“Eu ainda não me atrevo a ser alguém”
Dias em Branco, dos Irmãos Pretti
Selecionados por engano, Dias em Branco e O Primeiro Grito foram uma sessão-ilha dentro da Mostra do Filme Livre. Isolados no último dia do evento, disputando espaço com a premiação, foram solitários representantes do “alternativo dentro do alternativo”. Antípodas de Um Maluco em Copacabana, são trabalhos que indicam um cinema jovem na contramão dos cacoetes de um cinema alternativo. Propõem um trabalho austero de linguagem, de reavaliação das potencialidades da linguagem cinematográfica em expressar os sentimentos, expandindo os horizontes da narrativa clássica e examinando alternativas para seus personagens em crise. Com isso, dialogam com uma proposta contemporânea de dramaturgia, como os recentes filmes de Sofia Coppola e Vincent Gallo.

O Primeiro Grito é um filme de contenção. Logo após o longo plano-seqüência que abre o filme e que estabelece um mote, o curta estabelece um trabalho de contraposição entre os ambientes em expansão, que oferecem ao protagonista uma nova alternativa e a clausura de sua postura pessoal. Um “road movie” às avessas, filme de grande desterritorialização, de imersão aguda e ao mesmo tempo distante das motivações e dos sentimentos desse protagonista, o filme promove uma reavaliação do potencial do cinema em perseguir um íntimo, uma caminho interior. Seu deslocamento de si faz parte da proposta de provocar uma angústia: um não-estar lá.

Dias em Branco percorre o mesmo trajeto, mas faz um adendo metalinguístico: é sobre as angústias do artista em seu processo de criação. Processo esse que se confunde com sua vida rotineira, ou melhor, com uma vida não-vivida. Ou seja, um não-estar lá. Ao mesmo tempo, um humor atípico (autocrítico) e um desejo pela linguagem preenchem o filme, contrastando até com o rigor e a inércia de O Primeiro Grito. O humor naive, a tendência à autocrítica se misturam a um trabalho de grande afetividade, de um mergulho possível na intimidade partida desses jovens que buscam uma maneira de sobreviver. Com isso, busca-se um trabalho mais livre de expressão dos sentimentos, de compartilhamento de uma angústia, de uma reflexão sobre a possibilidade de uma alternativa e qual o papel do artista e do processo criativo diante disso. Diante de suas impossibilidades, a criação surge como desejo de expressão desse descompasso: um não-estar lá se confunde com um não-ser. A saída do absurdo da vida muitas vezes parece ser o cerne da criação artística: dizer o nada é uma forma de dizer, de expressar-se, de viver. A vida passa a ser um acúmulo de entremeios possíveis, um “tempo de espera possível”.
Dois filmes, em conjunto, que investigam novas possibilidades de expressão para o cinema, que se preocupam mais com as perguntas do que com as prontas respostas. Fora do gueto dos filmes-de-efeito, dos filmes-piada, ou dos cacoetes da dita produção alternativa, são mergulhos desiguais numa afetividade possível, reflexo de um deslocamento, de um tempo-espaço outro, trabalhos que prosseguem sendo incompreendidos, malditos, detestados, não-vistos. Quem não os viu nessa sessão da Mostra do Filme Livre provavelmente nunca mais os verá. Um cinema da solidão condenado a ser solitário.

Comentários

Anônimo disse…
eu acho engraçado que o cinema, a arte mais popular, seja arte que as pessoas menos entendem. quando elas vão ao cinema elas querem ver o que elas já conhcem, em termos de narrativa, dramaturgia e signos. quando você faz um filme buscando se expressar da forma mais cinematográfica possível parece que ninguém entende e o pior é que ninguém quer se dar o trabalho de entender. nesse sentido, sim, fazemos um cinema solitário que não quer ser visto, mas é nisso que a proposta desse tipo de cinema tem a sua validade. um filme é feito com o intuito de se expressar e de dialogar, só resta o espectador querer dialogar com o filme. de qualquer maneira acho importante esses dois filmes passarem no filme livre, pois representes de um cinema que existe e que não pode ser ignorado. mesmo que o público em geral não goste é importante passarem esses filmes como maneira de fomentar a produção de cinema e vídeo no brasil. temos que ver os dois lados da moeda e fazer com que eles coexistam, senão vira barbárie. da mesma forma que dev-se ter espaço para um almodóvar deve-se ter espaço para um claire denis. eu acho que o brasileiro tem parar de pensar pequeno (provinciano) e começar a entender que a riqueza não está só no que cai no gosto do público. público e dinheiro são só dois dos vários fatores que compõem a estrutura social dentro dos porques da exibição de uma obra de arte. agradeço a você, ikeda, pela força.
abraços
luiz pretti
Anônimo disse…
"Eu não me atrevo a ser alguem" é uma fala do "cristiano" do texto que eu escreví e tenta mostrar a dificuldade da expressão da personagem, que é introduzir-se no mundo através de um conceito de arte que por sí mesma é limitada e não permite um catarse absoluto do que se sente. Por isso opta pelo silencio do branco. É uma conclusão, a não-expressão como manifestação artistica: "I have nothing to say and I am saying it, and it is poetry as I needed it."
Abraço, cris.

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