Bom Dia
Bom Dia
De Yasujiro Ozu
DVD, dom 20 março 22hs
***½
Ora, ora, não é que até o carrancudo Ozu também conseguiu fazer a sua comédia? É Bom Dia, mais um extraordinário lançamento em DVD da Magnus Opus. Este primeiro filme de Ozu lançado em DVD no Brasil é completamente atípico na sua filmografia, já pelo tom de comédia e o colorido. Mas ao mesmo tempo é o mesmo Ozu de sempre, com uma observação atenta aos menores detalhes da rotina do japonês comum, no conflito entre tradição e modernidade, e na estética repleta de câmeras baixas, de campos-contracampos frontais e de lentes de 50mm. Bom Dia, dentro da filmografia de Ozu, é mais ou menos o que tentei fazer em meu Auto-Retrato, muito mal comparando. O humor não consegue esconder a profunda melancolia que reside nesse filme: a comédia serve, na melhor tradição de Aristófanes, para promover uma crítica contundente ao mundo mesquinho e banal daquele pequeno bairro. Ao mesmo tempo, Ozu tem uma comovente ternura por eles. Trata-se de mais um drama da condição humana, espelho da intimidade e do terror da existência cotidiana e do viver em comunidade.
A estratégia de Ozu em Bom Dia é muito sutil, e só vamos começar a percebê-la lá pelos 40, 45 minutos de filme, isto é, em sua metade. Cheio de diálogos fúteis, sobre os impostos e sobre os meninos na escola, Bom Dia parece um pequeno veículo para um exercício de Ozu na comédia, no timing e nos pequenos detalhes do cotidiano, mas quem tiver um pouco de paciência e acompanhar o filme atentamente, descobrirá, lá pela sua metade, de que obviamente se trata de muito, muito mais do que isso. Trata-se de uma aula magna de vida e de cinema, que este texto está longe de tentar reproduzir, com uma simplicidade e uma elegância típicas do estilo de Ozu.
Bom Dia é um filme sobre a linguagem, sobre a dificuldade de expressar os sentimentos através de palavras, ou como estas podem gerar inúmeros mal entendidos. Os adultos se perdem em diálogos banais, que pouco ou nada contribuem para que se tornem mais verdadeiros ou mais próximos entre si. Os meninos censuram o pai que lhes diz que falam demais. Mas os meninos replicam que os adultos falam coisas ainda mais desnecessárias, como “Bom Dia! Boa Tarde! Como Vai?”, apenas por um protocolo. Mais tarde, outro personagem comenta: “eles são apenas crianças, não percebem que sem esses pequenos comentários a vida seria muito tediosa”. Ou ainda quando a irmã censura o tradutor por não conseguir se declarar a Setsuko. “Você só consegue falar sobre o tempo, essas coisas, e não consegue falar o essencial”. Os meninos se silenciam, seu voto de silêncio acaba se tornando um corolário ético sobre sua condição, sobre sua impossibilidade de ter o televisor, seu bem tão querido, e no final, acabam recompensados. A linguagem é vista em sua complexidade: as palavras enganam, escondem, são subterfúgios, necessários, ardilosos, dolorosos. O próprio título do filme mostra muitas das intenções de Ozu.
Bom Dia é um filme sobre crianças. Os adultos são quase tão ingênuos quanto as crianças. As crianças se rebelam contra a autoridade (os pais, as tradições conservadoras) para garantir sua liberdade. Nitidamente, o ponto de vista do filme é favorável a essas crianças, rebeldes mas aplicadas, isto é, coerentes.
Bom Dia é um filme sobre a tradição e a modernidade de um Japão, sobre a inevitabilidade da ocidentalização. A Tv formará 10 milhões de idiotas mas é inevitável: não se pode impedir as crianças de vê-la, correndo o risco de ser tão idiota quanto seu inimigo. Na sala da irmã do tradutor, que adquiriu a primeira Tv do bairro, estão os cartazes de “Les amant” e “The Defiant Ones”. A crítica a um Japão ocidentalizado acontece de várias formas, desde a contínua citação de dinheiro ao longo de todo o filme, a questão da aposentadoria, a presença do idioma inglês, os planos das torres de Tv que abrem o filme, etc, etc.
Bom Dia é um filme sobre a tolerância, sobre o papel do tempo em desvelar o que as palavras ou mal entendidos podem causar entre as relações humanas. É sobre a persistência, sobre o papel da amizade. Ozu precisa filmar os personagens se locomovendo nos corredores, entre uma casa e outra. Seu filme é muito carinhoso com a limitação desses personagens. E quebra a idéia que Ozu não sabe trabalhar com improviso, ou que segue uma idéia do ator muito ríspida e pouco flexível. Isamu, o irmão mais novo, é de uma graciosidade inimaginável dentro do estilo cerebral de Ozu. É extraordinária a cena em que os dois irmãos se sentam para comer arroz e chá com as mãos, logo eles que no começo do filme reclamavam da comida da mãe. E é ainda mais extraordinário quando eles voltam para casa e encontram a TV no corredor. Não há closes, não há destaques chamativos para o clímax: há apenas um sentimento de cinema e de vida. Está lá o aparelho no chão do corredor, as crianças imediatamente começam a falar, esquecem-se de tudo dada a alegria de ver o televisor, tudo acaba esquecido. Tudo volta ao normal. Muito humano.
Bom Dia também poderia ser um filme de Jacques Tati, na crítica do progresso, nas gags sonoras (o pum), no papel das cores, no deslocamento dos personagens entre um espaço quase anódino.
A comédia é um exercício para Ozu, cuja filmografia é praticamente toda composta de melodramas. Mas não deve distrair o espectador dos temas de sempre de Ozu. E no final, apesar de toda a alegria pela chegada do televisor, fica uma certa melancolia, reina uma certa crítica às futilidades daquele bairro. O mundo das crianças, livre, soa como uma esperança, mas sombria. Isamu e seu irmão voltam a falar, mas talvez as palavras nada digam. Ele volta a falar “Bom Dia” como os adultos. O tradutor e Setsuko se encontram na estação de trem, mas como sempre, ele não consegue se declarar, apenas fala do tempo, mas o tempo não é nada bom. A Tv irá formar 10 milhões de idiotas, os velhos estão partindo para uma aposentadoria miserável, e só lhe restam beber, ou rezar, ouvindo as reclamações dos filhos que lhe acusam de esquecimento. As esguias torres de TV agora dominam a paisagem de pequenas casas do bairro japonês.
De Yasujiro Ozu
DVD, dom 20 março 22hs
***½
Ora, ora, não é que até o carrancudo Ozu também conseguiu fazer a sua comédia? É Bom Dia, mais um extraordinário lançamento em DVD da Magnus Opus. Este primeiro filme de Ozu lançado em DVD no Brasil é completamente atípico na sua filmografia, já pelo tom de comédia e o colorido. Mas ao mesmo tempo é o mesmo Ozu de sempre, com uma observação atenta aos menores detalhes da rotina do japonês comum, no conflito entre tradição e modernidade, e na estética repleta de câmeras baixas, de campos-contracampos frontais e de lentes de 50mm. Bom Dia, dentro da filmografia de Ozu, é mais ou menos o que tentei fazer em meu Auto-Retrato, muito mal comparando. O humor não consegue esconder a profunda melancolia que reside nesse filme: a comédia serve, na melhor tradição de Aristófanes, para promover uma crítica contundente ao mundo mesquinho e banal daquele pequeno bairro. Ao mesmo tempo, Ozu tem uma comovente ternura por eles. Trata-se de mais um drama da condição humana, espelho da intimidade e do terror da existência cotidiana e do viver em comunidade.
A estratégia de Ozu em Bom Dia é muito sutil, e só vamos começar a percebê-la lá pelos 40, 45 minutos de filme, isto é, em sua metade. Cheio de diálogos fúteis, sobre os impostos e sobre os meninos na escola, Bom Dia parece um pequeno veículo para um exercício de Ozu na comédia, no timing e nos pequenos detalhes do cotidiano, mas quem tiver um pouco de paciência e acompanhar o filme atentamente, descobrirá, lá pela sua metade, de que obviamente se trata de muito, muito mais do que isso. Trata-se de uma aula magna de vida e de cinema, que este texto está longe de tentar reproduzir, com uma simplicidade e uma elegância típicas do estilo de Ozu.
Bom Dia é um filme sobre a linguagem, sobre a dificuldade de expressar os sentimentos através de palavras, ou como estas podem gerar inúmeros mal entendidos. Os adultos se perdem em diálogos banais, que pouco ou nada contribuem para que se tornem mais verdadeiros ou mais próximos entre si. Os meninos censuram o pai que lhes diz que falam demais. Mas os meninos replicam que os adultos falam coisas ainda mais desnecessárias, como “Bom Dia! Boa Tarde! Como Vai?”, apenas por um protocolo. Mais tarde, outro personagem comenta: “eles são apenas crianças, não percebem que sem esses pequenos comentários a vida seria muito tediosa”. Ou ainda quando a irmã censura o tradutor por não conseguir se declarar a Setsuko. “Você só consegue falar sobre o tempo, essas coisas, e não consegue falar o essencial”. Os meninos se silenciam, seu voto de silêncio acaba se tornando um corolário ético sobre sua condição, sobre sua impossibilidade de ter o televisor, seu bem tão querido, e no final, acabam recompensados. A linguagem é vista em sua complexidade: as palavras enganam, escondem, são subterfúgios, necessários, ardilosos, dolorosos. O próprio título do filme mostra muitas das intenções de Ozu.
Bom Dia é um filme sobre crianças. Os adultos são quase tão ingênuos quanto as crianças. As crianças se rebelam contra a autoridade (os pais, as tradições conservadoras) para garantir sua liberdade. Nitidamente, o ponto de vista do filme é favorável a essas crianças, rebeldes mas aplicadas, isto é, coerentes.
Bom Dia é um filme sobre a tradição e a modernidade de um Japão, sobre a inevitabilidade da ocidentalização. A Tv formará 10 milhões de idiotas mas é inevitável: não se pode impedir as crianças de vê-la, correndo o risco de ser tão idiota quanto seu inimigo. Na sala da irmã do tradutor, que adquiriu a primeira Tv do bairro, estão os cartazes de “Les amant” e “The Defiant Ones”. A crítica a um Japão ocidentalizado acontece de várias formas, desde a contínua citação de dinheiro ao longo de todo o filme, a questão da aposentadoria, a presença do idioma inglês, os planos das torres de Tv que abrem o filme, etc, etc.
Bom Dia é um filme sobre a tolerância, sobre o papel do tempo em desvelar o que as palavras ou mal entendidos podem causar entre as relações humanas. É sobre a persistência, sobre o papel da amizade. Ozu precisa filmar os personagens se locomovendo nos corredores, entre uma casa e outra. Seu filme é muito carinhoso com a limitação desses personagens. E quebra a idéia que Ozu não sabe trabalhar com improviso, ou que segue uma idéia do ator muito ríspida e pouco flexível. Isamu, o irmão mais novo, é de uma graciosidade inimaginável dentro do estilo cerebral de Ozu. É extraordinária a cena em que os dois irmãos se sentam para comer arroz e chá com as mãos, logo eles que no começo do filme reclamavam da comida da mãe. E é ainda mais extraordinário quando eles voltam para casa e encontram a TV no corredor. Não há closes, não há destaques chamativos para o clímax: há apenas um sentimento de cinema e de vida. Está lá o aparelho no chão do corredor, as crianças imediatamente começam a falar, esquecem-se de tudo dada a alegria de ver o televisor, tudo acaba esquecido. Tudo volta ao normal. Muito humano.
Bom Dia também poderia ser um filme de Jacques Tati, na crítica do progresso, nas gags sonoras (o pum), no papel das cores, no deslocamento dos personagens entre um espaço quase anódino.
A comédia é um exercício para Ozu, cuja filmografia é praticamente toda composta de melodramas. Mas não deve distrair o espectador dos temas de sempre de Ozu. E no final, apesar de toda a alegria pela chegada do televisor, fica uma certa melancolia, reina uma certa crítica às futilidades daquele bairro. O mundo das crianças, livre, soa como uma esperança, mas sombria. Isamu e seu irmão voltam a falar, mas talvez as palavras nada digam. Ele volta a falar “Bom Dia” como os adultos. O tradutor e Setsuko se encontram na estação de trem, mas como sempre, ele não consegue se declarar, apenas fala do tempo, mas o tempo não é nada bom. A Tv irá formar 10 milhões de idiotas, os velhos estão partindo para uma aposentadoria miserável, e só lhe restam beber, ou rezar, ouvindo as reclamações dos filhos que lhe acusam de esquecimento. As esguias torres de TV agora dominam a paisagem de pequenas casas do bairro japonês.
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