Suzaku

De Naomi Kawase

Emule, um dia desses

*** ½

 

A jovem diretora japonesa Naomi Kawase ainda é um nome totalmente desconhecido no Brasil, pois seus filmes permanecem inéditos comercialmente. Sua reputação se consolidou com dois longas: Suzaku (seu longa de estréia) e Shara (exibido com destaque em Cannes). Antes de Suzaku, Kawase ganhou vários prêmios em Festivais Internacionais com Embracing, documentário em que narra a sua busca por seu pai, que a abandonara na infância.

 

Com apenas 27 anos, Kawase estreava no longa-metragem em 1997 ganhando o cobiçado Camera d´or em Cannes. Acessível graças ao indispensável Emule, Suzaku é um mergulho de frente no top do cinema contemporâneo. Suzaku é acima de tudo um projeto em natural continuidade com a trajetória de Kawase: primeiro, como documentarista; segundo, como forma de colocar sua própria trajetória pessoal num filme.

 

Isso porque Suzaku se passa num vilarejo em Nara, cidade quase rural, afastada da megalópole de Tóquio. A chance de Nara de entrar “na via do progresso” seria a construção de um trem. Mas o projeto do trem parou no meio do caminho, e só ficou um grande túnel. E acontece que essa história é a própria história de Nara, e acontece que a própria Kawase faz parte dessa história, porque é nascida em Nara.

 

Mas tudo isso é coisa de crítico. Pois se de um lado, é nítido que a intimidade de Kawase com o vilarejo faz toda a diferença, e que a relação entre ficção e documentário é íntima ao seu cinema, Suzaku é o oposto do projeto em que a história ficcional serve de arremedo para um propósito social, ou ainda que a História (com H maiúsculo) é mero pano de fundo para a história pessoal.

 

Ora, porque acima de tudo Suzaku é um filme que se insere dentro de toda uma tradição do cinema oriental, seja pela abordagem do tema da família, seja pela forma como o tempo é incorporado na narrativa. A matéria-prima de Suzaku é a própria passagem do tempo: de um lado, como o tempo é tratado de forma original num sentido de dramaturgia; de outro, porque o tema próprio de Suzaku é a relação entre tradição e modernidade, entre o ontem e o amanhã, entre a avó e a neta. Como se fosse num filme de Ozu, as questões familiares refletem as contradições de um Japão caminhando para um progresso irreversível mas que deixa cicatrizes. Nara, simbolizada por aquele túnel, está encravada entre o passado e o futuro, entre a terra pastoril e a chegada da máquina. Ou ainda, entre a bicicleta de Eisuke e o ônibus que leva Michiru até a escola.

 

Esse olhar simples e humano para as crianças que crescem forma um painel das dúvidas e ansiedades de Nara diante do futuro, e num outro sentido, um distanciamento íntimo, espelho fissurado do processo de crescimento da própria realizadora. Essas diversas camadas se entrelaçam, nunca se revelando por completo mas escondendo, como é a típica tradição japonesa. As pessoas observam, vivem, mais que falam. Suzaku amplia as possibilidades de expressão do cinema, tornando as ações e as personagens, menos esquemáticas, e abrindo a narrativa para um olhar de intimidade dessa geografia física (a casa, o quintal, o túnel, o caminho para a escola, o entorno – i.e interior e exterior) e emocional, aliado com um sentido de tempo – tempo que avança e que não passa.

 

Com 27 anos Kawase faz um trabalho extremamente maduro sobre o papel do tempo, sobre o papel de envelhecer, sobre a família, sobre a sociedade japonesa, sobre as contradições do progresso. E sobre o cinema, claro.

 

O tal túnel não anda. Nara está condenada a estar parada no tempo. Tio Kozo desiste, morre. A morte dele é linda (se isso é possível). Ele paga sua câmera e sai por Nara, e não volta. Sua esposa recebe a notícia e sai andando pelas ruas de Nara, sem rumo. Começa a chover. Forte. Mas depois pára. Claro, porque as coisas precisam continuar. A chuva sempre pára.

 

Desde Dovzhenko, o cinema não conhecia uma morte assim.

 

É isso, algumas considerações esparsas sobre Suzaku, no intervalo da correria aqui do trabalho.

Comentários

Postagens mais visitadas