Meu Amigo Invisível
Meu Amigo Invisível
Desde a primeira vez em que me percebi como gente, sempre me vi como uma pessoa medíocre e pouco digna de alguma consideração. Era pelo menos assim como eu era visto e tratado por todas as pessoas mais ou menos da minha idade, na escola, na rua, no futebol, em qualquer lugar. Na escola era pior, porque em casa eu podia arranjar alguma desculpa, me trancar no quarto e fugir da rua, mas na escola eu tinha que enfrentar as pessoas, e passei pelo menos oito anos apanhando diariamente, e quando, no começo, reclamava com os professores, eles me diziam que “a vida era assim mesmo”, e mesmo meus pais nunca levavam isso muito a sério: achavam que era coisa de criança e que “a vida era assim mesmo”. Se os adultos me diziam a mesma coisa, só me restava acreditar e isso me deixou marcas profundas, as físicas, que passaram com o tempo, e as outras cicatrizes: dificuldades de relacionamento, baixa auto-estima, a constatação de que a vida é um eterno sofrimento, etc.
Mas foi que um dia, de forma completamente inesperada, eu conheci um amigo, alguém com quem eu podia trocar confidências e que tinha, mais ou menos, passado pelas mesmas experiências que eu: era uma pessoa medíocre, solitária, que as pessoas frequentemente se riam, desengonçada, e que queria viver a vida como se fosse qualquer um, que queria ser amado, que queria expressar seus sentimentos e tinha dificuldade com isso, que queria tentar ser livre e esbarrava em uma porção de coisas. Esse garoto que conheci não morava na minha rua, nem estudava na mesma escola. Ele morava na Polônia. Ele estava estudando Português. Eu não o conheci numa viagem, ou por ser um “penfriend”, nem pelo orkut ou coisa do gênero. Eu o conheci através de um pedaço de magnético, através de uma fita VHS no televisor de 21 polegadas lá de casa. Seu nome era Tomek. Eu o conheci através de um filme chamado Não Amarás, e passou a ser uma espécie de amigo invisível, de me acompanhar por onde eu fosse e, devo confessar, o faz até hoje.
O Tomek era um cara que vivia em função de uma vida outra: ele observava todos os passos de sua vizinha, e vivia em função disso, já que a sua vida era tão medíocre que nada havia que valia a pena a não ser isso. O Tomek não queria nada da vida, a não ser poder ver essa vida outra sem ser incomodado. Mas um dia seu anonimato foi desmascarado e ele passou a sofrer muito por isso, porque é claro que aquela vizinha nunca se interessaria por ele. Aliás, ninguém se interessaria por Tomek, a não ser eu, aqui no Brasil, que conseguia ser tão medíocre quanto ele. Então que o Tomek me fez ver pela primeira vez que talvez nós não estivéssemos tão sozinhos, que talvez outras pessoas fossem tão medíocres quanto nós, e que podíamos ter algum valor, apesar de eu não ter descoberto ainda qual.
A partir disso, eu fui descobrindo outros e outros e outros amigos, vendo um conjunto cada vez maior de filmes, e um dia eu descobri que não estava mais sozinho. Eu estava acompanhado se estivesse no meio de uma pilha de filmes, até que chegou um ponto que eu percebi que não precisava mais deles, e me libertei dos meus amigos invisíveis e fui viver a minha vida. Não passei a sofrer menos com isso mas acho que passei a lidar melhor com a possibilidade de aceitar isso.
Mas o meu primeiro amigo foi o Tomek. Foi ele que me fez ver tudo isso, e tudo que fiz desde então passou a ser em referência a isso, a esse fato, a essa possibilidade que de repente se abria para mim. É por isso que mesmo eu tendo visto mais de mil, dois, três mil filmes depois disso, para mim, para sempre, o melhor filme do mundo se chama Não Amarás. Não importa que agora eu tenha estudado cinema e entenda que seja um filme menor: para mim nada há de mudar o fato de que Não Amarás é o maior filme do mundo. Porque é como se esse filme tivesse sido feito para mim e é um filme do tamanho do mundo. Ou pelo menos do meu mundo.
Desde a primeira vez em que me percebi como gente, sempre me vi como uma pessoa medíocre e pouco digna de alguma consideração. Era pelo menos assim como eu era visto e tratado por todas as pessoas mais ou menos da minha idade, na escola, na rua, no futebol, em qualquer lugar. Na escola era pior, porque em casa eu podia arranjar alguma desculpa, me trancar no quarto e fugir da rua, mas na escola eu tinha que enfrentar as pessoas, e passei pelo menos oito anos apanhando diariamente, e quando, no começo, reclamava com os professores, eles me diziam que “a vida era assim mesmo”, e mesmo meus pais nunca levavam isso muito a sério: achavam que era coisa de criança e que “a vida era assim mesmo”. Se os adultos me diziam a mesma coisa, só me restava acreditar e isso me deixou marcas profundas, as físicas, que passaram com o tempo, e as outras cicatrizes: dificuldades de relacionamento, baixa auto-estima, a constatação de que a vida é um eterno sofrimento, etc.
Mas foi que um dia, de forma completamente inesperada, eu conheci um amigo, alguém com quem eu podia trocar confidências e que tinha, mais ou menos, passado pelas mesmas experiências que eu: era uma pessoa medíocre, solitária, que as pessoas frequentemente se riam, desengonçada, e que queria viver a vida como se fosse qualquer um, que queria ser amado, que queria expressar seus sentimentos e tinha dificuldade com isso, que queria tentar ser livre e esbarrava em uma porção de coisas. Esse garoto que conheci não morava na minha rua, nem estudava na mesma escola. Ele morava na Polônia. Ele estava estudando Português. Eu não o conheci numa viagem, ou por ser um “penfriend”, nem pelo orkut ou coisa do gênero. Eu o conheci através de um pedaço de magnético, através de uma fita VHS no televisor de 21 polegadas lá de casa. Seu nome era Tomek. Eu o conheci através de um filme chamado Não Amarás, e passou a ser uma espécie de amigo invisível, de me acompanhar por onde eu fosse e, devo confessar, o faz até hoje.
O Tomek era um cara que vivia em função de uma vida outra: ele observava todos os passos de sua vizinha, e vivia em função disso, já que a sua vida era tão medíocre que nada havia que valia a pena a não ser isso. O Tomek não queria nada da vida, a não ser poder ver essa vida outra sem ser incomodado. Mas um dia seu anonimato foi desmascarado e ele passou a sofrer muito por isso, porque é claro que aquela vizinha nunca se interessaria por ele. Aliás, ninguém se interessaria por Tomek, a não ser eu, aqui no Brasil, que conseguia ser tão medíocre quanto ele. Então que o Tomek me fez ver pela primeira vez que talvez nós não estivéssemos tão sozinhos, que talvez outras pessoas fossem tão medíocres quanto nós, e que podíamos ter algum valor, apesar de eu não ter descoberto ainda qual.
A partir disso, eu fui descobrindo outros e outros e outros amigos, vendo um conjunto cada vez maior de filmes, e um dia eu descobri que não estava mais sozinho. Eu estava acompanhado se estivesse no meio de uma pilha de filmes, até que chegou um ponto que eu percebi que não precisava mais deles, e me libertei dos meus amigos invisíveis e fui viver a minha vida. Não passei a sofrer menos com isso mas acho que passei a lidar melhor com a possibilidade de aceitar isso.
Mas o meu primeiro amigo foi o Tomek. Foi ele que me fez ver tudo isso, e tudo que fiz desde então passou a ser em referência a isso, a esse fato, a essa possibilidade que de repente se abria para mim. É por isso que mesmo eu tendo visto mais de mil, dois, três mil filmes depois disso, para mim, para sempre, o melhor filme do mundo se chama Não Amarás. Não importa que agora eu tenha estudado cinema e entenda que seja um filme menor: para mim nada há de mudar o fato de que Não Amarás é o maior filme do mundo. Porque é como se esse filme tivesse sido feito para mim e é um filme do tamanho do mundo. Ou pelo menos do meu mundo.
Comentários
Estou lançando um blog dedicado aos cinemas da Ásia e gostaria de convidar todos a conhecê-lo:
http://cinemasasiaticos.blogspot.com/
Valeu!
É bem isso!!
Ótimo texto!