Estranhos no Paraíso
de Jim Jarmusch
Centro Cultural Caixa sab 25 17hs
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Se eu fosse escolher um único filme que revelasse o espírito do cinema de ponta dos anos oitenta, provavelmente eu escolheria esse Estanhos no Paraíso. Despretensioso, baratérrimo, o primeiro filme de Jim Jarmusch tem um frescor que o dito cinema independente americano dos anos 80 nunca mais conseguiu alcançar. É um filme típico dos anos 80 no sentido de ser uma diluição do cinema de referências mas ao mesmo tempo em que a própria diluição assume um outro status, uma linguagem nova, um imenso sentimento de cinema e de mundo. A diluição pode ser achada numa travessia entre o cinema de Antonioni e especialmente o de Ozu e o de Wenders, mas também (até) o de Straub, a quem Jarmusch agradece lá nos créditos finais do filme. A importância da família e a reavaliação de um sentido de afeto e a importância de sentir que "as coisas passam" do cinema de Ozu; o road movie às avessas, o próprio cinema de referências, o humor inesperado, o desafio frio da geografia urbana do cinema de Wenders; a incomunicabilidade, os tempos largos e a dificuldade de expressar os sentimentos do cinema de Antonioni; as pontas pretas, o rigor, a simetria do cinema de Straub. Mas, acima de tudo, como todo primeiro filme deve ser, uma grande, uma enorme declaração de princípios, um cinema de referências que nunca abafa ou esconde essa enorme vontade de ser do cinema de Jarmusch, de ser um filme de descoberta, ao mesmo tempo que é um filme absolutamente despretensioso.

E o que é mais lindo em Estranhos no Paraíso é que, tudo bem que a vida é uma merda e em preto-e-branco, que nada faz sentido, mas ainda assim é possível ver tudo isso com um certo humor, com uma certa poesia. E mais: é possível a partir de tudo isso, sem negar tudo isso, fazer um cinema que fale exatamente do papel do encontro. Esse é o maravilhoso encanto desse filme do Jarmusch. O mundo pode ficar no extracampo, pulsando lá fora, mas ali dentro daquela casa há uma tentativa de redenção simples e bonita.

Os dois amigos viajam, mas é como se eles estivessem no mesmo lugar. Sim e não. Eles saem, não ficam em casa vendo televisão, mas vão pro cinema e ficam tão estáticos vendo a vida quanto antes. Ou ainda na cena em que pra mim é a mais bonita do filme, quando os três vão finalmente visitar o tal lago, mas ele está completamente congelado. Eddie diz que o lado é lindo; Joe pergunta que eles vieram visitá-la para ver como vai tudo; Eva responde que aquele lugar é realmente uma merda. Os três estão de costas para a câmera, apreciando a paisagem congelada do suposto lago. Isso é a coisa mais linda do mundo.

Jarmusch compõe o filme como pequenas esquetes, repletas de pontas pretas, coroadas com elipses, com planos frontais como se os personagens estivessem num tableaux. As externas são maravilhosas, esp na primeira parte, com uma profundidade de campo que curiosamente acentua esse deslocamento do espaço físico. A música de Screaming Jay fala de tudo o que os personagens não conseguem dizer: esse desabafo cool, esse grito sem saber contra o quê. Essa inércia, os tempos largos, o enquadramento frontal, as pontas negras, o olhar para os atores, o humor inusitado, esse cinema afetuoso: um uso criativo e absolutamente simples da linguagem cinematográfica para mostra todo um mundo que se revela e se esconde dentro de cada um dos personagens.

Nunca Jarmusch alcançou o mesmo nível em filmes posteriores, ainda que o seguinte, Down By Law, seja tão bom quanto, mas menos radical. Nunca o cinema independente americano (se é que isso faz sentido) conseguiu mesclar crítica, humor e cinefilia em tão alto grau. Clássico cult, Estranhos no Paraíso é simplesmente lindo. A terceira parte (Paraíso) cai um pouco mas o filme é incrível.

Comentários

Julio Bezerra disse…
Marcelo,
Adorei o texto. Pra mim também, "Estranhos" é o melhor Jarmusch. Sou completamente fascinado por esses personagens. E o Jarmusch, como vc mesmo disse, consegue de maneira simples adornar cada um deles com todo um universo. No fim das constas, tenho a impressão de que os personagens não conseguem suportar a idéia, a possibilidade da "felicidade".

Mas vem cá, vc sabe aonde posso conferir a programação da Caixa Cultural? O filme vai passar novamente?

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