na cidade grande, em busca de algo que elas não sabem bem o que é. Oferecem seu corpo em troca de transporte e comida. Vivem. Vivem? Por isso o título, em que o “a” de “aopção” funciona como partícula de negação, num neologismo radical que mostra alguns dos desafios de Candeias nesse filme.
Um Brasil
Rotulado como marginal, primitivo, grotesco, amador, o olhar de Candeias em Aopção é o da busca por um Brasil que existe como percurso e como geografia. Anti-road movie, Aopção é muito mais radical como tempo e como experiência de percurso do que mesmo um filme tão radical quanto Corrida Sem Fim, de Monte Hellmann. Por muitos anos caminhoneiro (inclusive aparecendo no filme, numa cena em que há inscrições num banheiro), Candeias filma uma espécie de autobiografia torta, em que desopila seu próprio trajeto pessoal em sobreviver dentro do cinema brasileiro.
Aqui não cabe nem o paternalismo do cinema novo nem o deboche do cinema marginal. Não cabe também a “poesia da miséria” típica do neo-realismo zavattiniano nem “a plasticidade da solidão” de um Antonioni ou um Visconti, com tempos largos e reflexivos. Não há a busca por um “purismo” nem por um “paternalismo assistencial”. Não há clima de denúncia do descaso das autoridades ou coisa do tipo. Não há nem mesmo o “esteticismo” da busca de um Brasil interior dos filmes recentes da Teia, da nova vanguarda mineira. As pessoas são feias, a estrada é feia, o cinema é cru, a fotografia desigual, o som parturbador, com cortes secos que nos desorientam.
“Eta Vidinha de Merda!”
Como típico filme de Candeias, não há diálogos. Na trilha sonora (que parece ter sido toda feita na pós-produção), predominam os sons da estrada, um grunhido agudo e torturante que funciona como uma espécie de trilha musical do filme (não há música). Os personagens não se falam, porque não há nada a ser dito, apenas a ser mostrado. Aopção é um dos filmes mais duros do cinema brasileiro porque não há nenhuma demonstração de afeto possível entre as pessoas, elas existem enquanto corpo e para suprir suas necessidades fisiológicas, de alimentação e sexo. Dois instantes típicos são quando um caminhoneiro usa um martelo para conferir se seu membro não está “mole”, da mesma forma como faz para verificar os pneus do caminhão. Outro caminhoneiro usa um punhado de graxa como lubrificante antes do ato sexual. Eles fazem sexo, mas não trocam uma palavra, um olhar. Aopção é um filme seco.
O começo
Em cinco minutos de filme, já sabemos de que se trata de uma obra-prima. Num estilo documental, Candeias mostra os trabalhadores num canavial. Trabalham. Páram para almoçar, com um semblante pesado. Comem. Ouvem uma música caipira, tipicamente do interior. Esboçam um sorriso. Voltam para a lavoura. Esse conjunto de meios-sorrisos, filmados em close, é uma das coisas mais perturbadoras e mais afetuosas já filmadas no cinema brasileiro.
Logo depois, uma das mulheres desiste, ela avista um caminhão numa estrada. Troca do roupa, sobe num morro, lá longe tem a estrada e os caminhões. Ela é filmada em close, a estrada lá embaixo e o vento bate nos seus cabelos. Sem abrir a boca, ela murmura “eta vidinha de merda!”. Eis sua “opção”.
A opção de Candeias
Por trás de tudo isso, há a opção de Candeias. Opção em fazer um filme solitário (ele próprio assina argumento, roteiro, fotografia, câmera, montagem, produção), um filme-ilha dentro do cinema brasileiro, filme esquecido, solitário, amargo. Fim do milagre econômico, fim do sonho desenvolvimentista, início do fim do sonho do cinema brasileiro, do cinema da Boca.
Ave Candeias!
Comentários