Entrevista sobre NATAL

Segue uma entrevista por email que concedi para a Revista Cinetica (quem diria...) um pouco depois do Festival Universitário sobre o meu vídeo NATAL, que no fundo é um abraço carinhoso no cinema do Jonas Mekas. Tá atrasado mas segue aí postado na íntegra, já que na revista acabou sendo cortado...


Ola Felipe,
Vou tentar responder às suas observações da forma como posso, já que são questões complexas e é difícil falar sobre elas:

1) Seu filme, me parece, não causa bem-estar nem alegria em quem vê, passando por referências familiares das mais neurotizadas à sonoridade e aceleração das imagens fisicamente tratadas, como objetos de fricção. Essa agressividade latente aparece no filme como um fator motriz e dialoga diretamente com outros de seus filmes como um projeto estético conscientemente construído em torno da idéia do desespero (?). De que maneira, essa estética do mal-estar te aparece como um projeto de apreensão do mundo hoje? Até que ponto ele pode ir? Que outras camadas você procura?

A princípio, é bom deixar claro que não me interessa "chocar" ou "causar mal-estar" como objetivo último, como fim dos meus trabalhos em vídeo. Acho que se causa essas reações nas pessoas, é mais pelo que elas foram "educadas" a assistir. Isto é, tem mais a ver com o que é considerado "de bom gosto" em termos de imagem audiovisual. Meu projeto de cinema não é um projeto "negativo", e sim de construção, de uma imagem, de um universo particular. Assim é como o vejo, pelo menos.

A idéia da aceleração para mim não vem tanto de uma "agressividade" ou mesmo de uma referência "neurotizada", e sim quase como uma referência à fugacidade da imagem, e de uma referência sim à fugacidade da memória. E daí voltamos ao tema infantil. Acho que o Natal é basicamente um filme infantil.

Mas ainda assim concordo que as imagens de fato "não causam bem-estar ou alegria" (o que não necessariamente implica que elas causem o seu oposto), simplesmente porque acho que essa não é uma função do cinema a priori. E se a idéia do desespero é de fato comum aos meus outros vídeos, creio que é um desespero mudo, uma consciência trágica da condição humana, desse absurdo (o exemplo mais típico é o fim do Desertum). Mas não sei até que ponto isso se manifesta no Natal. Porque ainda acho que, no fundo, o Natal é um filme afetuoso.

2) Outro fator relevante no filme é a ingenuidade construída dos elementos de linguagem que nos remetem às narrativas infantis. A secura com que a passagem sobre o avô entra na fruição e a sua fala off final revelam uma inesperada camada de melodrama e magia ao filme, fazendo com que as imagens soem antes um despejo afetivo do que um discurso crítico/cínico. Por outro lado, esse despejo se dá de maneira meticulosamente construída. Como você tenta articular essa olhar afetivo individualizado ao extremo com uma força possível de encantamento compartilhado na tela? Como se dá esse processo? Você tem parceiros, colaboradores? Você consegue "ver" seus filmes?

Como eu estava dizendo, o Natal é um filme infantil (a idéia da travessura, a dublagem dos roncos, a voz off chamando o avô, etc.). Filmar é uma grande travessura, ato de subversão. Mas essa travessura é afetuosa, sempre. O filme é como se fosse o ponto de vista de uma criança, mas ao mesmo tempo de uma criança que sabe que não é mais uma criança, de uma criança que já cresceu. Acho que daí é que talvez surja esse certo "desconforto" que é acompanhar sua projeção. É também uma idéia de que o Natal só dura um dia, que depois voltam os dias em que temos que pagar as nossas contas, etc. Eu queria que essa idéia de um "filme infantil" estivesse também na essência do filme, por isso busquei um diálogo com o primeiro cinema (as imagens aceleradas tbem me passam isso, as cartelas um tanto pomposas, etc) e a idéia do "filme caseiro", que é muito importante para mim.

Na verdade essa grande quebra no filme que entra com as imagens do avô é porque eu queria que ficasse claro para as pessoas que o Natal não era um filme trash (ou pelo menos um filme trash como as pessoas vêem um filme trash). Eu queria que as pessoas se surpreendessem com a sua própria avaliação ao longo do filme, do que elas esperam de um filme, do que elas esperam de uma família, do que elas esperam delas mesmas quando vêem um filme. Por isso (para mim) presenciar uma sessão do Natal é ao mesmo tempo uma experiência fascinante e dolorosa.

Dolorosa porque é um processo grande de exposição pessoal, mas pelo menos no cinema creio que ainda há espaço para isso, porque na nossa vida do dia-a-dia isso é impossível. Tenho essa louca utopia de que pelo menos no cinema ainda é possível sermos verdadeiros uns com os outros e que isso só é possível se o cineasta se expuser, se for um trabalho verdadeiramente de entrega. E acho que o formato do vídeo é o ideal para isso. Em vários de meus vídeos faço o trabalho completamente sozinho, desde o roteiro até a montagem (chego até a ser o câmera e o ator ao mesmo tempo!). Isso é uma espécie de autobiografia pessoal, mas, claro, que vai além de uma mera autobiografia, mas de um retrato mais íntimo, mais subjetivo. E assim vai. Tenho vários colaboradores: os Irmãos Pretti, o veterano cineasta Luiz Rosemberg Filho, André Scucato e Cristina Pinheiro, além de todos os filmes que vi e que vejo e de tudo o que me cerca. Até daqueles que torcem contra e das coisas que não vão como a gente imagina, porque a vida tbem é feita de fracassos e de tentativas frustradas, e tudo isso me estimula. Tudo isso antes do ato de criação, mas que é o próprio ato da criação. Mas na hora de fazer o filme, geralmente nesses vídeos estou sozinho. Mas há algumas exceções, claro.

Uma vez prontos, creio que vejo meus vídeos como qualquer espectador. Não me sinto um "espectador privilegiado" dos meus próprios vídeos. Espero que as pessoas que os vejam se descubram, reflitam um pouco mais sobre si e sobre as coisas, assim como eu o faço os vendo. E quando descubro, isso me impulsiona para frente, para continuar vivendo e porventura criando. Acho que as pessoas que os vêem tbem podem descobrir coisas sobre si. É por isso que os faço e que procuro exibi-los. Mas sempre tendo a consciência de que os filmes são como castelos de areia.

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