EXPERIÊNCIAS DE TIRADENTES (III)
Amigos de Risco
de Daniel Bandeira
Cine-Tenda Tiradentes, qui 24 22hs
0
Para quem não tinha entendido, o diretor Daniel Bandeira fez questão de deixar claro no debate no dia seguinte à exibição do filme em Tiradentes: “a amizade é um fardo que precisamos carregar, carregar no sentido físico da palavra, muitas vezes para o resto da vida”. Ainda soltou pérolas como a seguinte: “ainda que eu acredite no valor da amizade, é preciso ressaltar que nenhuma amizade é ingênua ou desinteressada”. Suas palavras são curiosas, exatamente pelo fato de ter realçado de que o filme só foi feito por ter sido “uma equipe de amigos”, dada a falta de recursos para a produção do filme.
Dito isto, vamos ao que interessa: Amigos de Risco é um périplo – geográfico, existencial e físico – em direção ao abandono da amizade. Tudo o que o filme busca é uma base que justifique moralmente o fato dos dois homens poderem abandonar o “amigo” à própria sorte. Ou seja, é um percurso de legitimização do abandono da amizade.
Três amigos se reencontram. O início é muito interessante: eles falam ao telefone, escapando de seus ambientes de trabalho opressores. Eles vão rever o amigo de infância, há muito distante. Ou seja, é um filme sobre a amizade. O trio curte a noite, há dinheiro de sobra, embora desconfiemos de sua origem. Joca tem um plano para os três, mas envolve “dinheiro sujo”, então os dois amigos desconfiam. Até que acontece um incidente, e Joca perde os sentidos. Os amigos precisam salvar Joca, mas com cuidado para que a polícia não saiba.
Nisso começa o périplo dos dois amigos que carregam o corpo de Joca pelas ruas de Recife à procura de ajuda. As referências ao cinema (sempre americano) despontam em nosso imaginário, como em Depois de Horas, de Scorsese. Acontece que Bandeira quer fazer uma comédia de humor negro sobre esse amigo que eles têm que carregar e nada dá certo. Ainda há uma pitada de “denúncia social” a uma Recife violenta e abandonada (o que é ainda pior, porque nada há de reflexão no filme). Há também o cinema digital e todo aquele papo sobre transfer, precariedade de recursos e etc, que envolve o “cinema jovem” brasileiro.
Mas quero voltar ao assunto essencial: Amigos de Risco é um dos mais assustadores e reacionários filmes jovens brasileiros dos últimos tempos porque esse percurso dos dois amigos (e do filme) só possui um único objetivo: convencer a qualquer custo o espectador de que o melhor que os dois têm a fazer é abandonar o corpo nas ruas e cuidar das suas próprias vidas, porque isso é o melhor que se deve fazer. Para isso, há dois movimentos: um de dizer que Joca é um imprestável; dois, de mostrar que os amigos se esforçaram ao máximo para fazer alguma coisa, mas “não deu pra fazer outra coisa senão deixar o corpo para lá”. Com isso, o filme vai assumindo uma estrutura típica de “contagem regressiva”, uma atmosfera asfixiante que sem dúvida é intensificada pelo digital, com cada vez mais altas doses de humor negro para anestesiar cada vez mais o espectador. Depois de tanto humor negro e desespero, no final o espectador fica cool, e aceita tudo: ao contrário, paradoxalmente, ele chega a torcer desesperadamente para que eles deixem o corpo em qualquer lugar, para que aquilo termine, pois não há mais como prosseguir. O filme vira quase o A Paixão de Cristo, do Mel Gibson: uma via-crúcis de altas doses de sofrimento carnal, só que ao invés do estranho tom místico do filme de Gibson, no de Bandeira há o escárnio, há um enorme sadismo em acompanhar o percurso desse trio, em direção do ato final, meticulosamente programado ao longo de todo o filme: o abandono não mais de um amigo ou de um ser humano, mas o abadono de um corpo.
Melhor retrato sobre os jovens que fazem e assistem cinema no Brasil, impossível.
de Daniel Bandeira
Cine-Tenda Tiradentes, qui 24 22hs
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Para quem não tinha entendido, o diretor Daniel Bandeira fez questão de deixar claro no debate no dia seguinte à exibição do filme em Tiradentes: “a amizade é um fardo que precisamos carregar, carregar no sentido físico da palavra, muitas vezes para o resto da vida”. Ainda soltou pérolas como a seguinte: “ainda que eu acredite no valor da amizade, é preciso ressaltar que nenhuma amizade é ingênua ou desinteressada”. Suas palavras são curiosas, exatamente pelo fato de ter realçado de que o filme só foi feito por ter sido “uma equipe de amigos”, dada a falta de recursos para a produção do filme.
Dito isto, vamos ao que interessa: Amigos de Risco é um périplo – geográfico, existencial e físico – em direção ao abandono da amizade. Tudo o que o filme busca é uma base que justifique moralmente o fato dos dois homens poderem abandonar o “amigo” à própria sorte. Ou seja, é um percurso de legitimização do abandono da amizade.
Três amigos se reencontram. O início é muito interessante: eles falam ao telefone, escapando de seus ambientes de trabalho opressores. Eles vão rever o amigo de infância, há muito distante. Ou seja, é um filme sobre a amizade. O trio curte a noite, há dinheiro de sobra, embora desconfiemos de sua origem. Joca tem um plano para os três, mas envolve “dinheiro sujo”, então os dois amigos desconfiam. Até que acontece um incidente, e Joca perde os sentidos. Os amigos precisam salvar Joca, mas com cuidado para que a polícia não saiba.
Nisso começa o périplo dos dois amigos que carregam o corpo de Joca pelas ruas de Recife à procura de ajuda. As referências ao cinema (sempre americano) despontam em nosso imaginário, como em Depois de Horas, de Scorsese. Acontece que Bandeira quer fazer uma comédia de humor negro sobre esse amigo que eles têm que carregar e nada dá certo. Ainda há uma pitada de “denúncia social” a uma Recife violenta e abandonada (o que é ainda pior, porque nada há de reflexão no filme). Há também o cinema digital e todo aquele papo sobre transfer, precariedade de recursos e etc, que envolve o “cinema jovem” brasileiro.
Mas quero voltar ao assunto essencial: Amigos de Risco é um dos mais assustadores e reacionários filmes jovens brasileiros dos últimos tempos porque esse percurso dos dois amigos (e do filme) só possui um único objetivo: convencer a qualquer custo o espectador de que o melhor que os dois têm a fazer é abandonar o corpo nas ruas e cuidar das suas próprias vidas, porque isso é o melhor que se deve fazer. Para isso, há dois movimentos: um de dizer que Joca é um imprestável; dois, de mostrar que os amigos se esforçaram ao máximo para fazer alguma coisa, mas “não deu pra fazer outra coisa senão deixar o corpo para lá”. Com isso, o filme vai assumindo uma estrutura típica de “contagem regressiva”, uma atmosfera asfixiante que sem dúvida é intensificada pelo digital, com cada vez mais altas doses de humor negro para anestesiar cada vez mais o espectador. Depois de tanto humor negro e desespero, no final o espectador fica cool, e aceita tudo: ao contrário, paradoxalmente, ele chega a torcer desesperadamente para que eles deixem o corpo em qualquer lugar, para que aquilo termine, pois não há mais como prosseguir. O filme vira quase o A Paixão de Cristo, do Mel Gibson: uma via-crúcis de altas doses de sofrimento carnal, só que ao invés do estranho tom místico do filme de Gibson, no de Bandeira há o escárnio, há um enorme sadismo em acompanhar o percurso desse trio, em direção do ato final, meticulosamente programado ao longo de todo o filme: o abandono não mais de um amigo ou de um ser humano, mas o abadono de um corpo.
Melhor retrato sobre os jovens que fazem e assistem cinema no Brasil, impossível.
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