O Passageiro

De Flávio R. Tambellini

Odeon ter 23 jan

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Se eu conseguir me livrar do meu trabalho de burocrata e da minha carapaça de cágado, eu espero um dia poder fazer cinema, cinema de verdade, um cinema que é feito de gente, com gente e para gente. Os meus filmes até agora foram o oposto disso (com exceção de O POSTO): não tem gente, não são com gente e não são para as pessoas. É como a diferença entre a masturbação e o sexo: meus trabalhos são uma verdadeira punheta. Num certo sentido não há nada de errado nisso: em primeiro lugar, porque algumas vezes a masturbação é melhor do que o sexo, mas isso não é elogio à masturbação, e sim porque o sexo não foi bem feito. Em segundo, porque, na adolescência, a masturbação é elemento fundamental para a descoberta da sexualidade e especialmente do corpo. Assim, os meus vídeos são exercícios masturbatórios, para que eu conheça, descubra os limites do meu corpo. Mas é preciso que, num dado momento, eu me liberte disso, e essa libertação só é possível com o contato com o outro. É a velha história de Não Amarás: é só com o outro, é só com gente que esse movimento pode ser possível.

 

Eu me lembrei disso vendo O Passageiro, segundo longa do Flávio Tambellini, que mostra um amadurecimento absurdo em relação a seu filme anterior. Há algumas, aliás várias, coisas que me chamaram a atenção nesse filme, e que se não fazem dele um grande filme, fazem digno de uma grande nota (ou melhor, de uma nota grande). O primeiro é que um filme brasileiro é sempre um filme brasileiro, e que eu nunca teria dado a atenção que estou dando para o filme se ele fosse americano ou argentino. Ele é um filme brasileiro, é um filme carioca, é um filme sobre mim. O segundo é que ele é um filme de atores, e se se quer fazer um cinema que fale dos sentimentos das pessoas e da crise das pessoas e de toda essa maldita dificuldade que é acordar e ter que se levantar da cama, não se pode fazer isso sem um abraço muito carinhoso num cinema de atores, em respirar essa possibilidade de se surpreender e de viver com os atores.

 

O terceiro é que O Passageiro é um filme sobre a adolescência, essa fase maldita muito mal compreendida na vida, no cinema e especialmente no cinema brasileiro. E então que, por ser um filme sobre a adolescência, o roteiro e a mise-en-scene do filme foram me fazendo recordar: a dificuldade que é conviver com as pessoas no colégio, que é ir para as festas e ver as pessoas se divertindo, que é voltar no dia seguinte para casa, que é ser mais novo do que seus companheiros de um grupo, que é essa timidez em dar um passo a frente porque não se sabe o que quer, que é essa dificuldade de gostar de quem não gosta de você, ou seja, essas coisas que fazem a adolescência ser essa fase terrível que geralmente queremos esquecer.

 

E daí que O Passageiro começa sendo um filme sobre duas coisas. Um filme sobre um “conflito de classe”, sobre um garoto que não quer ter a vida frívola dos seus pais e procura recusar sua origem social. E segundo, sobre uma descoberta da sexualidade, sobre um menino que quer superar a timidez e ter a sua primeira transa. Mas daí que tudo isso vai se modificando. Classe social – família – sexualidade acaba se tornando uma tríade que se entrelaça. O menino se vê seduzido pela amante do pai banqueiro, que ele odeia e depois descobre que ele foi um mecânico, que montou sua fortuna do zero.

 

E lá pro meio do filme O Passageiro se revela como um acerto de contas com um pai morto. Esse pai vai sendo humanizado depois de morto. E isso é acompanhado com um rito de passagem para a fase adulta, até o típico final do rito de passagem: a (primeira) transa.

 

Quando o filme se interessa pelos entrechos narrativos, pelo batom na bolsa de fulana, ou pelos flashbacks explicativos, eu meio perco o interesse pelo filme. Mas o quando o filme se concentra nessa crise do menino tentando ser alguém, ele ganha um novo fôlego. A melhor cena do filme é quando ele conversa com sua melhor amiga, sobre algumas pedras, ou ainda no quarto dela, quando ele finalmente se abre. É quando o ranço da narrativa clássica e do esquematismo que o filme toca parece romper para uma possibilidade de o filme respirar de forma humana e sincera esse mito de Édipo, essa dificuldade de ter que enfrentar os nossos limites.

 

Por fim, é uma pena que o filme tenha sido tão mal lançado e o que está acontecendo no cinema brasileiro tem que ser pensado, porque vários filmes médios, que dariam tranquilamente 100 mil espectadores não conseguem fazer nem 10% disso!!! Por que, mesmo com Cota de Tela, O Passageiro não consegue ser exibido num Cinemark, num Nova América, e tem que estrear no Espaço Unibanco, onde teria que estar passando o novo filme da Naomi Kawase, e não O Passageiro??!!! Ora, não se trata de um filme cabeça, etc, é um filme médio, de gosto para o público, talvez um pouco longo para os padrões comerciais, mas plenamente aceitável diante das bombas que vemos no cinema.

 

Um epílogo: O Passageiro resgata uma tradição de um cinema carioca urbano relativamente intimista, coisa que está cada vez mais rara. É um filme pessoal, mas é filme de mercado, não de festival. Não tem a futilidade do atual cinema carioca nem a exploração da miséria nem a pretensão de ser algo mais do que é: um honesto abraço de um filho em um pai.

 

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