Império dos Sonhos
Império dos Sonhos
De David Lynch
Unibanco Arteplex 5 ter 20:40
** ½
Se é que ainda existe o chamado “cinema experimental” então poucos se enquadrariam melhor nessa definição do que esse novo filme do David Lynch. É como se ele buscasse extrapolar o já apresentado na sua filmografia, em especial em A Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos: uma idéia de desafiar os limites da narrativa clássica e dos clichês dos filmes de mistério e suspense, já totalmente gastos. Se a nouvelle vague francesa (via Sam Fuller) fez uma fórmula sobre o cinema americano (a movie is a girl and a gun), é como se Lynch fosse além, dizendo: “a movie is a girl, a gun.... and a movie!” Filme composto de incontáveis camadas, com um grande jogo sobre a identificação e a atração/repulsa de determinadas convenções, que o cineasta domina com maestria. Ou seja, não é que o filme seja totalmente um “tudo vale”, como se fosse uma obra dadaísta: é a partir de uma extrapolação dos códigos de uma narrativa que Lynch vai além desses limites. É só pensarmos nos inúmeros paralelismos e nas dobras narrativas que o filme faz para depois desfazer uma por uma, etc, etc.
“A movie is a girl, a gun.... and a movie!”. Claro, porque Império dos Sonhos é um filme sobre o cinema. É um filme sobre Hollywood, ou ainda sobre um outro lado (sombrio) de Hollywood e do star system. Por outro, é um filme sobre o processo de se fazer um filme, um filme dentro de um filme, ou ainda, um filme dentro de um filme dentro de um filme (a TV que a mulher assiste no início e no final), e assim sucessivamente. Ainda por outro, é um filme sobre a desarticulação de um processo de se fazer um filme (a estrutura narrativa). É muito interessante como isso se articula de forma orgânica em Império dos Sonhos.
É um filme arriscado. Qual o risco? De não embarcarmos nessa viagem. A diferença é que Lynch não é caricato como os Irmãos Coen, que fazem jogos auto-referenciais engraçadinhos completamente vazios. O objetivo de Lynch é se auto-testar continuamente, indo além do limite, mas sempre testando, modificando, incorporando, como se o próprio processo do filme se desse durante o filme. “A movie is a movie”. Mas ao mesmo tempo é o filme de um nerd que ficou o tempo todo revendo seus próprios filmes até a exaustão (conforme a excelente definição dos Irmãos Pretti).
“A movie is a girl, a gun.... and a movie!”. Isso me lembra dos filmes de Brian de Palma, me lembrou de A Dália Negra. Mas enquanto de Palma utiliza essas convenções para promover um jogo que conserve uma narrativa, Lynch implode a possibilidade de conservar essa unidade por si mesma. É como se de Palma promovesse um jogo de espelhos, e Lynch estilhaçasse esse mesmo espelho. Ou seja, Lynch é muito mais ousado e experimental, ainda que o filme de de Palma seja mais “acabado”, mais maduro.
Menos “acabado”. A importância do digital. Há uma doença no cinema contemporâneo que é o esteticismo, a plasticidade das imagens que sufoca a narrativa. As imagens devem ser belas, as mais “belas” possíveis: o diretor de fotografia é o auteur. Lynch nos dá uma boa lição: a imagem suja, feia, grotesca de Império dos Sonhos reflete a estrutura do filme, sua experimentação, seu processo, os estilhaços: nos arremessa para esse clima de estranhamento.
Como um clima de mistério é composto? Fiquei impressionado com a cena do início quando a Laura Dern conversa com sua vizinha. Campo-contracampo: “vovô viu a uva”. Mas os tempos, a entonação de cada atriz (timbre da voz, volume, etc), alguns pequenos movimentos estranhos com grande angular, o uso do digital (descolamento entranho entre primeiro plano e fundo), tornam um diálogo simples uma coisa essencialmente cinematográfica. Novamente, em seguida, uma cena de roteiro sendo ensaiada, um diálogo banal sendo emotivo. Etc, etc, etc. Nesses momentos fica patente a maestria de Lynch no jodo com os códigos de uma narrativa, e seu desejo não de descosturar esses nós, mas simplesmente de implodi-los para poder trabalhar a partir dos estilhaços.
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De David Lynch
Unibanco Arteplex 5 ter 20:40
** ½
Se é que ainda existe o chamado “cinema experimental” então poucos se enquadrariam melhor nessa definição do que esse novo filme do David Lynch. É como se ele buscasse extrapolar o já apresentado na sua filmografia, em especial em A Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos: uma idéia de desafiar os limites da narrativa clássica e dos clichês dos filmes de mistério e suspense, já totalmente gastos. Se a nouvelle vague francesa (via Sam Fuller) fez uma fórmula sobre o cinema americano (a movie is a girl and a gun), é como se Lynch fosse além, dizendo: “a movie is a girl, a gun.... and a movie!” Filme composto de incontáveis camadas, com um grande jogo sobre a identificação e a atração/repulsa de determinadas convenções, que o cineasta domina com maestria. Ou seja, não é que o filme seja totalmente um “tudo vale”, como se fosse uma obra dadaísta: é a partir de uma extrapolação dos códigos de uma narrativa que Lynch vai além desses limites. É só pensarmos nos inúmeros paralelismos e nas dobras narrativas que o filme faz para depois desfazer uma por uma, etc, etc.
“A movie is a girl, a gun.... and a movie!”. Claro, porque Império dos Sonhos é um filme sobre o cinema. É um filme sobre Hollywood, ou ainda sobre um outro lado (sombrio) de Hollywood e do star system. Por outro, é um filme sobre o processo de se fazer um filme, um filme dentro de um filme, ou ainda, um filme dentro de um filme dentro de um filme (a TV que a mulher assiste no início e no final), e assim sucessivamente. Ainda por outro, é um filme sobre a desarticulação de um processo de se fazer um filme (a estrutura narrativa). É muito interessante como isso se articula de forma orgânica em Império dos Sonhos.
É um filme arriscado. Qual o risco? De não embarcarmos nessa viagem. A diferença é que Lynch não é caricato como os Irmãos Coen, que fazem jogos auto-referenciais engraçadinhos completamente vazios. O objetivo de Lynch é se auto-testar continuamente, indo além do limite, mas sempre testando, modificando, incorporando, como se o próprio processo do filme se desse durante o filme. “A movie is a movie”. Mas ao mesmo tempo é o filme de um nerd que ficou o tempo todo revendo seus próprios filmes até a exaustão (conforme a excelente definição dos Irmãos Pretti).
“A movie is a girl, a gun.... and a movie!”. Isso me lembra dos filmes de Brian de Palma, me lembrou de A Dália Negra. Mas enquanto de Palma utiliza essas convenções para promover um jogo que conserve uma narrativa, Lynch implode a possibilidade de conservar essa unidade por si mesma. É como se de Palma promovesse um jogo de espelhos, e Lynch estilhaçasse esse mesmo espelho. Ou seja, Lynch é muito mais ousado e experimental, ainda que o filme de de Palma seja mais “acabado”, mais maduro.
Menos “acabado”. A importância do digital. Há uma doença no cinema contemporâneo que é o esteticismo, a plasticidade das imagens que sufoca a narrativa. As imagens devem ser belas, as mais “belas” possíveis: o diretor de fotografia é o auteur. Lynch nos dá uma boa lição: a imagem suja, feia, grotesca de Império dos Sonhos reflete a estrutura do filme, sua experimentação, seu processo, os estilhaços: nos arremessa para esse clima de estranhamento.
Como um clima de mistério é composto? Fiquei impressionado com a cena do início quando a Laura Dern conversa com sua vizinha. Campo-contracampo: “vovô viu a uva”. Mas os tempos, a entonação de cada atriz (timbre da voz, volume, etc), alguns pequenos movimentos estranhos com grande angular, o uso do digital (descolamento entranho entre primeiro plano e fundo), tornam um diálogo simples uma coisa essencialmente cinematográfica. Novamente, em seguida, uma cena de roteiro sendo ensaiada, um diálogo banal sendo emotivo. Etc, etc, etc. Nesses momentos fica patente a maestria de Lynch no jodo com os códigos de uma narrativa, e seu desejo não de descosturar esses nós, mas simplesmente de implodi-los para poder trabalhar a partir dos estilhaços.
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